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2010<br />
<strong>Eu</strong> e <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
José Morais
As Origens<br />
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Passados oitenta e cinco anos de vida, ainda no uso de plenas faculdades,<br />
sinto-me, diria, sobrevivente de lutas e peripécias que recaíram na minha existência<br />
desde criança. Nasci em 1925, em condições humildes, necessariamente integrado<br />
nas carências habituais do meio em que as pessoas sobrevieram também vindas do<br />
desenrolar de uma história antiga muito dolorosa e que, em verdade, nem mesmo<br />
escassas melhorias que tenha havido ao longo dos tempos, os tira da sisudez de<br />
quem vive mal e tantos são os motivos por que sofre aquela gente. Diria que não<br />
está muito “à flor da pele” a ideia de descontracções sociais. De outro lado são<br />
pessoas sérias (quando são), e meticulosas no que respeita ao dever do cumprimento<br />
de preceitos religiosos; também estes aconselham submissão ao poder dos que<br />
dominam e ao pregado temor a Deus.<br />
Mas, é também o clima forte que por ali se faz sentir. Uma pujança a partir da<br />
Primavera, em que se sente a vida brotar da terra ao ponto de nos emocionar<br />
(palavras de um lavador); daí até ao tempo das castanhas há uma mesa farta para toda<br />
a gente, ao ponto de esquecerem o rigor do inverno que passou. Aí houve, como<br />
sempre, miséria, fome e grandes acabrunhamentos dos pobres sem trabalho e sem<br />
direitos. No dizer de Miguel Torga, o clima duriense divide-se em “Nove meses de<br />
Inverno e três de inferno”.<br />
Já não circula entre as pessoas a memória da gravidade e o sofrimento de<br />
sangue e morte que antepassados seus tiveram, ao longo dos trezentos anos de<br />
história, para implantar a região do Alto Douro cuja escuridão dos tempos, de modo<br />
nenhum, deixavam antever que aquele inferno viria a ter uma beleza tal, ao ponto de<br />
ser qualificado de “Património da Humanidade”.<br />
Não resisto em transcrever dois extractos de obras de Jaime Cortesão e de<br />
Orlando Ribeiro:<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Jaime Cortesão: “ E quem hoje sobe à mais alta das capelas que escalam até o cume do<br />
caótico montão de penedias e de cima contempla a sombria voragem, onde se engolfa o rio, sente, se é<br />
cristão e lhe dói a dor alheia, vir do fundo e trespassá-lo um desespero de dor e perdição”<br />
Orlando Ribeiro: “Uma Obra de Três Séculos. Na paisagem ondulante do Douro nada<br />
apareceu ao acaso. Para a entendermos é obrigatório viajar no tempo e recordar o esforço humano<br />
que transformou uma área deserta num “jardim suspenso”. “Para se fazer a vinha e o vinho, houve<br />
necessidade de se fabricar a terra a partir do xisto, e o retrato do Douro actual é por isso o espelho<br />
de um esforço humano levado aos limites do sacrifício, um esforço que decorreu ao longo de três<br />
séculos, até que a força dos tractores e dos bulldozers terminasse a tormenta”. “A mais vasta e<br />
imponente obra humana no território português”.<br />
Vertente virada ao Norte de Terras de Celeirós do Douro.<br />
Paredes e socalcos erigidos sobre a terra, parte dela fabricada da pedra esmagada à marretada. Das<br />
profundidades dos montes obscuros os homens fizeram um jardim, hoje Património Mundial.<br />
A história do vinho é longa e diversificada. A vinha está feita, há uvas e<br />
folhagens de videira tornando num jardim o que foram lugares tenebrosos. Mas tal<br />
beleza nasce e morre ano a ano e a sua manutenção propicia a continuação de<br />
sofrimentos e de muita injustiça. São componentes que, não tendo a amargura dos<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
antigos acima referidos, determinam contradições e precariedades de vária ordem<br />
que naturalmente me marcaram também.<br />
Recordando o meio em que vivi até aos vinte anos de idade, onde nem sequer<br />
se invocavam as palavras “direitos” e “cidadania”, vejo a inexistência total dos<br />
poderes públicos que nada tinham a ver com humanismo e protecção social, nem<br />
qualquer disciplina regulamentar específica que mexesse com o livre arbítrio dos<br />
senhores sobre os trabalhadores.<br />
E se pouco antes houve por lá manifestações políticas próprias das revoluções<br />
republicanas, o que nada significava para a miséria e dificuldades dos pobres, no<br />
meu tempo havia disciplina da ordem social, contudo mantida através da repressão e<br />
do medo da Guarda Republicana de Sabrosa que reprimia, indiscriminadamente,<br />
quer fosse por algum roubo, por uma bicicleta ou um carro de bois sem luz,<br />
tabernas denunciadas que não fechassem à hora, camuflando no seu interior<br />
jogadores de cartas – trabalhadores que desbaratavam parte da sua mísera jorna, etc.<br />
Mas, nunca vi ninguém a queixar-se de regras governamentais que haveriam<br />
de manter a ordem, fosse qual fosse a sua noção de justiça.<br />
O patrão armazena, ano após ano, o famoso vinho de Porto; o cavador que<br />
preparou a vinha, sem qualquer acesso nem sequer a um tostãozinho extraído<br />
daquela riqueza sempre maior e mais avolumada em cubas e tonéis distribuída, é-lhe<br />
vedada a simples contemplação da sua obra…<br />
Porém, num lugar onde os poderes dominam, em que a autoridade estatal não<br />
é sensível à justiça fundamentada no amor, observo agora à distância que, em<br />
momento algum, ouvi a Igreja daquelas paragens denunciar a imoralidade que há no<br />
comportamento dos senhores para com os pobres escravizados – sabendo nós que<br />
são exactamente esses infelizes e suas famílias que lhes mantêm e aumentam as suas<br />
riquezas.<br />
De duas, e uma: ou a Igreja, ela mesma, se tornou em mais um dos poderes<br />
sobre os pobres e vive de alma e coração identificando-se com eles, ou se coloca<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
uma posição indefinida entre os pobres e as outras duas componentes sociais: o<br />
sistema político e os ricos. Desde já digo que não é essa a maneira de estar neste<br />
mundo de Cristo; um mundo livre, independente, em que Jesus chega mesmo a<br />
dizer “Quem não é por Mim é contra Mim” ou, “Que o vosso falar seja sim,<br />
sim; não, não”. Na verdade Jesus tinha uma missão que começava em Si próprio –<br />
cumprir a vontade do Pai – e tudo o mais haveria de ser continuado Nele e o seu<br />
exemplo. A doutrina de Jesus é resposta a todas as necessidades humanas, quando<br />
vividas como Ele as viveu. Quem O seguir no apostolado, a sua acção há-de ser<br />
também exclusiva e não dividida. “Onde estiver o teu tesouro aí estará também o teu coração”<br />
(Mateus 6:21) e “Ninguém que lança mão do arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lucas<br />
9:61). E também que vomita os que não são quentes nem frios.<br />
Com estas citações apenas quero dizer que a Doutrina de Jesus é exigente,<br />
poderosa, exclusiva, independente de qualquer combinação material e é possível.<br />
Que o digam os santos. Por mim só quero justificar o que penso. A análise sábia e<br />
justa só Deus a pode fazer.<br />
Ainda que a palavra de Cristo fosse pronunciada sem qualquer alteração até<br />
ao fim dos tempos, o erro sempre estará connosco, quero dizer que este meu<br />
raciocínio reporta-se ao panorama social em que vivi, entre os anos de 1925 a 1946.<br />
Direi ainda que, para além do atraso social em que se vivia, a guerra de<br />
Espanha e a segunda guerra mundial vieram contribuir para levar a miséria a<br />
extremos muito dolorosos.<br />
Dou testemunho de tudo que digo. Sobre a história desses dias, escrevi um<br />
livro que não é mais que um retrato da minha própria história. Intitulei o trabalho:<br />
“DOS TENEBROSOS INVERNOS, AO TEMPO DAS FLORES”<br />
Celeirós do Douro é uma terra de artistas, onde ainda senti o som das<br />
bigornas dos serralheiros, o martelar dos pedreiros, o labor de várias profissões<br />
como cesteiros, tanoeiros, latoeiros, sapateiros, alfaiates, costureiras, ferreiros, o<br />
movimento comercial; tudo vi desaparecer, com excepção do trabalho das vinhas.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Fora como se o chão nos fugisse debaixo dos pés. <strong>Eu</strong>, por exemplo, depois da<br />
quarta classe, comecei, feliz, a aprendizagem da arte de serralheiro civil, passei por<br />
trolha, parti pedra em roteamentos na construção de vinhas novas e acabei também,<br />
sem êxito, na profissão de alfaiate. Muitas foram as peripécias que teceram este meu<br />
caminho, até que, em Janeiro de 1946, saí de Celeirós para a Marinha de Guerra.<br />
A sorte que tive não é possível explicá-la; mas creio que nunca, em tempo<br />
algum, tenha havido alguém daquela terra que experimentasse tamanha ventura,<br />
cheia de tanto bem.<br />
Parti, e lá ficaram os cavadores e alguns artistas sujeitos à míngua de tudo que<br />
edifica a vida de um ser humano. Principalmente a vida destes cavadores piorava de<br />
sobremaneira quando atravessavam os longos invernos sem trabalho e a pobre<br />
alimentação familiar, ou, igualmente, quando abrasados pelo calor do sol. Recordo<br />
vê-los chegar ajoujados de enxada ao ombro, de semblante ensombrado quando<br />
regressavam.<br />
Haverá muitas circunstâncias relativas à minha família que poderia relatar;<br />
mas o que não pode ficar sem referência é uma abordagem sobre o carácter e perfil<br />
de meus pais. Ainda hoje ocupam o meu pensamento gostosamente vendo que<br />
foram eles quem, mais de perto, testemunharam o meu percurso da vida.<br />
O meu pai, Horácio Morais, e a minha mãe, Helena Assunção Monteiro, eram<br />
católicos convictos e defensores de uma grande rectidão, apoiados na sua fé. Não<br />
poderei deixar de me referir, com muito amor, também, aos meus cinco irmãos.<br />
O meu pai era pedreiro e minha mãe era padeira. Não tiveram êxito na vida,<br />
antes sofreram toda a vida enleados na pobreza. Regra geral, o meu pai passava<br />
muito tempo do ano sem ganhar dinheiro devido em parte aos longos Invernos, a<br />
chover e mau tempo, não podia andar sobre os telhados. Foi um dia convidado para<br />
sacristão o que o levou a interessar-se profundamente pela igreja um belo templo<br />
datado de 1777, ao qual deu um esplendor que ninguém se lembrava ter visto antes.<br />
Não exagero na palavra “esplendor” porque eu mesmo ajudei a tirar montes de<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
terriça, cascalhos e enegrecimentos ali acumulados há vários anos. Esse bolor,<br />
penso, significa bem o sinal que perpassava pela igreja no meu tempo. O esmero e<br />
carinho do Sr. Horácio pelo templo mantiveram-se, com a ajuda da família inteira,<br />
ao longo de muitos anos.<br />
Em dado tempo, tudo mudou para meu pai.<br />
Ao nascer do sol de cada domingo, era da tradição sem data conhecida<br />
repenicar os sinos, o que o Sr. Horácio fazia obviamente com fé, respeito e alegria<br />
pelo dia – o Dia do Senhor. Porém, certo dia, um rico lá da terra combinou com<br />
padre da altura acabar como o toque àquela hora – ao nascer do sol. Achando ele<br />
que tal acto significava não só um rompimento com simbólica tradição e, mais que<br />
tudo, que era um desrespeito pelo Dia do Senhor, quis saber quem levantou tal<br />
questão. O padre disse que tinha sido um senhor de uma terra distante (S.<br />
Cristóvão). O meu pai, percebendo que o padre queria esconder o nome de alguém<br />
lá da terra, não fez mais do que abandonar tudo e todos; não voltou mais aquela<br />
igreja, passando a ir a pé a outra terra (Vilarinho de S. Romão) cumprir a obrigação<br />
sagrada de assistir à missa ao domingo. Mais tarde constou que tinha sido uma<br />
senhora rica lá de Celeirós que morava bem perto da igreja.<br />
Devo dizer que meu pai não era para mimos e, no meu próprio parecer, era<br />
uma pessoa que amava a rectidão ainda que, em muito o fazia com grande dureza no<br />
trato com os outros. Porém toda a gente tinha grande respeito pelo senhor Horácio.<br />
Ainda hoje sinto orgulho do gesto do meu pai ao deixar a igreja de Celeirós.<br />
