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Edição 34 - Memorial da América Latina

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GOVERNADOR<br />

JOSÉ SERRA<br />

VICE-GOVERNADOR<br />

ALBERTO GOLDMAN<br />

SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS<br />

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />

FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />

DA AMÉRICA LATINA<br />

CONSELHO CURADOR<br />

PRESIDENTE<br />

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />

SECRETÁRIO DE CULTURA<br />

JOÃO SAYAD<br />

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />

GERALDO ALCKMIN<br />

REITORA DA USP<br />

SUELY VILELA<br />

REITOR DA UNICAMP<br />

FERNANDO FERREIRA COSTA<br />

REITOR DA UNESP<br />

HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />

PRESIDENTE DA FAPESP<br />

CELSO LAFER<br />

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />

JURANDIR FERNANDES<br />

DIRETORIA EXECUTIVA<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

FERNANDO LEÇA<br />

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />

DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />

ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />

FERNANDO CALVOZO<br />

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />

SÉRGIO JACOMINI<br />

CHEFE DE GABINETE<br />

JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

HUBERT ALQUÉRES<br />

DIRETOR INDUSTRIAL<br />

TEIJI TOMIOKA<br />

DIRETOR FINANCEIRO<br />

CLODOALDO PELISSIONI<br />

DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS<br />

LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />

Número <strong>34</strong><br />

ISSN 0103-6777<br />

REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />

DIRETOR<br />

FERNANDO LEÇA<br />

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE<br />

LEONOR AMARANTE<br />

COLABORADORA DE EDIÇÃO<br />

ANA CANDIDA VESPUCCI<br />

TRADUÇÃO<br />

CLAUDIA SCHILLING<br />

PRODUÇÃO<br />

HENRIQUE DE ARAUJO<br />

DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOS<br />

FELIPE DE OLIVEIRA<br />

DOUGLAS MALUTA<br />

LUANA DE ALMEIDA<br />

COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />

Adolfo Montejo Navas, André Sturm, Augusto de<br />

Campos, Bianca Galafassi, Carolina Mota Mourão,<br />

Celso Lafer, Demétrio Magnoli, Fernando Bellas,<br />

Fernando Castro Flórez, Javier Teniente, Reynaldo Damazio,<br />

Ricardo Medrano, Ricardo Markwald, Roberto<br />

Rodrigues, Rubens Barbosa, Sérgio Fausto, Silvia Pra<strong>da</strong><br />

Forero, Tino Viz, Tulo Vigevani.<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso<br />

Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis<br />

Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis<br />

Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar<br />

Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto<br />

Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa,<br />

Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral<br />

<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade,<br />

664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />

Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />

Internet: http://www.memorial.sp.gov.br<br />

Email: publicacoes@fmal.com.br.<br />

Os textos são de inteira responsabli<strong>da</strong>de<br />

dos autores, não refletindo o pensamento<br />

<strong>da</strong> revista. É expressamente proibi<strong>da</strong> a<br />

reprodução, por qualquer meio, do conteúdo<br />

<strong>da</strong> revista.<br />

CAPA<br />

Foto: Tino Viz<br />

EDITORIAL<br />

04<br />

LITERATURA<br />

06<br />

HOMENAGEM<br />

12<br />

OLHAR<br />

18<br />

ARTES VISUAIS<br />

25<br />

CINEMA<br />

30<br />

POLÍTICA<br />

37<br />

ECONOMIA<br />

42<br />

DESAFIO<br />

49<br />

ACERVO<br />

54<br />

AGENDA<br />

62<br />

LIVROS<br />

64<br />

POESIA<br />

66<br />

3<br />

FERNANDO LEÇA<br />

ADOLFO MONTEJO NAVAS<br />

RICARDO MEDRANO<br />

FERNANDO BELLAS<br />

JAVIER TENIENTE<br />

TINO VIZ<br />

FERNANDO C. FLÓREZ<br />

ANDRÉ STURM<br />

CAROLINA M. MOURÃO<br />

BIANCA GALAFASSI<br />

ROBERTO RODRIGUES<br />

RUBENS BARBOSA<br />

LEONOR AMARANTE<br />

SILVIA PRADA<br />

REYNALDO DAMAZIO<br />

FEDERICO G. LORCA


editorial<br />

Não é demais destacar novamente<br />

a feliz circunstância dos 20 anos do<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, já lembra<strong>da</strong><br />