O Zé Damas dizia que quando se levantava diariamente para ir trabalhar – de<br />
sol a sol –, o seu casaco ainda bandeava no cabide em que o tinha pendurado ao deitar. Como o<br />
Zé Damas, é o povo que dorme pouco. O sino, a repicar, dizia-lhes que não iriam<br />
trabalhar nesse dia; embora já acordados, como todos os dias, sempre poderiam ficar<br />
mais um bocadinho na cama. Além de tudo, para quem tivesse fé, o repicar dos<br />
sinos alegrava-os, porque era o anúncio do Dia do Senhor.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Não era um disparate sem sentido o gesto de meu pai, abandonando a igreja<br />
de Celeirós, afastando-se da mentira camuflada pelo padre da terra em favor de<br />
pessoas ricas, bem instaladas e ignorando os trabalhadores, aqueles que trabalham e<br />
produzem para ricos e pobres sem distinção.<br />
Dada esta explicação, voltemos ao dia-a-dia de meu pai. Com os filhos, por<br />
exemplo, nada tinha de suave e a palavra “carinho” – uma réstia longe a longe –, não<br />
fazia parte do seu relacionamento connosco. Mas essa frieza e esse afastamento<br />
eram o modo de estar da generalidade das pessoas. Em Trás-os-Montes, pelo menos<br />
até ao meu tempo inclusive, não havia lugar para grandes mesuras.<br />
Digo ainda que o meu pai, apesar da sua constante preponderância para fazer<br />
prevalecer a justiça, não discernia com a clareza necessária o que por sua vez o<br />
levava a tomar atitudes incoerentes de mais, o que o levava a verdadeiras injustiças.<br />
Alguns são os sinais da sua dureza sobre os filhos e, até mesmo em alguns<br />
momentos, em relação à minha mãe.<br />
Devido à dureza de um pai daqueles tempos, recordo uma cena concreta:<br />
estava eu em casa de um vizinho e o dono da casa tinha saído. Passados alguns<br />
momentos ouviram-se, na escada de pedra exterior, o calcorrear dos socos pesados<br />
do dono da casa a regressar. As duas filhas e a mãe, fazendo um gesto rápido<br />
disseram entre si “calem-se que vem ali o pai”.<br />
Na minha casa não se desenhava uma violência de forma tão repressiva, ainda<br />
que vigorasse um respeitoso silêncio. Relativamente à minha mãe, tínhamos todo o à<br />
vontade. Devo dizer que sinto pelo meu pai amor igual ao que tenho pela minha<br />
mãe – amor imenso – ainda que eu sinta particular admiração e ternura pela minha<br />
mãe; decerto pelo carinho e compreensão com que ela tratava os filhos; talvez pela<br />
forma voluntariosa com que encarava a vida; talvez pela sua paciência e resignação<br />
perante as dificuldades que matizaram fortemente toda a sua existência; talvez pelo<br />
ânimo que me incutia; talvez devido a afinidades que sinto entre mim e ela.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Uma das grandes alegrias que sempre senti e que ainda hoje me emociona<br />
reside na recordação do carácter forte e doce da minha mãe.<br />
Não está em mim falar dela para dizer como toda a gente diz e com toda a<br />
razão: “a minha mãe era a melhor mãe do mundo”; antes invoco qualidades dela baseadas<br />
nos gestos de persistência e coragem tantas vezes demonstrada e em inúmeras<br />
adversidades.<br />
Amorosa e destemida, rodeada pelos sete filhos 1 que teve, constantemente<br />
ficava sem dinheiro para comprar a farinha que ao menos chegasse para dar<br />
continuidade à fornada do dia seguinte. Competente, sim, par um movimento<br />
normal de uma padaria, via-a obrigada a prestar serviço a quem fosse ao seu forno<br />
levando a própria farinha para que dessa farinha lhes fizesse uma fornada de pão.<br />
O pagamento era ficar com uma das broas do pão cozido. Só que, para<br />
ganhar essa broa a minha mãe tinha de pôr a lenha para aquecimento do forno.<br />
Tinha então de ir ao monte várias vezes para arranjar quatro molhos de lenha, os<br />
necessários para cada fornada.<br />
Por aqueles lados não há ocasião para os familiares conversarem entre si.<br />
Diria que não há lugar nem paciência para contar histórias dos pais aos filhos. Fiquei<br />
contudo a saber alguns pormenores através das minhas irmãs. Afinal sabiam algo<br />
mais que eu.<br />
Sei que ficou sem pai aos de 12 anos, meu avô, o qual morreu vitimado pela<br />
peste pneumónica. Tempos terríveis em que muita gente morria no lugar, enquanto<br />
outros recorriam à emigração. Meu avô emigrou para o Brasil e passado um ano,<br />
morreu naquele país e porque ninguém o conhecesse foi para a cova classificado de<br />
“indigente, português”.<br />
A minha mãe, sendo a mais velha dos seus cinco irmãos, desde logo partiu<br />
para ganhar a vida, decerto ajudando a sua mãe que era padeira e trabalhando nos<br />
campos. Tendo vendido as terras que possuíam para arranjar dinheiro para a viagem<br />
1 José (falecido), José, Maria da Conceição, António, Mário, Maria de Jesus e Maria da Graça<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
de meu avô, ficaram sem qualquer haver. A pneumónica continuava a devastação e<br />
minha mãe terá colaborado ajudando “muita gente”, como ela própria dissera a uma<br />
das minhas irmãs.<br />
Segundo uma amiga e companheira – a senhora Dores –, com quem ainda<br />
tive a oportunidade de falar já depois da morte de minha mãe, lembrou que ambas<br />
tinham sido massacradas no trabalho dos campos até que, a dada altura, a minha<br />
mãe foi servir para uma casa rica da freguesia de Passos, povoação relativamente<br />
perto de Celeirós do Douro e, igualmente, freguesia do Concelho de Sabrosa. Passos<br />
era a terra do meu pai e daí o conhecimento entre eles.<br />
Como era próprio dessas casas senhoriais, as criadas e os motoristas dão nas<br />
vistas pelas suas fardas e estes, por sua vez, assumiam, mais ou menos<br />
ostensivamente, aquela sua “promoção”. Como é próprio de quem trabalha nas<br />
terras e em certas profissões, as referidas criadas brilhavam mais no meio ambiente.<br />
Talvez por isso, a minha mãe era vista, pejorativamente, pela senhora Narcisa,<br />
que viria a ser a minha avó, como uma menina fina.<br />
Meu pai exercia a profissão de pedreiro e a senhora Narcisa achava que aquela<br />
criada vistosa que passava, era sinal de má sorte para seu do filho Horácio.<br />
Não sei como as coisas entretanto se passaram, mas o casamento aconteceu,<br />
sem que se tenha desvanecido uma forte inimizade entre elas.<br />
E digo que essa inimizade não durou tão pouco, a avaliar por um episódio<br />
que aconteceu entre as duas.<br />
A minha mãe um dia adoeceu e a minha avó foi levar-lhe a casa um molho de<br />
cavacos para a lareira. Deixou a lenha no cimo da escada.<br />
A minha mãe, dando pelo movimento, levantou-se como pode e veio pôr-lhe<br />
o molho pela escada a baixo.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
No que me diz respeito, eu e os meus irmãos, naturalmente, sempre sentimos<br />
nela doçura e compreensão. Se as dificuldades surgiam e eram muitas, lá estava ela a<br />
aconselhar, a agir e a animar, falando de confiança em melhores dias. E tinha razão.<br />
Para mim esse futuro aconteceu recheado de coisas muito boas e que se<br />
mantêm até aos dias de hoje. Nesse tempo martirizavam-me duas otites, purgando<br />
noite e dia, de que resultava um cheiro nauseabundo, chegando à surdez total.<br />
Quando penso na situação, admiro como me foi possível tirar a 4ª classe. Mas penso<br />
também, com profundo desagrado, no sacrifício que causei ao meu colega de<br />
carteira, o Zé Videira, já falecido.<br />
Sem terem posses económicas para me mandarem para qualquer lado que<br />
tratassem o “mal” dos meus ouvidos, recordo a minha mãe dizer: “Deixa lá Zé,<br />
ainda hás-de ser um grande homem”.<br />
Paro por aqui de falar do carácter da minha mãe, ficando sem referência<br />
outros sinais bem expressivos da sua interessante postura.<br />
Porque pretendo recordar algumas das “minhas facetas” – Apontamentos do<br />
Passado, resolvi agora, aos oitenta e cinco anos de idade, escrever algumas dessas<br />
passagens, se calhar, até porque escrever me dá grande prazer.<br />
Nasci em Sabrosa – Sede de Concelho –, e vivi em Celeirós do Douro, sita ali<br />
perto, cerca de 5 km. Vivi, como toda a gente, entre alegrias e tristezas, peripécias de<br />
toda a ordem, até sair de Celeirós, aos vinte anos de idade, após percalços e baldões<br />
que descrevo no livro atrás referido.<br />
Era alegre por natureza e dava lugar a muitos momentos de festa a toda a<br />
gente. Conjuntamente com alguns amigos, formámos um conjunto de instrumentos<br />
de cordas, composto da seguinte forma: O Zé António, violão; o Raul, bandolim; o<br />
Zé Videira, bandolim; e eu, violão ou violino. Havia um outro, de quem não recordo<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
o nome, que tocava violão, além de outros que, vindos de fora, se uniam a nós,<br />
principalmente nos bailes e arruadas.<br />
5 de Janeiro de 1946, saída de Celeirós para a Marinha de Guerra<br />
Decorria o ano de 1945 e com ele a altura da minha inspecção para a tropa.<br />
Era o tempo das inspecções para a tropa. Quem quisesse, podia inscrever-se<br />
para a Marinha de Guerra; o que fiz de imediato. Tentei e consegui ludibriar um<br />
tanto o inspector, pois ouvia mal, mas estava habituado a socorrer-me do<br />
movimento dos lábios das pessoas e passei.<br />
Decorria o mês de Novembro de 1945. Um certo dia triste e chuvoso, andava<br />
eu no interior de uma chaminé a raspar crosta velha para caiar de novo, oiço a voz<br />
de meu pai chamando: José, o teu nome está na porta do regedor para ires para a marinha.<br />
Está o teu nome e o do Pires.<br />
Desci, como que voando, e lá estava o meu nome, juntamente com o do<br />
Pires, o outro rapaz da terra que também tinha concorrido.<br />
Mas, a convocação era apenas para servir na tropa. O apuramento para a<br />
MARINHA seria sujeito a outras formalidades, depois de ficarmos apurados para a<br />
tropa. Contudo, estávamos numa pauta indicando a nossa inscrição voluntária para<br />
aquela arma. Eram, pois, os dois nomes da lista colocada na porta do regedor.<br />
A possibilidade de ir para a Marinha era muito remota, pois que os inscritos<br />
teriam de fazer provas no Alfeite, em Lisboa, e só aí se definia o seu futuro. Era esta<br />
a requisição afixada na porta do regedor. Os dois teriam de estar no Alfeite no dia 6<br />
de Janeiro de 1946.<br />
Não era certeza nenhuma, ainda mais agravada pelo meu problema auditivo.<br />
Mas, o facto de o meu nome estar mencionada naquela porta desencadeou em mim<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
um furor de libertação e um enorme encantamento que, só por si, fazia nascer em<br />
mim um homem novo. O ser mais feliz do mundo a quem nada falta.<br />
A partir daquele momento, o meu falar com os meus amigos, alguns bem de<br />
vida porque possuíam terras, não podia ser outro senão o de delinear sonhos que<br />
alternadamente arrefeciam entre momentos de euforia e de incerteza. No entanto,<br />
comecei a sentir-me tão afortunado como eles, não tendo nada na mão sentia-me<br />
“rico como eles”, feliz. Toda essa esperança poderia não passar de um sonho que,<br />
por si só, já valia a pena.<br />
Como me sentia confortável com aquela camisola verde que a minha mãe<br />
mandara fazer. Pormenor que nunca esqueci.<br />
Chegou, pois, a data da inspecção no Alfeite. O Pires e eu saímos de Celeirós<br />
do Douro, andámos os 10 km que separa Celeirós do Pinhão, para apanhar o<br />
comboio.<br />
Já no comboio, sentia que partia para um mundo novo. Se eu era<br />
naturalmente alegre, o Pires era um bonacheirão bem-disposto e não virava a cara a<br />
mais um copo de vinho. Sentíamos enorme alegria com peripécias à mistura.<br />
Era suposto estar alguém, no Porto, à nossa espera, mas não estava ninguém.<br />
O mesmo aconteceu em Lisboa. Estas e muitíssimas peripécias deram lugar ao livro<br />
que escrevi e intitulei: “A IDA DO ZÉ PARA A MARINHA”<br />
Chegados ao Alfeite, fizemos as provas de inspecção e, para enorme tristeza<br />
minha, o Pires foi dado como incapaz. Foi uma grande desilusão; contudo, para<br />
minha surpresa, o Pires não se mostrou assim tão desanimado; “deixa lá”, dizia ele,<br />
descontraído. Quem sabe se raciocinava assim com a ajuda de um copo a mais,<br />
bebido daquilo que tinha escondido na mala.<br />
Lá se foi para Celeirós e iria cumprir o serviço militar em Lamego. Era o que<br />
me aconteceria se não tivesse ficado apurado para a Marinha. Retornaria à miséria de<br />
sempre, pois Lamego é relativamente próximo de Celeirós.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Mas fui apurado! Com esse apuramento removeram-se todos os meus males.<br />
Ali se abriram caminhos inimagináveis rumo à minha felicidade.<br />
Um dos benefícios fundamentais, que desde logo me fizeram, foi o<br />
tratamento aos ouvidos. A minha audição foi recuperada em cerca de 80% a 90%.<br />
Os meus ouvidos secaram, o que me tornou apto a enfrentar todas as circunstâncias<br />
com normalidade, tanto na Marinha, como fora dela. Trabalhei e venci.<br />
Alguns Apontamentos<br />
Permaneci na Marinha de Guerra os quatro anos da ordem, começando pela<br />
recruta em Vila Franca de Xira, onde fui um dia considerado por um dos instrutores<br />
um dos melhores atletas daquele ano. Era, de facto, um homem novo<br />
completamente desligado do passado.<br />
Acabada a recruta, fui destacado para a Escola de Aviação Naval Almirante<br />
Gago Coutinho, em S. Jacinto - Aveiro.<br />
Deixarei o caso de Aveiro para registar em ponto mais adequado, porque foi<br />
em Aveiro que começou a minha vida amorosa e familiar o que carece de um espaço<br />
alargado.<br />
Após a estadia de um ano naquela Unidade da Marinha, a Aviação Naval, teria<br />
de voltar a Lisboa, ponto de partida para um longo caminho carregado de aventuras<br />
e peripécias variadas, espaço que engloba uma boa parte da minha história.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Viagem à América do Norte em 1948<br />
Tudo o que tenho começou, como já disse, na Marinha, de onde saí, depois<br />
de ter cumprido o tempo regulamentar de quatro anos.<br />
Foram quatro anos de peripécias gostosas, aqui e ali, mundo além, coisas<br />
interessantes que recolhi em livro a que dei o título: “Ida do Zé para Marinha”.<br />
Façanhas interessantes muito próprias da marujada e da juventude em geral.<br />
Talvez, nessas andanças marinheiras, o ponto mais relevante esteja na minha<br />
ida à América do Norte a bordo do “Navio Escola Sagres” e as peripécias relativas a<br />
essa viagem. Duzentos marinheiros, entre oficiais, cadetes sargentos e praças, a<br />
velejar entre Lisboa e a América do Norte.<br />
Aí, não fossem os meus dias de grande enjoo, todas as horas seriam de festa,<br />
alegria e descontracção, graças às paródias e gestos de companheirismo sem<br />
distinção, entre todos.<br />
Bom… eu era um músico de bordo, tocava guitarra portuguesa em serenatas<br />
no convés ou no castelo, e fazia parte do grupo de Jazz tocando Viola.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
E, se difícil é fazer um quarto de noite no convés enrolados numa manta e<br />
muito atentos ao som do estridente apito que pudesse assinalar “homem ao mar”, o<br />
que levaria logo a correr para um salva-vidas sempre a jeito, já subir aos mastros<br />
com 48 metros de altura causa uma sensação de aventura e grande leveza.<br />
É uma aventura empolgante, enquanto a nossa estrutura psíquica tenta<br />
enganar os medos e aguçar os sentidos quanto ao cuidado que temos de ter em cada<br />
gesto. Todavia, é impressionante quando, depois de sairmos do cesto de gávea para<br />
as vergas suportados por um cabo – estribo – que dança ao sabor dos gestos de<br />
qualquer outro marinheiro, e, ainda por cima, sobre nós pairam nuvens ameaçando<br />
tempestade; a minha sensação era de que estava em outro lugar, algures noutro<br />
planeta.<br />
Saímos de Lisboa, nesse maravilhoso Navio Escola Sagres rumo à América,<br />
passando Porto Santo, Madeira, Cabo Verde, Mar das Bermudas, até chegar a<br />
Boston. Aportámos, depois, em New Bedford, New Wark e, finalmente, New York.<br />
Saímos de Nova Iorque a três de Agosto de 1948, viajando 28 dias seguidos<br />
até Lisboa. Passei ao Corpo de Marinheiros e, faltando-me ainda cumprir mais dois<br />
anos, fui destacado de novo para a Escola de Alunos de Vila Franca de Xira,<br />
Unidade onde decorreram bastantes peripécias, provocadas pelo meu sentir cristão.<br />
O despertar para uma nova realidade<br />
Era um tempo de muita fome e miséria; era situação geral do país, para mim<br />
bem visível em Vila Franca de Xira. Repito que foi o meio onde aconteceram muitos<br />
gestos de cristianismo e onde mais demoradamente me debrucei sobre a doutrina do<br />
evangelho, durante dois anos, passados na qualidade de grumete mais antigo da<br />
Escola. De recordar que foi ainda em Vila Franca que dei início a um curso de<br />
guarda-livros por correspondência e, já a partir do Navio João de Lisboa, tinha feito<br />
um curso de dactilografia, em Lisboa, na rua <strong>Eu</strong>génio dos Santos. O facto era que<br />
16
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
tinha vindo de Celeirós somente com a 4ª classe, o que não me tornava apto a passar<br />
em provas dos cursos da Marinha.<br />
Lembrado da minha realidade que se circunscrevia ao conteúdo de Celeirós,<br />
que era nada de nada, agora tinha um curso de dactilografia e outro de guarda-livros<br />
tirado por correspondência. Apesar de tudo, não achava o emprego de escritório que<br />
tanto deseja.<br />
A minha aspiração era uma profissão que condissesse com o nível da minha<br />
namorada, Telefonista dos C.T.T. A crise tocava a toda a gente e a mim faltava-me a<br />
prática que os escritórios exigiam. Preenchia requerimentos para um advogado, até<br />
que surgiu num jornal anunciado que a Quinta de Senhora das Dores em<br />
Verdemilho -Aveiro, precisava de um dactilógrafo. Estive nessa Quinta até que o<br />
Domingos Moreira me arranjou um lugar de assalariado na Companhia Portuguesa<br />
de Celulose, em Cacia. Era um serviço de armazém de todos os materiais necessários<br />
à Empresa, ainda em construção. Muito a custo, até porque a organização em geral<br />
era caótica, aprendi os nomes das centenas e centenas de materiais, rapidamente.<br />
Um dia foi aberto um concurso interno para o serviço administrativo e o meu chefe<br />
D. Francisco Castelo Branco, aconselhou-me a concorrer; foi o que fiz. O concurso<br />
era essencialmente para dactilógrafos para a Secretaria Central e, ainda que fosse<br />
para dactilografia como os outros concorrentes, nunca soube porquê, fui classificado<br />
como 3º escriturário.<br />
Aí comecei a dar um tanto nas vistas pelo empenho que punha no trabalho.<br />
Considerando que as minutas dos engenheiros eram gatafunhos, levava a melhor na<br />
equipa, pois conhecia todos os materiais da fábrica, o que mais facilmente me levava<br />
a descobrir as palavras arrevesadas das minutas. Depois, ainda que fizesse três ou<br />
quatro tentativas a minha dactilografia, primava pela perfeição. Daí, foi sempre em<br />
frente.<br />
Eis como surgiu o lugar ao sol que, em tempo, muito tinha desejado para<br />
enquadrar a minha mulher e, mais tarde, todos os amores que de nós nasceram.<br />
17
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Fazendo um pouco a retrospectiva sobre a andança difícil que percorri,<br />
lembro que vim de Celeirós sem nada na mão, ou dito de outra maneira, trazia<br />
comigo um esboço de cada uma das várias profissões que ali frequentei.<br />
Uma dessas profissões seria a de “trolha”- profissão semelhante à do meu pai<br />
– que, aqui, chamavam de “pintor”.<br />
Nesse tempo, confuso e sem futuro, bailava no pensamento uma procuração<br />
que me entristecia particularmente, quando sentia a diferença social que havia entre<br />
mim e a minha namorada, naqueles momentos em que aqueles rapazes<br />
engravatados, bem vestidos, esperavam as suas namoradas, colegas da minha, à saída<br />
do trabalho.<br />
Um momento que fez uma vida a dois para sempre.<br />
A certa altura propus à minha namorada terminar o namoro, devido a tantas<br />
incompatibilidades. Ela respondeu com prontidão: “se achas que queres acabar,<br />
acabamos; mas, por tu seres pobre!? Isso não!”<br />
A Ventura mais Alta da Minha Vida<br />
Como já se percebeu, a minha vinda de Celeirós do Douro para a Marinha de<br />
Guerra, foi uma aventura em liberdade; tenho, talvez, por melhor imagem a<br />
sensação empolgante de trepar aos mastros da Sagres, a 45 metros de altura.<br />
Leves, saindo do cesto de gávea para as vergas com o arrojo que o meio exige<br />
da nossa mocidade. Também já disse que não conheci mais ninguém dos meus<br />
amigos e vizinhos daqueles sítios transmontanos que superasse o peso das<br />
dificuldades para tanta felicidade.<br />
Porém, apesar de tudo, não foi a Marinha que constituiu o cume da minha<br />
enorme sorte.<br />
18
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Andava eu torturando-me lá por essa terra transmontana sem rei nem roque,<br />
e lá muito longe, existia uma família singular, precisamente o berço da minha Amiga.<br />
Sem desfazer nas boas criaturas que vivem por esse mundo além, creio que mais<br />
ninguém, poderia ser o que ela foi e é, para mim. A minha namorada, a minha<br />
mulher. O retrato dela é este: linda, uma beleza à transparência como se provou.<br />
Alegre e confiante, responsável também, acarinhada pela mãe, pelo pai e pelos<br />
irmãos, sempre rodeada de mimos.<br />
Mas passaria por cima de coisas muito profundas se não invocasse a Senhora<br />
Gracinda, minha sogra, e o meu sogro, Sr. José Silva.<br />
A Senhora Gracinda viveu, como toda gente, com o coração e a oração, a vida<br />
dos seus filhos.<br />
Teve seis filhos. Vivia acomodada com eles e com o marido numa casita que,<br />
embora desconheça o motivo e a forma como se deu, lhe coube como recurso;<br />
todavia, ficou-me uma frase da Senhora Gracinda que, para mim, se afigura como de<br />
desagrado ou mesmo desgosto, apesar de pessoas amigas lhe terem oferecido uma<br />
casa melhor por uma renda barata e ela não aceitou: “Daqui, só para o cemitério…”<br />
Não sei qual o motivo; embora reconheça que é uma lacuna na pesquisa que tentei<br />
fazer para perceber quais as razões que levaram a minha sogra a abdicar de<br />
condições melhores para o casal e para os filhos. Ninguém me deu o menor sinal<br />
para esta sua opção.<br />
A casita era um rés-do-chão, teria cerca de 3 metros de frente, cerca de 15 de<br />
fundo, dois de pé direito, um patiozito de cerca de 3 metros da mesma largura da<br />
casa, emparedado por adobes apodrecidos. Uma fossa, que era despejada, de quando<br />
em onde, pela câmara, e deixava na casa um cheiro nauseabundo.<br />
eléctrica.<br />
Só nos anos cinquenta do século passado foi instalada, naquela casita, a luz<br />
A senhora Gracinda era de um irrepreensível aprumo e primava pela limpeza<br />
e pelo esmero que punha na sua casita e nos seus filhos. Dizia-se, como conta a<br />
19
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
minha mulher, que as pessoas conhecidas comentavam: “os filhos da „Gracindinha‟<br />
andam sempre limpos e impecáveis…” “Anda cá minha menina, dá cá um beijinho… andas<br />
sempre tão limpinha”.<br />
No pequeno pátio da casa, a Senhora Gracinda mandou fazer, dentro das suas<br />
possibilidades, um tanque em cimento. A principal razão desta obra deve-se ao seu<br />
recolhimento; não suportava ouvir as mulheres a falar da vida alheia, enquanto lavavam<br />
a roupa no tanque público. Era, sem dúvida alguma, uma pessoa de princípios que<br />
defendia escrupulosamente a sua privacidade, garantindo a sua verticalidade moral.<br />
Naquela casa havia paz e disciplina, sem ser necessárias grandes altercações de voz –<br />
bastaria abrir os olhes e os filhos se lhe submeteriam com mansidão e muito respeito –, como<br />
conta a minha mulher.<br />
Nunca faltou o alimento naquela casa, como a broa, a sopa, os “escoados”, a<br />
fruta como mimo mais saboroso. Carne, uma vez por outra e o leite sempre que<br />
possível. Estou a remeter-me principalmente aos tempos difíceis que toda a gente<br />
passava e por todo o país. No entanto, as regiões diferem entre si. Enquanto no<br />
Douro a fome entrava livre porta a dentro. A agricultura era quase exclusivamente a<br />
vinha – uma monocultura –, onde apenas se colhe o vinho e pouco mais; o valor da<br />
novidade ficava sempre aumentado na mão dos senhores das terras, para além do<br />
rigor dos invernos, o frio, a neve, a chuva, etc. Na região de Aveiro as pessoas<br />
tinham a possibilidade de tirar directamente do mar e do campo o peixe, as<br />
hortaliças, o pão, a carne, o leite, o queijo, a manteiga, o sal, etc. Poder-se-ia<br />
considerar uma verdadeira terra prometida. Refiro apenas dados superficiais, alguns<br />
deles próprios da natureza e das diferenças geográficas.<br />
Mas, em todos os lados há pobre e ricos, opressores e justos, gente ciosa e<br />
gente perdulária, também em Aveiro, evidentemente.<br />
Com isto já vimos que a Senhora Gracinda, o Senhor José Silva e os filhos,<br />
eram pobres mas dentro de uma harmonia comovente.<br />
20
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Se há pessoas muito marcantes por esse mundo além, a Senhora Gracinda era<br />
uma delas, uma pessoa maravilhosa. Nunca dialogámos, fosse acerca do que fosse. E<br />
se observo à distância a Senhora Gracinda, com olhos da alma, foi porque só mais<br />
tarde pude perceber por mim próprio o que é e o que faz a acção do Espírito entre<br />
os anónimos e anónimas que passam por este mundo sem expressão social a<br />
caminho da eternidade.<br />
A Senhora Gracinda criou ainda uma criança – o Tono – cujos pais partiram<br />
para a África e lha terão deixado entregue aos seus cuidados.<br />
Com este escrito quero dizer-lhe “Olá, Senhora Gracinda! bendita seja!”<br />
As referências que podemos fazer ao Senhor José Silva, o meu sogro, são bem<br />
mais habituais entre nós. No entanto sempre me impressionou aquela pessoa de paz<br />
e silenciosa, tão bem enquadrado naquele meio familiar já referido. Não se lhe<br />
notava profundidade intelectual, mas era uma pessoa escrupulosamente cumpridora,<br />
segundo se diz, nomeadamente na entrega da féria à esposa, única fonte de<br />
rendimento que a família tinha. Era um profissional muito considerado na arte de<br />
carpinteiro.<br />
Era com a féria da actividade profissional do marido que a mulher geria o<br />
sustento da família. Tinha brio em ter sido fundador de clubes de furor aveirense<br />
como é o Clube do Galitos e o Recreio Artístico. Segundo contavam, era um dos<br />
animadores diários dos grupos de trabalhadores que se reuniam nos Arcos antes de<br />
partirem para o trabalho.<br />
mulher.<br />
“O meu pai nunca me bateu; nem a mim, nem aos meus irmãos” – palavras da minha<br />
Fosse qual fosse a origem, o que sei é que foi nesta família que nasceu<br />
e cresceu aquela companheira linda e amiga – a minha mulher – que<br />
constitui a maior aventura e sorte da minha vida.<br />
21
A Acção Católica e <strong>Eu</strong><br />
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Era militante, desde os meus 22 anos, da Juventude Operária Católica (JOC)<br />
quando casei aos 29 anos; desde o casamento, por ter alterado o meu estado civil,<br />
passei a militar na Liga Operária Católica (LOC).<br />
Convém, antes de mais, apreciar a visão doutrinária e a concordância do bom<br />
senso de Monsenhor Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica. Faço-o<br />
principalmente porque é nele que encontro a liberdade, a isenção e a justiça do<br />
Evangelho. O contraste em que se processa a toada da minha vida está no tipo de<br />
cristianismo que descrevo desde Celeirós do Douro. Transcrevo a visão de justiça de<br />
Monsenhor Cardijn, referido por Marguerite FIEVEZ e Jacques MEERT 2 : “Depois<br />
de ter de ter ouvido e falado; depois de conhecer tantas situações e países diversos, Cardijn está<br />
deveras preocupado com a atitude que possam vir a tomar os cristãos a Igreja face ao pensamento<br />
incisivo de Karl Max. Contrariamente aos meios católicos tradicionais, ele rejeita uma atitude<br />
puramente negativa para com o marxismo.”<br />
“O anti-socialismo e o anti-comunismo, repete Cardijn, não bastam para salvar a classe<br />
operária nem para trazer de novo á Igreja as massas populares. Há no marxismo „uma alma de<br />
verdade‟ que é formidável e que não tem sido suficientemente considerada; é que Marx dá á classe<br />
operária uma missão redentora a cumprir, um destino messiânico. Está aí a força do marxismo!<br />
Na encíclica “Divini Redemptoris”, consagrada ao comunismo, fica-se no aspecto das coisas. A<br />
maior parte da mesma é dedicada àquilo que é preciso fazer para ultrapassar, para substituir o<br />
comunismo… Mas quanto à missão divina das classes operária nada se diz aí”.<br />
Nada, nem ninguém me dirá o contrário de que a edificação mental e<br />
espiritual do homem não gera o mais alto dos títulos e o maior dos objectivos<br />
humanos que não resulte da sabedoria da verdade e da grandiosidade de Deus. Nada<br />
há na terra que se compare a essa “ciência” divina. Faça o que fizer, o homem<br />
íntegro agirá submetido a essa condição, SERVINDO. A autoridade é Deus e nós os<br />
2 Cardijn, pag. 194<br />
22
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
servidores. Ninguém fica fora desta condição: servir o Deus e Senhor de plena<br />
sabedoria.<br />
Nem os bons nem os maus poderão afastar-se desta condição submissa.<br />
Ainda que, para muitos, Cardijn fosse uma pessoa duvidosa, tenho a certeza de que<br />
o seu espírito era daqueles homens livres e servo da doutrina por excelência – a<br />
Justiça do Evangelho. Digo isto porque essa mesquinhez religiosa e subalterna de<br />
muitos católicos chegou até mim próprio. Consequentemente, isso obrigou-me,<br />
naturalmente, a algum isolamento, lamentado o epíteto de “comunista”. A confusão<br />
é monstruosa seja pelo nível de onde parte a dúvida, seja pelo disparate que circula<br />
na cristandade ignorante e subalterna.<br />
Se temos de lutar é porque alguém nos está a subjugar. É um direito normal<br />
entre opressores e vítimas. Assim sendo, em que pomos a razão de ser das nossas<br />
lutas: pelos homens do grupo organizado com interesses corporativos, ou pela<br />
marca que recebemos proveniente do evangelho? E quem é que está autorizado a<br />
aconselhar e a submeter os humildes, humilhando-os e estimulando-os com<br />
promessas espirituais que um dia lhes serão concedidos no céu, mas em nada se<br />
confrontam no terreno com as injustiças? Por mim e pelo evangelho sempre tive na<br />
mente e no espírito essa missão divina na JOC e na LOC, de que fala Cardijn.<br />
Sei que o que penso e sinto pela Igreja está situado na comparação que faço<br />
entre a subserviência e o infantilismo dos cristãos que, por imagem, situo em<br />
Celeirós do Douro e o espírito libertador que encontrei em Cardijn. É nesse espaço<br />
que se encontra toda a minha andança cristã.<br />
Assim aconteceu. Apenas isso. De resto, o lugar em que os homens bracejam<br />
e se confrontam, fica, como é natural, à consideração de Deus. Deus é, entretanto,<br />
Pai de todos nós.<br />
O âmbito do trabalho era a Diocese de Aveiro e o Movimento coordenado<br />
por uma Direcção Geral sedeada em Lisboa. Os contactos a nível nacional<br />
23
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
aumentaram a partir da fundação de um Centro de Cultura Operária também com<br />
sede em Lisboa.<br />
A maioria desses meus mais chegados amigos, e eram muitos, já morreu, o<br />
que, para mim, além da frieza natural da morte, imagino-os simplesmente integrados<br />
no reino de Cristo. Este é o meu sentido de vida. Sei que o mundo não entende<br />
muito bem esta disposição em que a morte se esbate, na medida em que se fala de<br />
Vida.<br />
Jesus disse: “Virei buscá-lo”. Bom seria que as pessoas, pelo menos as que têm<br />
fé, soubessem planear o seu curso de vida na sequência que ela tem face à transição<br />
que há entre esta e a outra vida.<br />
A Verdade e a firmeza de Jesus que está em todos os seus ensinamentos; cito,<br />
apenas, alguns que julgo de importância nuclear:<br />
Quem, depois de deitar a mão ao arado, olha para trás, não é apto para o Reino de<br />
Deus (Lucas 9:62).<br />
Deixa que os mortos enterrem os seus mortos, vai e anuncia o reino de Deus<br />
(Lucas 9:60).<br />
Mas, onde quer que não vos receberem, saindo daquela cidade, sacudi o pó dos<br />
vossos pés, em testemunho contra eles. (Mateus 9:5).<br />
Deus é Espírito e o Espírito não tem dimensão. Podemos adorá-Lo do mar,<br />
da terra, das estrelas, do recanto mais longínquo do Universo porque Ele é a própria<br />
Vida. Também, segundo nos diz Jesus, Deus é Espírito e é em espírito que O devem adorar<br />
os que O adoram em verdade e em justiça.<br />
Nós, homens, somos o alvo do seu amor, obviamente. Não conhecemos<br />
nada, além de nós, que tenha esta sensibilidade espiritual de O sentir e de O amar.<br />
Quem escuta a sua palavra rodeia-se naturalmente de um sem fim de segredos e<br />
mistérios. Só Ele pode ser o Norte correcto.<br />
24
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
As pessoas não poderão fazer das palavras de Jesus uma espécie de “cantiga<br />
rotineira” a embelezar discursos ou sermões, mas terão de descobrir e depois<br />
assumir que Jesus é Deus. Que é alimento da fé e da inteligência humana. Temos<br />
que saber e acreditar efectivamente que Jesus é o Salvador descido do céu.<br />
“<strong>Eu</strong> sou o pão vivo descido do céu. Disse Ele."<br />
“Declarou-lhes Jesus. <strong>Eu</strong> sou o pão da vida; aquele que vem a mim, de modo algum terá<br />
fome, e quem crê em mim jamais terá sede. Mas como já vos disse, vós me tendes visto, e contudo<br />
não credes. Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o<br />
lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que<br />
me enviou” (João 6:35,38). E, ainda: “Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por<br />
Deus. Portanto todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Não que alguém tenha visto<br />
o Pai, senão aquele que é vindo de Deus; só ele tem visto o Pai. Em verdade, em verdade vos digo:<br />
Aquele que crê tem a vida eterna. <strong>Eu</strong> sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e<br />
morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. <strong>Eu</strong> sou o pão vivo<br />
que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu darei pela vida do<br />
mundo é a minha carne” (Jo.6: 45,51).<br />
Isto fez parte da minha aprendizagem aos vinte e dois anos de idade e foi com<br />
esse “apetrechamento que apareci na Juventude Operária Católica e depois na<br />
Liga Operária Católica em que os problemas do mundo do trabalho exigiam o<br />
nosso apostolado. As nossas fontes eram as encíclicas do trabalho como a Rerum<br />
Novarum, Pax In Terris, Mater et Magistra e outras. A isso juntou-se o ânimo e o<br />
dinamismo de Cardijn, mais a sabedoria que adquirimos em esboços de Sociologia<br />
vindos da Universidade de Luvaina, por intermédio do locista Dr. Calos Augusto<br />
Fernandes de Almeida.<br />
Importa dizer que já em 1932 tinha estado em Portugal a dar formação aos<br />
sacerdotes e jovens portugueses um homem extraordinário da Igreja e do mundo,<br />
precisamente o Fundador da J.O.C., Juventude Operária Católica, Monsenhor<br />
Cardjin, também sociólogo, formado naquela Universidade.<br />
25
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
A avaliar pela obra de Marguerit Fiévez e de Jacques Meert, em 1932 foram<br />
lançadas as bases da Acção Católica e no ano seguinte – 1933 – voltou Cardijn para<br />
dirigir um curso de Assistentes, no Seminário dos Olivais.<br />
Dizem os referidos a escritores: “Indirectamente pelo menos, Cardijn estava com esta<br />
actividade a preparar o lançamento da JOC em boas condições que, por vezes, não era dos leigos<br />
que vinham as maiores dificuldades na construção do movimento jocista, mas – quem diria – do<br />
próprio clero”.<br />
Mas, o que agora quero referir é que o fechar os olhos à eventual solução do<br />
problema que enfrentamos com diplomacias e meias verdades, agíamos até mais<br />
adiante, de facto, de modo que nem tudo fique como dantes. Ser cristão é um risco.<br />
O método de Monsenhor Cardijn é que é: Ver Julgar e Agir.<br />
Ver, Julgar e Agir proporciona evangelização, porque agimos numa<br />
perspectiva da fé. Porque o que vemos são problemas de pessoas que não tiveram<br />
acesso à liberdade e ao pão de cada dia – gente sujeita a poderes mais ou menos<br />
escravizantes do “próximo” Gente ignorante que não sabe defender-se dos<br />
opressores, muitos deles que até pagam o “dízimo da hortelã” 3 e de “consciência limpa”,<br />
são aceites como cristãos cumpridores. Porque nos debruçamos a analisar os<br />
problemas e julgamos as causas e as consequências que poderão ter no terreno<br />
concreto. Porque agimos por amor a Deus e ao Próximo com o nosso saber ou a<br />
nossa formação específica, profissional, e sem dúvida através dos carismas que cada<br />
qual possui.<br />
Ninguém pode mudar a Justiça do Evangelho, mas o facto havia<br />
desencontros fundamentais entre este tipo de apostolado e as orientações da Igreja.<br />
Para muitos era temeroso levar longe de mais a justiça ainda que detectada à<br />
luz das próprias encíclicas como, por exemplo, a Rerum Novarum, Pax in Terra e<br />
mesmo a Mater et Magistra, de João XXIII.<br />
3 Referência de Jesus ao falar da hipocrisia de um doutor da Lei: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque dais o dízimo da hortelã, do<br />
endro e do cominho, e tendes omitido o que há de mais importante na lei, a saber, a justiça, a misericórdia e a fé; estas coisas, porém, devíeis fazer, sem<br />
omitir aquelas.” (Mateus 23:23)<br />
26
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Um exemplo: nesse meu tempo de acção, no fim de um trabalho locista que<br />
deu brado na área do sócio/político, na cidade de Aveiro, exactamente um trabalho<br />
sobre a Mater et Magistra, um sacerdote concluía numa conversa de roda: “esta<br />
Encíclica, Mater et Magistra, após a sua saída, fez, desde logo, cem mil comunistas, na Itália.<br />
Outros diziam: bom as encíclicas “não constituem matéria de fé”.<br />
Lá que o sistema político desconfiasse de nós e nos vigiasse, seria muito mais<br />
coerente, mas a grande estranheza era a classificação que nos vinha da parte de<br />
católicos, só porque não agíamos segundo o seu modo de estar.<br />
Recordo do evangelho. Um dia os Apóstolos encontraram no seu caminho<br />
um indivíduo a fazer milagres e que os fazia em nome de Cristo. Ora os apóstolos,<br />
supondo que só eles tinham o “monopólio dos bens de Deus” mandaram calar o<br />
fazedor de milagres e, de seguida, foram relatar a Jesus o insólito acontecimento.<br />
Jesus disse: “Deixai, porque quem não é contra nós é por nós” (Marcos 9:40). Mas a<br />
formação não ajudava na verdade e na amplitude da Acção universal de Deus.<br />
O Locista, Dr. Carlos Augusto Fernandes de Almeida.<br />
Se tenho amigos e companheiros de apostolado e não podendo menciona-los<br />
a todos, lembro dois o Manuel Alpiarça, que foi o rapaz que ouvi primeiramente<br />
falar em Lisboa e me revelou o Movimento da JOC; foi um companheiro idóneo e<br />
competente durante toda a vida e por quem dou graças a Deus, pela sua afabilidade<br />
entre nós. Recordo, igualmente, o Carlos Augusto. Importante base dos nossos<br />
conhecimentos de sociologia.<br />
Também formado, como Cardijn, em Sociologia, na Universidade de Luvaina,<br />
ao Carlos Augusto devemos um passo de gigante na aplicação no terreno do nosso<br />
apostolado. Já falecido, foi um elemento da LOC que me conheceu como ninguém.<br />
Desapareceu novo desta vida e, também, por ele louvo a Deus que nos une.<br />
27
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Teve ocasião de me escrever, já perto do seu desaparecimento, a propósito de<br />
dois livros que publiquei: “CAPELAS DE AVEIRO” e “DOS TENEBROSOS<br />
INVERNOS AO TEMPO DAS FLORES”.<br />
Disse ele:<br />
Cópia:<br />
Caro Morais,<br />
28<br />
“Lx 8.7.2002<br />
Foi com grande alegria que recebi o teu livro „Capelas de Aveiro‟ que muito apreciei e<br />
também o livro que te preparas para publicar „Dos Tenebrosos Invernos ao Tempo das flores‟.<br />
Ambos li com o maior interesse. O primeiro permitiu-me descobrir uma faceta da tua<br />
personalidade que desconhecia quase por completo, isto é, as tuas qualidades artísticas. O segundo<br />
porque descobri através do mesmo o teu percurso de vida que ajuda a compreender o teu espírito<br />
cristão e a tua revolta […].<br />
Sempre me impressionou a tua fé e o teu militantismo operário e Cristão que ambos temos,<br />
como pontos comuns na nossa vida o grande amor à classe trabalhadora e um grande desconforto<br />
pela forma como a Igreja, com raras excepções, enfrenta e olha pelos problemas sociais.<br />
Desde que te conheço que considero que és um exemplo de vida tanto na tua vida social<br />
como na tua vida de cristão e, certamente, que muitas das tuas qualidades se explicam pela tua<br />
vivência de infância em Celeirós e por todas as situações que testemunhaste nessa aldeia de<br />
„Tenebrosos Invernos‟.
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Felicito-te por teres a ideia de publicar „Dos Tenebrosos Invernos ao Tempo das Flores‟ e,<br />
por isso, desejo-te um grande sucesso editorial e social.<br />
Quando programar uma nova viagem ao Norte tentarei visitar-te em Aveiro, juntamente<br />
com outros companheiros de lides passadas.<br />
Um grande abraço para ti e para a tua família.<br />
Carlos”<br />
Reproduzo a carta fac-similada, nas páginas seguintes.<br />
29
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
30
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
31
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Obrigado, Carlos Augusto, pela tua amizade.<br />
O meu amigo Conde<br />
E, como tudo se liga, aproveito para recordar o meu amigo Bartolomeu<br />
Conde, colega de profissão o qual fez a apresentação do livro “Dos Tenebrosos Invernos<br />
ao Tempo das flores”. Trabalhámos 15 anos na mesma empresa e participou em<br />
diversos trabalhos de formação sindical na LOC.<br />
O que diz o Conde, no lançamento do livro “Capelas de Aveiro”:<br />
“Falar em público de um Amigo ou da sua Obra, é sempre um Acto que traz restrições ao<br />
orador, pois, por ser Amigo, só devemos falar dos traços positivos do seu carácter e da perfeição da<br />
sua Obra, omitindo qualquer ponto menos positivo.<br />
No caso do Zé Morais estou à vontade, pois conheço-lhe as virtudes – e tantas são! – e um só<br />
defeito lhe aponto: a frontalidade!<br />
Este defeito, - que nalguns casos é tido como virtude - nota-se no seu modo estar na Vida, na<br />
maneira como se comporta com os outros, na verdade nua-e-crua com que trata qualquer situação<br />
onde esteja envolvido ou desta seja mero espectador.<br />
É um feitio que não se dá para a bajulação, nem para vénias de vassalagem.<br />
O Zé encara a Vida com frontalidade – talvez por Ter sido criado entre os penhascos da sua<br />
terra natal, Celeirós de Trás-os-Montes, circunstâncias muito diferentes das que, como nós,<br />
beneficiaram deste consolador vai-e-vem das marés que nos permite balançar nas ondas...<br />
Lembro-me de uma vez, era já noite, quando estávamos os dois a pintar cenários para uma Festa<br />
de Natal da Celulose – já lá vão 40 anos! –, eu ter criticado um azul numa das bambinelas<br />
pintadas pelo Zé Morais.<br />
Critiquei... critiquei... fartei-me de dizer mal daquele azul. O Zé defendia com unhas-e-dentes<br />
aquela cor: oh pá, está bem... está bem pá! Para lá com isso... disse-me, a olhar-me fixamente.<br />
Amuei. Quando a carrinha da Empresa nos levou para casa, já passava da meia-noite, não me<br />
despedi dele. <strong>Eu</strong> estava profundamente amuado, com o azul e com o Zé.<br />
Ao outro dia, o Zé agarrou-me num braço e levou-me aos cenários: olha bem pá, achas o azul<br />
mal? Olha bem...<br />
Olhei: o azul, afinal, estava correcto! Tive vergonha.<br />
Ainda procurei um motivo, - mas nada. Arranjei uma desculpa: oh Zé, eu ontem devia estar com<br />
fome!<br />
Isto que contei é um exemplo da persistência com que o Zé Morais defende aquilo que faz ou<br />
aquilo em que crê. É homem de “antes quebrar que torcer”.<br />
32
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Nós – ou alguns de nós – recebemos influências deste clima do litoral: de manhã nevoeiro, sol ao<br />
meio-dia, vento p‟rá noite! Em Trás-os-Montes, o clima não sofre tantas alterações: ou é frio de<br />
estarrecer, ou calor de abrasar.<br />
Um dia, aqui em Aveiro, estava eu num café a conversar com três amigos, hoje do outro lado: o<br />
Dr. Luis Regala, o Juiz Dr. Maya Gabriel e o artista Carbaty.<br />
Este, o Carbaty, depois de tomar o café, foi à sua vida, vida que eu critiquei, pois andava numa<br />
vida nocturna um pouco relaxada.<br />
O Dr. Maya Gabriel, lamentou as minhas críticas: - Vocês, os de Aveiro, são cá uns patuscos!<br />
Ora eu, sabia o significado de patuscos, mas dito por aquele Amigo, transmontano-beirão, crítico<br />
muito subtil e incisivo, - que significado teria? E perguntei:<br />
– O que é isso de patusco?<br />
– Vocês muito gostam de mordiscar uns nos outros!<br />
– E lá para as suas bandas, não mordiscam?<br />
(Demorou uns segundos)<br />
– Não!... Não!... Mas, quando temos de morder, vem carne agarrada!<br />
Ora o Zé, é transmontano, e embora tenha sofrido uma certa osmose temperamental nos seus<br />
quarenta anos de Aveiro... ainda as suas mordeduras não perderam de todo a sua força quando,<br />
mesmo que raramente, as aplica.<br />
O seu livro demonstra isso.<br />
Ele recorda com ênfase a vida dura dos transmontanos, a dele e a dos outros, uma escola dura<br />
onde se fez homem.<br />
Descreve no livro a sua Celeirós; canta no livro as flores campestres que embelezavam a mesa para<br />
a visita pascal; canta chorando o martírio dos que mourejavam, por uma côdea-rilhada, sob o sol<br />
ardente, com a camisa colada às costas, os trabalhadores das vinhas que carregavam aos ombros os<br />
cestos com quatro arrobas de peso, tiradas lá dos fundos quase inacessíveis, rumo ao lagar. Recorda<br />
a severidade da Escola primária e a austeridade patriarcal!<br />
E fixa o que em criança ouviu a um padre: os homens têm a sorte dos paus: uns vão ser pintados<br />
de ouro, outros vão pró forno ou para a lareira, para serem queimados.<br />
Quis, aos doze anos, ir para Padre; mas porque o seu casaquito tinha uma nódoa na lapela, foi o<br />
motivo invocado para a sua rejeição de entrar no seminário!<br />
Foi então aprender serralharia, mas pouco tempo durou essa rodagem, pois a oficina entrou em<br />
falência; teve guarida na alfaiataria de um vizinho, onde aprendeu bastante desse ofício, mas o<br />
mestre adoeceu e o Zé ficou com a agulha e as linhas na mão; mas como era tempo de guerra, o<br />
volfrâmio era então o rei, o Zé foi para esse eldorado; mas a guerra acabou e o volfrâmio foi às<br />
malvas. Que fazer, agora?!... foi apanhar azeitona, e vá-que-não-vá, tomou gosto e até aprendeu a<br />
arte de podador de oliveiras, em curso que mereceu um diploma!<br />
Mas a poda de oliveiras é trabalho sazonal, acaba logo.<br />
33
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
E lá vamos ver o Zé a partir, à marretada, matacões de xisto! O Zé queria trabalhar, tudo<br />
servia, até andou a limpar chaminés!<br />
Mas o dia chegou. Oh nossa Senhora dos Aflitos! À porta da regedoria de Celeirós, numa lista<br />
de recrutamento para a Marinha, lá estava escarrapachado o nome do Zé, completo e em letra de<br />
forma: José Monteiro Morais!<br />
“Um mundo novo se abriu na minha frente – diz o Zé – tão amplo que viajei por esse mundo<br />
inteiro”! Conheceu o mar largo, os continentes, os povos de cor e costumes diferentes! Outros<br />
conhecimentos, outros modos de viver; tudo isso sacudiu o nosso herói e ei-lo, sem nunca deixar a<br />
guitarra, sua companheira nas horas de solidão ou de lazer, a raciocinar e a ponderar sobre os<br />
problemas sociais, religiosos e políticos que afectam a comunidade humana, já não centrada em<br />
Celeirós do Douro, mas neste mundo universal onde abunda tanta desumanidade.<br />
Bem! Mas a Marinha acabou! O Zé, sempre activo, já sem farda, aprende dactilografia, tira um<br />
curso de guarda-livros... e vamos encontrá-lo como dactilógrafo numa empresa de Verdemilho; mas o<br />
cheiro de Cacia despertava-lhe os sentidos e daí a pouco as portas da Celulose estão abertas. Aí o<br />
vamos encontrar; aí vamos ter como escriturário, como companheiro, como homem de Cultura...<br />
enfim, como Amigo!<br />
Fora das horas de trabalho ou das que dedicava à família, lá está o Zé – aquele que em miúdo<br />
queria ser padre – metido na Liga Operária Católica, trabalhando pela Cultura do trabalhador,<br />
através de um modelar sindicalismo cristão, na organização de Festas Natalícias, do Teatro<br />
recreativo, deixando nestes campos um excelente exemplo de promotor da Cultura operária. Ele<br />
sente que o mundo precisa de Servidores e apela no seu livro aos que têm especificamente essa missão;<br />
que basta de discursos literários, que promovam a construção de um Mundo melhor, que dêem<br />
testemunho da Verdade, que apregoem a Boa Nova – NASCER DE NOVO em Amor e em<br />
Justiça.<br />
Em conclusão: o livro do Zé Morais abre amplas janelas para um panorama rico de<br />
Humanidade.<br />
Vale a pena ler este livro do Zé Morais – “Dos Tenebrosos Invernos ao Tempo das Flores” –<br />
Este transmontano, que salpicou com o sal-de-Aveiro a sua vida de bom cristão, de alegre<br />
companheiro e de bom Amigo – que toca guitarra, que pinta quadros – mostra no livro que é um<br />
Homem bom ao serviço do mundo<br />
E não digo mais nada. Leiam o livro, não se arrependerão. Mas desde já aviso os eventuais<br />
leitores: o livro dá muito para pensar.<br />
Parabéns ao Zé.<br />
Setembro/2002<br />
Bartolomeu Conde<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Transcrição, fac-similada, do recorte do Jornal que noticia o lançamento do livro<br />
35
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Concurso da Cruz no Mundo do Trabalho<br />
36
Lembranças<br />
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
O testemunho do Carlos Augusto, acima referido, representa para mim um<br />
grande alimento espiritual, por ser a verdade e a confirmação dos valores que<br />
sempre me sustentaram a vida.<br />
Agora, nesta idade (aos 85 anos), parece-me que da minha parte está tudo<br />
feito; no entanto vivo e reajo ainda que muito longe do vigor de outrora. Ando mais<br />
devagar mas consciente e animado. Entendo que Deus há-de estar sempre comigo.<br />
Falo de mim e até parece que não tenho mais ninguém. Mas não é assim; tenho uma<br />
família a quem muito amo e que me ama muito. Penso que todos estamos no<br />
mesmo caminho e que só Deus conhece o futuro. Confio.<br />
Vejo que, em grande parte, a vida é uma luta composta de interesses<br />
saudáveis, perpassando por uma enorme mancha de frivolidades, até mesmo<br />
incluindo actos criminosos.<br />
Cada qual terá que penalizá-la à sua maneira, face ao Alvo comum a todos<br />
nós: Deus. Para muitos, a sua consciência ou a conveniência do partido sujeitos à<br />
disciplina de voto faz deles um produto de ser humano sem liberdade, aventureiro,<br />
sem definição de personalidade íntima, tornando-os peças do consumismo<br />
incaracterístico da matéria. Mas a liberdade está no espírito e este vive das leis da<br />
Verdade. É, contudo, neste meio sócio/político que eu também tenho de viver,<br />
libertando-me, quanto possível, particularizando: Ninguém pode mentir a Deus.<br />
Obviamente que é uma questão de fé, primeiramente; mas a inteligência<br />
humana deveria perceber que são os valores da justiça e do amor, expressos na<br />
Doutrina de Jesus Cristo, que deveriam fazer um mundo generoso e bom.<br />
Note-se que não falo de religião, mas sim da garantia da sabedoria e da justiça<br />
da doutrina que inspira os nossos actos.<br />
Mas, não é assim, restando tal doutrina para os homens de boa vontade.<br />
37
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Agora olho e não vejo, escuto e não oiço, apuro todos os meus sentidos e<br />
nada se torna claro e definitivo na minha racionalidade. Penso, contudo, por via da<br />
fé e concluo que esta minha condição humana feita de corpo e espírito tem de<br />
esperar por Alguém que, a seu tempo, nada deixará por explicar.<br />
Não invento nada e consola-me a alma fazer parte dos homens que, lá de<br />
muito longe, ao longo da História, se dispuseram, como eu, a procurar Deus.<br />
Transcrevo do Livro de Eclesiástico o seguinte:<br />
“Filho, leva a cabo as tuas obras com mansidão, e atrairás não só a estima, mas também o<br />
amor dos homens. Quanto maior és, mais te deve humilhar em todas as coisas, e acharás graça<br />
diante de Deus; porque só o poder de Deus é que é grande, e é pelos humildes que ele é honrado”.<br />
Não procures saber o que excede a tua capacidade, e não especules o que ultrapassa as tuas<br />
forças (intelectuais), mas pensa sempre no que Deus te mandou, e nas muitas obras suas não sejas<br />
curioso. Porque não te é necessário ver com os teus olhos o que está escondido. Não te apliques a<br />
esquadrinhar com ânsia as coisas supérfluas, e não indagues com curiosidade as diversas coisas de<br />
Deus. Porque muitas coisas te foram reveladas que excedem a inteligência humana. A muitos<br />
enganou a falsa opinião que formavam delas, e as suas conjecturas sobre tais coisas conservaram-nos<br />
no erro” (Eclesiástico 3:19,26).<br />
A VERDADE DE DEUS tem custos. Insurgi-me recentemente contra a<br />
prática do aborto humano e isso causou dissensões e contendas muito próximas de<br />
mim.<br />
A minha questão era simplesmente. O aborto mata uma criatura ainda em gestação que se<br />
lhe interrompermos o percurso não haverá a pessoa que aí viria. Creio que aqueles que planificam a<br />
sua vida, apoiados nesse crime, ficam com uma enorme dívida à justiça divina Mas, penso também<br />
que o crime terá incidência altamente perniciosa no equilíbrio da sociedade. O crime foi instituído na<br />
lei em Portugal, com já é em outros países ditos civilizados, através de referendo em que metade do<br />
país ganhou pela negativa e por pouco, à outra metade, o que os políticos e materialistas conscientes<br />
ou inconscientes feito por políticos governantes arvorando em arco como se fora uma grande façanha<br />
da sua governação. Entretanto, senti como foi insidiosa a campanha, como por exemplo, dizer-se<br />
38
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
que o feto é motivo de análise metafísica. Alguém contrário lhes dizia: “não; o feto é o ser vivo que<br />
se sente fisicamente no ventre materno. Entendo que só um aventureiro e arauto de um<br />
futuro vazio, não entendem que a lei é criminosa.<br />
Hoje, com 85 anos de idade ocorre no meu espírito uma paz semelhante<br />
àquela paz doce e benfazeja para o corpo e para o espírito que sentimos, por<br />
exemplo, em Noite de Natal.<br />
Mas ainda está em mim uma ânsia de questionar sobre a pureza da Doutrina<br />
dos evangelhos e continuar a dizer que a VERDADE que realmente interessa está<br />
no respeito pela pessoa de Jesus Cristo e da sua doutrina.<br />
“Então aproximou-se um dos escribas que os tinha ouvido discutir e vendo que Jesus lhes<br />
tinha respondido bem, perguntou-lhe qual era o primeiro de todos os mandamentos. Jesus respondeu-<br />
lhe: o primeiro de todos os mandamentos é este: ouve Israel: o Senhor teu Deus é um só Deus; e<br />
amarás o Senhor teu Deus com rodo o teu coração, e com toda a tua alma e com todo o teu<br />
entendimento, e com todas as tuas forças Este é o primeiro mandamento. E o segundo é semelhante<br />
e o primeiro: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que<br />
estes” (Marcos 12: 28,31)<br />
Eis a súmula do cristianismo sem sofismas:<br />
“Se estiveres apresentando ao altar a tua oferenda e aí te lembrares de que teu irmão tem<br />
alguma coisa contra ti, deixa a tua oferenda lá diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com teu<br />
irmão e vem então apresentar e tua oferenda” (Mateus 5:23,24).<br />
Fora disto, tudo é tecido entre farsas e mentiras.<br />
Reafirmo que o cristianismo segundo Jesus Cristo, é de compreensão simples<br />
e directa: Amar a Deus e ao Próximo, ponto final. Reafirmo que se a Igreja Católica<br />
se perde em mirabolâncias e não estrutura favoravelmente a implantação desta<br />
condição cristã, simplesmente não evangeliza. A luz de Cristo é outra que não as<br />
velas e os dourados das igrejas, nem tão pouco o culto árido em que põe o seu<br />
empenho. Sabedoria e Verdade são a Luz de Cristo.<br />
39
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Acomodados na sua estagnação, outras doutrinas e teses filosóficas invadem o<br />
terreno inculto dos que haveriam de ser católicos por Jesus Cristo.<br />
Zacarias Sarrazola Andias<br />
Deixei para o fim um testemunho de vida de um militante da LOC, o Zacarias<br />
Sarrazola Andias. É um testemunho simples que enuncia uma actividade admirável,<br />
como se verá.<br />
Numa das Secções de Militantes da Liga Operária Católica, em Aveiro, era do<br />
programa irem os locistas rezar em conjunto à Sé. Nessa altura, eu era um dos mais<br />
antigos, embora houvesse outros ainda mais antigos que, ao fim e ao cabo, não<br />
deixavam de ser daqueles que, indo à missa do preceito, cumpriam todo o bem que<br />
esse cristianismo sugeria. Muito dificilmente cumpríamos o que combinávamos em<br />
cada reunião. A desculpa era “bem, não pude”… e o assunto ficava sempre para a<br />
semana seguinte e dessa para a outra.<br />
coisa nova.<br />
Começava a surgir uma tentativa de animação, onde essa oração na Sé era já<br />
Em determinada altura, rezámos em conjunto, pedindo a Deus, compungidos,<br />
com pena de uns carpinteiros da Beira-Mar que tinham sido atingidos gravemente<br />
por um incêndio. A casa, ferramentas e as máquinas tinham sido devoradas pelo<br />
fogo, o que causou grande consternação.<br />
Rezámos, pois, em grupo pelos infelizes e viemos embora. De notar que eu<br />
era presidente diocesano. Ainda subordinado ao modo antigo de ver as coisas, e<br />
talvez em jeito de transição para olhar com justiça humanista e espiritual muito<br />
própria do cristianismo, saímos da Sé. Chegados ao adro, um dos mais novatos<br />
locistas, de nome Zacarias Sarrazola Andias, disse em tom repreensivo: “Então<br />
como é; rezámos e não vamos fazer nada?”<br />
Estranhei o insólito reparo, pois estávamos habituados a rezar como toda a<br />
gente da Igreja, para que Deus se compadecesse dos nossos problemas, fossem eles<br />
40
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
quais fossem, mas também estranhei porque, quanto a dinheiro, não há na L.O.C.<br />
gente de grandes posses económicas. Perguntei:<br />
– Que achas que devemos fazer? (também perguntei na qualidade de<br />
responsável da secção em que o grupo se inseria).<br />
– Temos de arranjar forma de lhes cobrir a oficina, arranjar algumas<br />
ferramentas e máquinas que, minimamente, lhes permita trabalharem – respondeu-<br />
me.<br />
isso?<br />
– Muito bem – disse eu – E onde havemos de arranjar o dinheiro para tudo<br />
Ao que ele me retorquiu:<br />
– Pedimo-lo pela cidade, nos bancos, no comércio, nas empresas, etc.<br />
Deus me livre de minimizar a importâncias de tais palavras e disse:<br />
– Muito bem, é isso mesmo que vamos fazer.<br />
Este episódio ensinou-me muito. Foi mais uma ocasião que deu sentido a um<br />
cristianismo objectivo aplicado á vida concreta.<br />
Ficou determinado. Imediatamente, os cinco ou seis militantes que éramos,<br />
demos, desde logo, provimento à actividade combinada.<br />
Pedimos ajuda nos bancos, nas firmas, às pessoas e não tardou que os<br />
carpinteiros tivessem um telhado novo, algumas máquinas e ferramentas para<br />
retomarem o seu labor.<br />
evangelho.<br />
Tudo partia da formação e da acção objectiva, segundo a doutrina do<br />
As coisas não ficaram circunscritas ao exemplo aqui apontado. Continuámos,<br />
obviamente, nas nossas actividades e, bastante mais adiante, o Zacarias voltou a ser<br />
figura exemplar de grande monta.<br />
41
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
É justo e consolador distinguir este meu amigo Zacarias pela sua vontade<br />
férrea e a fé que o levam a uma acção contínua com os olhos no Próximo.<br />
Anos e anos já passaram e sua obra ainda não terminou. Juntamente com a<br />
sua esposa Maria de Lourdes, eis que se dedicam a vida inteira a uma azáfama<br />
contínua e de uma forma totalmente gratuita. Confesso que já não é só pelo meu<br />
amigo locista, mas a sua obra e dedicação atingem um relevo tal que não pode ser<br />
ignorado.<br />
O Zacarias é um indivíduo forte. Foi remador olímpico do clube dos Galitos,<br />
foi maroto, empregado dos C.T.T, empregado de um banco e, perto da reforma, fez<br />
uma moradia interessante, também porque os pais lhe deixaram herança. Mas a força<br />
do Zacarias é de ordem moral, justiça e amor ao próximo. Conheço-o muito por<br />
esse lado, porque sempre me envolveu na sua conduta cristã, ainda que a minha<br />
prestação não passasse de um conselho aqui e ali.<br />
seguinte.<br />
Há uma longa história a seu respeito; mas, para facilitar, resumo tudo ao<br />
Um dia este meu amigo concorreu a Presidente da Junta e perdeu. Houve<br />
uma notícia de um jornal, O Litoral, que descreve o perfil da sua figura, que me<br />
escuso de enumerar. É que a sua estadia da freguesia de Santa Joana tem meandros<br />
longos e complexos ante a forma de ser cristão e ser ou não aceite pela Igreja local e<br />
Diocesana.<br />
Diz pois o Litoral, de 30 de Outubro de 1997:<br />
“Zacarias Sarrazola Andias<br />
Um candidato à Presidência da Junta de Freguesia de Santa Joana<br />
Zacarias, nome de guerra do tempo dos gloriosos feitos alcançados pelo remo português nos<br />
campeonatos internacionais, não é um aveirense qualquer.<br />
Remador Olímpico do Clube dos Galitos e representante de Portugal no Campeonato de<br />
Remo da <strong>Eu</strong>ropa é um aveirense vencedor.<br />
42
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Maroto das Tanoeiras sabe que o sal, são muitas vezes lágrimas de sacrifício e de trabalho<br />
árduo debaixo de sol escaldante. É um aveirense sofredor.<br />
Presidente Diocesano da Liga Católica e Presidente do CENTRO SOCIAL DE<br />
SANTA JOANA, é um homem habituado a ouvir todos aqueles que sofrem, os pobres e os<br />
doentes.<br />
Quem o conhece sabe que Zacarias Sarrazola Andias assim é: vencedor, sofredor amigo do<br />
seu amigo, que luta pelo bem-estar do seu semelhante.”<br />
Seguem-se perguntas do Jornal:<br />
Litoral - Por que concorre à Presidência da Junta de Freguesia de Santa Joana?<br />
Zacarias - O que me move é contribuir para o engrandecimento da freguesia em que vivo,<br />
através de serviços em que porei todo o meu empenho e saber.<br />
As prioridades serão tidas em conta, a seu tempo segundo uma gestão criteriosa de uma<br />
equipa que eu considero idónea e capaz.<br />
(a pergunta seguinte refere o saneamento e águas fluviais)<br />
No ensino (pergunta o Jornal)<br />
Zacarias - Para além do amor e dos carinhos que nos merecem as crianças, elas são ou<br />
devem ser a causa das nossas maiores responsabilidades, em termos de futuro, visto serem,<br />
competentes ou não, os homens de amanhã.<br />
Um agradecimento ao Jornal pela preciosa ajuda.<br />
A Obra do Zacarias e da Sua Equipa<br />
Como já se viu nesse tempo de concurso à Presidência da Junta, já tinha sido<br />
edificado o Centro Social de S. Joana que recolhia e alimentava 230 crianças, na sua<br />
maioria provenientes de famílias de baixos recursos económicos. Uma boa parte do<br />
sustento era ainda compensada com ajudas particulares. Recordo, por exemplo, uma<br />
43
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
firma amiga do Zacarias que contribuía com pão diário para a totalidade daquelas<br />
crianças.<br />
Animado e decidido como é, ele e a sua equipa erigiram:<br />
Creche e jardim Infantil, onde se recolhem 230 crianças;<br />
Lar de Terceira Idade, onde recolhem 30 utentes;<br />
Centro de Dia, vindo a servir 30 utentes;<br />
Assistência Domiciliária, com transporte próprio;<br />
Todo o empreendimento dá emprego a 56 pessoas.<br />
Agosto de 2010 – Nesta data o Zacarias afastou-se.<br />
Nota: O Lar de 3ª Idade foi inaugurado pelo Ministro de Trabalho, O<br />
Presidente da Câmara de Aveiro e diversas individualidades, destacando-se, entre<br />
eles, anteriores presidentes de Câmara (também eles colaboradores de primeira<br />
linha) que muito honraram as pessoas que, ao longo do tempo, lutaram pela obra<br />
concluída.<br />
Conheci os meandros das lutas que houve e a obra, perante Deus e os<br />
homens. É mérito de quem a levou a bom termo e o grande agrado e devoção do<br />
Zacarias é que Deus e o Próximo vejam e sintam, porque foi o prisma que sempre<br />
emoldurou os seus trabalhos.<br />
Tenho dito neste trabalho que o cristianismo não é estático e só tem sentido<br />
enquanto dinâmico e edificante. Esta é maneira visível desse cristianismo. O<br />
Próximo e Deus são o motivo de todos os cuidados e de todos os projectos, sendo<br />
que tudo o mais é secundário.<br />
Sei que as pessoas vêem nestas palavras algo piedosa e, meramente, religiosa;<br />
se o fazem é porque não estão habituadas a olhar a verticalidade da doutrina de Jesus<br />
Cristo. Habituamo-nos a olhar a doutrina como simples religião de preceitos e<br />
ancestrais acomodações supérfluas e secundárias, quando o cristianismo de Cristo é<br />
44
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
o cumprir actos de verdade e de amor no meio que nos rodeia. É mesmo uma<br />
vergonha desenquadrar o cristianismo de Cristo, desta verdade exigente do Primeiro<br />
Mandamento.<br />
Na inauguração acima referida aconteceu um momento insólito e inesperado:<br />
o Zacarias abriu a sessão com a oração do Pai Nosso! Todos, incluindo o ministro,<br />
se puseram de pé perante a oração. <strong>Eu</strong> mesmo fiquei estupefacto e pensei, cá para<br />
comigo, que eu não faria tal. Não obstante, pude constatar que aquela assistência tão<br />
heterogénea, de pessoas tão desligadas da fé e do cristianismo activo e perspicaz<br />
como é o cristianismo do Evangelho, respeitaram tal solicitação. Esta oração do<br />
Zacarias, no dia da inauguração, significa um acto de imensa coragem a todos os<br />
títulos.<br />
Finalmente o Zacarias pôs termo à sua presença nas lides, da obra pois a<br />
idade já lhe pesa sobre os ombros.<br />
Também porque ninguém acaba nesta obra universal, pelo que todos nós<br />
esperamos o termo final que só a Deus pertence.<br />
45
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
Mudanças radicais<br />
Neste meu trabalho tento focar a minha análise da Doutrina que leio nos<br />
próprios evangelhos e relatá-la. Gostaria de o fazer da forma mais eloquente;<br />
contudo, fá-lo-ei da melhor maneira que souber.<br />
Tenho consciência de que só Deus tem direito a ser o alvo da nossa adoração,<br />
desejando eu que ninguém se atreva, fazendo de si próprio luz que não tem nem<br />
pode ter, como também tenho consciência de que só com Ele, através d’ Ele,<br />
acharemos a solução efectiva dos problemas e ansiedades que nos enleiam.<br />
Fosse devido à formação cristã católica que recebi dos meus pais e da Igreja,<br />
em Celeirós desde criança (não fui praticante que se recomendasse); fosse pela<br />
libertinagem – enquanto novidade – que, ao tempo, via na marujada; fosse por<br />
eventual vocação escondida, o facto é que, aos vinte e dois anos de idade, achei que<br />
devia ler e estudar, conscientemente, a doutrina dos evangelhos. Não me movia<br />
qualquer objectivo que não fosse conhecer a doutrina que, afinal, seria um potencial<br />
que me vinha da infância. Isto é, agora, adulto, acreditando em Deus como me foi<br />
incutido pelo meu pai e pela minha mãe (cada um à sua maneira), pensei em<br />
conhecer por mim próprio o que diziam os evangelhos.<br />
Devido ao conhecimento que ia adquirindo, em face do valor racional que se<br />
descobre nas palavras rigorosas e claras e propostas de Cristo, ia-se desfazendo em<br />
mim a vertente religiosa comum, que pratiquei até aos vinte anos, na minha terra.<br />
Achei que ali se confundia o rigor da verdade da doutrina de Jesus com gestos<br />
e costumes tradicionais, preceitos obrigatórios, estes mesmos mal cumpridos, e do<br />
ponto de vista o amor ao próximo, nem um sinal que visualizasse, ainda que muito<br />
tenuemente, confrontar os fiéis com a mística cristã a nível paroquial que é a prática<br />
do amor de Deus e do próximo. O amor a Deus e ao Próximo não se enquadra em<br />
sentimentalismos, devoções particulares em “esmolas caridosas”e ainda numa série<br />
de superficialidades em que os cristãos se apoiam. Explicando melhor: quando um<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
pároco enveredar por um apostolado que visa o amor do próximo, acontecem duas<br />
coisas além do efeito geral da comunidade: Uma é a consciência deste valor<br />
fundamental, a outra, o padre desperta ou implica com algum Zaqueu 4 que por lá<br />
exista na comunidade.<br />
De nada servem as palavras do pregador, as festas de Igreja, as velas, as<br />
procissões, etc., que nada dizem da Verdade da Justiça em Jesus Cristo. Daí a<br />
ignorância de tanta gente que a própria Igreja se recusa a não ver, muito menos a<br />
perceber que essa ignorância é resultado da sua própria forma amorfa de evangelizar.<br />
Acho que qualquer paróquia deveria ser considerada terra de missão.<br />
Depois é o comportamento dos “apóstolos” os padres, mesmo o mais<br />
responsáveis, instalados no conforto que lhes garante a própria Instituição – um<br />
poder e um céu para muitos cristãos –, ninguém consegue ver neles o Apóstolo<br />
convicto que serve no terreno, apenas impulsionado espontânea e habilmente<br />
movido pela chama do amor e pela imitação de Quem lhes dá o ser: Jesus Cristo.<br />
Lá, pelas terras transmontanas de onde sou oriundo, nunca ouvi tecer, no<br />
terreno apostólico, qualquer reparo frontal nem mesmo a menor esboço de denúncia,<br />
sobre problemas de justiça e tantos eram, essencialmente sobre as injustiças e<br />
desumanidades dos senhores das vinhas e da riqueza que delas resulta, sobre os seus<br />
trabalhadores.<br />
Não se pense que sou contra os ricos, ou contra quem quer que seja. Nem<br />
sequer preciso da sua ajuda para sobreviver. O que está na minha ideia é o desejo de<br />
que nos convertamos à exactidão da Verdade da doutrina de Jesus Cristo.<br />
Visto que não se criam estruturas e normas exigidas pelo Primeiro<br />
Mandamento, acredito que de nada vale o que fazemos, se esse Mandamento não<br />
for a chave exacta do tesouro que procuramos; não será uma missa dominical que se<br />
oferece ao paroquiano que o vai despertar para o seu crescimento na autenticidade<br />
da doutrina de Cristo. Sem o nosso investimento no rigor daquele Mandamento, o<br />
4 Homem rico que, tendo vivido roubando grande parte riqueza que possuía, arrependeu-se, quando elucidado Jesus Cristo.<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
meio degrada-se mais e mais, anarquiza-se, desinteressa, individualiza e nós vemos<br />
que recai sobre as pessoas o véu da ignorância sobre a Verdade que Jesus veio trazer.<br />
A Verdade de Deus não responsabilizará os ignorantes. Vejo que Jesus Cristo<br />
só nos responsabilizou depois de termos aprendido d’ Ele a sabedoria da salvação.<br />
Será pois de temer as culpas que tivermos nessa ignorância. Deus é Vida, Vida que<br />
se nos dirigiu, para sermos como Jesus, vivos conscientes e responsáveis.<br />
Na verdade, estive no meio dos acontecimentos, ignorante como toda a gente<br />
da terra e, aos 22 anos de idade, tive ocasião de estudar, observar e meditar na<br />
precisão da palavra de Jesus Cristo. A lógica que apuro é esta: Deus desceu dos céus<br />
para entrar na nossa dimensão e daí sermos ensinados, à luz da razão e da<br />
inteligência, tornando-nos, assim, filhos de Deus conscientes e livres.<br />
No meu decurso de vida, tive ocasião de ser um militante Acção Católica,<br />
essencialmente ligado com o mundo do trabalho, o que me trouxe promoção seja<br />
no sentido espiritual, seja na aplicação concreta do cristianismo neste sector. Estou a<br />
falar de conhecimentos sociais que me eram totalmente desconhecidos e que me<br />
serviram de orientação para toda a vida.<br />
O cristianismo, vertente fundamental em que se delineou toda a minha vida até aos dias<br />
de hoje, depois dos vinte e dois anos de idade.<br />
Sinto-me uma pessoa normal como o comprovam os actos da minha vida<br />
entre toda a gente, também normal; mas há diferenças especiais que, de há muitos<br />
anos, me permitem recusar a vulgaridade ou a superficialidade disto ou daquilo, o<br />
que me permite ser eu próprio na sociedade de consumo.<br />
Olhando simplesmente para a justiça que, transversalmente passa pela<br />
Doutrina de Cristo, e interpretada como sustentação da sociedade, por exemplo, dar<br />
seu a seu dono, jamais virar as costas a que têm dificuldades, proporcionar ensino<br />
para que ninguém seja ignorante, distribuir a riqueza produzida com equidade, a paz,<br />
a tolerância e, ainda, muitas outras regras, a Doutrina de Jesus Cristo seria a medida<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
como não há outra para fazer uma sociedade feliz. Uma sociedade de sonho que<br />
poucos entendem e de todo impossível de implantar entre poderosos que,<br />
brandindo as suas ideias de Norte a Sul, de Este a Oeste, matam e destroem a seu<br />
belo prazer, pelo estabelecimento do domínio a que chamam paz.<br />
A Doutrina de Jesus não passa de um sonho na construção desta sociedade.<br />
Repare-se: como pode vingar uma doutrina que, apesar de ter em si todas a normas<br />
próprias fundadas na Verdade, na Justiça e no Amor, num mundo governado por<br />
mentes tenebrosas como as de “A” que decide matar milhões de pessoas para impor<br />
a sua lógica. Outros que, fabricando e vendendo armas assassinas sorrateiramente a<br />
países paupérrimos em vez de os ajudar a matar a fome e a sede, eis os poderosos.<br />
Senhores da guerra e da ordem mundial. E tudo em nome da paz… Depois há uma<br />
multidão de candidatos á escala sempre superior, que são os ditadorezinhos<br />
traficando em vários patamares a justiça os direitos e a paz devidas ao Próximo.<br />
Quem for pela paz com sentido da verdade há-de, forçosamente, estar atento e à<br />
altura de perceber que o cristianismo deveria ser uma força contrária à agressividade<br />
do mundo em que vive. Mesmo que pareça impossível, Cristo vive num reino<br />
terreno e ainda que sejamos homens iguais podemos ter estabilidade. Quem é cristão<br />
conta com um espaço no seu Corpo Místico. Os seus escudos de defesa são a fé, a<br />
verdade e o amor. A questão é infinitamente grave e exige muito mais verdade e<br />
definição do que é ser-se cristão.<br />
Entenda-me quem quiser; mas o meu brado vai para o Senhor do Céu e da<br />
terra, por intermédio de Jesus Cristo. Os meus argumentos são originados, por um<br />
lado, do estado feroz que o mundo me sugere, do outro, pela ineficácia do<br />
cristianismo em que estagnámos. A Igreja que Cristo nos deixou está incapaz de<br />
incutir nos cristãos a consciência da própria acção de Cristo, que, como se viu, é<br />
bem a testemunha da situação. Não é com pobres panaceias que a Igreja se revê;<br />
fazer igrejas, turismos, cantigas, discursos, autoridade duvidosa, ilusões das douradas<br />
procissões, velas, sentimentos, simbolismos, etc. Por fim, um poder próprio,<br />
também, força organizada e fechada em si própria, da qual saem “autoridades”<br />
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com estatuto tal que os desliga do trabalho efectivo daqueles de quem vivem<br />
desligados.<br />
Na verdade esses, os ditos ministros das Igreja, não estão capazes de fazer<br />
entender que os cristãos não podem dormir à beira do abismo ingloriamente, ou<br />
mesmo estupidamente. Eles têm que perceber que foi a este mundo de trevas que<br />
Jesus veio, segundo os desígnios de Deus Pai, e que o grau exacto dos nossos<br />
comportamentos está na necessidade de alinhar as nossas consciências pelos<br />
sofrimentos que este mundo causou a Jesus Cristo. “Veio ao que era seu e os seus não o<br />
receberam” (João 1,11).<br />
espertos…<br />
“O meu reino não é deste mundo” Diz Jesus. (os filhos das trevas são mais<br />
O que quero dizer é que não é com vida flauteada, nem com artefactos, nem<br />
mesmo com artes de orador que enfrentamos o mundo onde Jesus se exprimiu e<br />
morreu.<br />
Dispa a Igreja todos os adornos materiais em que se apoia e Evangelize!<br />
A toada é de estagnação, oferendo aos crentes uma religião de preceitos<br />
obrigatórios e altar, sabendo-se claramente que o cristão há-de promover-se para vir<br />
a entender quem é Jesus Cristo e porque motivos O seguem. Mas há um outro<br />
aspecto fundamental que o lembrarei aos que têm a responsabilidade de ensinar e de<br />
dar o exemplo. Não vou deixar passar o momento sem referir o que é o cristianismo<br />
da Doutrina. Amar a Deus com todas as forças que tivermos, apoiados numa<br />
consciência responsável e de onde resulte uma aprendizagem e uma formação básica<br />
do que é amar o próximo como a nós mesmo, numa paróquia.<br />
Esta questão do Primeiro Mandamento encerra todo o conteúdo do<br />
cristianismo e não pode ser molestado com filosofias de letrados e puristas<br />
religiosos, doutores e tantos debruçados sobre o ponto a ponto mais alto da<br />
perfeição humana. O amor do Evangelho é, por condição, espontâneo. Por<br />
exemplo, é diferente um padre que só reza de um outro que dá conta que andam na<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
rua rapazes e raparigas á deriva e resolve tirar tempo à oração e vai atrás deles, como<br />
fez o conhecidíssimo Padre Américo. O primeiro padre, não passa de um<br />
funcionário, que se limita a rezar uma missa ou presidir a um funeral, ou passar a sua<br />
vida no culto e na pregação da ordem.<br />
Levar a Igreja de Cristo a ser considerada uma simples Entidade a respeitar<br />
entre outras, em nada se identifica com o perfil de Jesus Cristo.<br />
“Pai, não te peço que os tires do mundo, mas que se convertam e vivam” Oração de Jesus<br />
por nós. Mas a conversão que se pede em Jesus, é sem dúvida à altura da sua<br />
postura.<br />
Desde os vinte anos de idade, achei que o cristianismo deveria ser o caminho<br />
das sociedades, atendendo a que a Doutrina de Jesus tem todos os dados para<br />
satisfazer à ciência pacífica deste nosso convívio humano. A sua Verdade e a sua<br />
Justiça seriam a garantia da sustentação humana e limpeza de que o mundo precisa.<br />
Essa verdade e essa justiça não são, ainda, o tesouro que os cristãos venerem<br />
diante de Deus. Não será por seremos ou parecermos muitos e não creio em<br />
vanglórias extraídas de estatísticas – isso pode interessar apenas à Hierarquia<br />
Católica, por questões do ponto de vista sócio/político –; mas, o cristianismo de<br />
Cristo nunca pode servir como bandeira ou alienação de massas, pois tem uma<br />
mística própria. Até porque “São muitos os que rezam e poucos os escolhidos” “Nem todo o<br />
que diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus” ou se temos de conhecer alguém,<br />
“conhecê-los-eis pelas suas obras”.<br />
Não andará porventura a Igreja a pensar e a agir em moldes de sobrevivência?<br />
Um dia Jesus Cristo considerou que poderia ficar só, em que Ele se manteria<br />
firme na sua (fé) em Deus Pai e achou que todos poderiam ir embora, até mesmo os<br />
apóstolos, se estes mesmos não acreditassem na profundidade do rigor da sua<br />
palavra. Então, a igreja que vale é aquela que põe todo o seu empenho na qualidade<br />
(através da evangelização) e não na quantidade. Homens livres e descomprometidos,<br />
homens que não mintam a Deus nem aos outros homens, e que se afirmem através<br />
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<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
da verdade que pratiquem. Isto que penso poderá ser apenas uma visão ingénua,<br />
louca, para muitos, talvez.<br />
Mas isso mesmo se pode dizer da pessoa de Cristo que veio à terra sabendo<br />
que vinha para sofrer e que muito poucos O seguiriam.<br />
Mas veio, no cumprimento da vontade do Pai, e feito Salvador e Caminho<br />
nosso, para estar connosco até ao fim dos tempos.<br />
Nessa data, nada nem ninguém turvará as palavras que os homens agora não<br />
escutam. Então, a grande importância da sua vinda foi anunciar e ensinar ao mundo<br />
uma sabedoria que o mundo não conhecia e que foi ouvida ao nível da nossa<br />
inteligência, ainda que se trate da sabedoria divina. A voz do Pai, a voz do Senhor, o<br />
único alvo válido como nenhum outro que o homem sensato ficou a saber. Ficamos<br />
a saber que somos filhos dilectos de Deus, mas também que, com Cristo, seremos<br />
colaboradores seus, ao continuar, no tempo, a missão redentora de seu Filho. Em<br />
verdade, ensinou-nos e disse como servir os planos do Deus Altíssimo – nascendo<br />
de novo.<br />
Isto traz à minha mente a verdadeira dimensão do cristianismo: ser<br />
colaborador, sem que o materialismo nos absorva ou contamine.<br />
É nesta prospectiva que dirijo a minha visão das coisas.<br />
De algum modo considero que consegui incluir na vida o cristianismo de que<br />
falo. Penso que venci!<br />
52<br />
Aveiro, 27/8/2010<br />
J. Morais
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
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Índice<br />
<strong>Eu</strong> e as <strong>Minhas</strong> <strong>Facetas</strong><br />
As Origens .................................................................................................................................... 2<br />
5 de Janeiro de 1946, saída de Celeirós para a Marinha de Guerra ....................................... 12<br />
Alguns Apontamentos ................................................................................................................ 14<br />
Viagem à América do Norte em 1948 .................................................................................... 15<br />
O despertar para uma nova realidade ..................................................................................... 16<br />
Um momento que fez uma vida a dois para sempre. ................................................................. 18<br />
A Ventura mais Alta da Minha Vida ...................................................................................... 18<br />
A Acção Católica e <strong>Eu</strong> ............................................................................................................... 22<br />
O Locista, Dr. Carlos Augusto Fernandes de Almeida. ......................................................... 27<br />
O meu amigo Conde ............................................................................................................... 32<br />
O que diz o Conde, no lançamento do livro “Capelas de Aveiro”: .................................... 32<br />
Concurso da Cruz no Mundo do Trabalho ............................................................................. 36<br />
Lembranças ............................................................................................................................ 37<br />
Zacarias Sarrazola Andias ...................................................................................................... 40<br />
A Obra do Zacarias e da Sua Equipa ................................................................................. 43<br />
Mudanças radicais ...................................................................................................................... 46<br />
O cristianismo, vertente fundamental em que se delineou toda a minha vida até aos dias de<br />
hoje, depois dos vinte e dois anos de idade. ....................................................................... 48<br />
54