nas duas edições anteriores. Marcando<br />

a segun<strong>da</strong> metade deste 2009 comemorativo,<br />

novos e importantes eventos<br />

celebram a efeméride, começando com<br />

o 4° Festival de Cinema Latino-Americano.<br />

Vamos aos destaques deste número<br />

<strong>34</strong> <strong>da</strong> revista Nossa <strong>América</strong>.<br />

Quem são os autores que se distinguem<br />

por praticarem uma narrativa<br />

oblíqua? E o que isso quer dizer?<br />

Adolfo Montejo Navas, poeta e crítico<br />

espanhol radicado no Brasil, explica e<br />

aponta os mestres de uma literatura<br />

fragmentária feita de jogos entre a linguagem<br />

e o mundo. Ain<strong>da</strong> na esfera<br />

literária, uma homenagem: é do arquiteto<br />

e professor Ricardo Medrano ao<br />

argentino José Luis Romero, considerado<br />

um dos mais importantes historiadores<br />

do século XX e que em 2009<br />

completaria 100 anos.<br />

4<br />

Nesta edição, Nossa <strong>América</strong> reúne<br />

quatro fotógrafos que registraram<br />

delica<strong>da</strong>s imagens do cenário ao longo<br />

do caminho de Santiago de Compostela<br />

e expuseram na Galeria Marta<br />

Traba do <strong>Memorial</strong>. Fernando Bellas,<br />

Javier Teniente, Delmi Álvarez e Tino<br />

Viz clicaram as paisagens envoltas em<br />

brumas e misticismo e que integram o<br />

ensaio. Ain<strong>da</strong> na esfera <strong>da</strong>s artes plásticas,<br />

destaque para Roberto Matta,<br />

importante pintor chileno, cuja obra é<br />

sau<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo crítico espanhol Fernando<br />

Castro Flórez.<br />

Com público garantido, o Festival<br />

Latino-Americano de Cinema de São<br />

Paulo, instituído pelo <strong>Memorial</strong>, chega<br />

à sua quarta edição ain<strong>da</strong> melhor. Sua<br />

programação está repleta de grandes sucessos<br />

e filmes premiados internacionalmente.<br />

André Sturm crítico de cinema<br />

comenta a importância de um evento<br />

desse nível para difundir a produção cinematográfica<br />

de países <strong>da</strong> região.<br />

FOTO: reprOduçãO


Assunto atual, a questão <strong>da</strong> demarcação<br />

<strong>da</strong>s terras indígenas Raposa<br />

Serra do Sol, ganha uma avaliação bastante<br />

objetiva do ponto de vista jurídico.<br />

Carolina Mota Mourão e Bianca<br />

Galafassi, advoga<strong>da</strong>s com experiência<br />

em questões indígenas, acreditam que o<br />

impasse está superado, e de acordo com<br />

a lei. Outro tema igualmente importante<br />

diz respeito à questão <strong>da</strong> agroenergia<br />

em que o Brasil, particularmente, e a<br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> como um todo podem<br />

ser protagonistas. Roberto Rodrigues,<br />

engenheiro agrônomo e ex-ministro <strong>da</strong><br />

Agricultura, tem certeza de que o futuro<br />

reserva grandes oportuni<strong>da</strong>des para o<br />

Continente nessa área. Ain<strong>da</strong> com relação<br />

à <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, o tema Mercosul<br />

ganha relevo, já que está completando<br />

18 anos. O cientista político Rubens<br />

Barbosa, responde às in<strong>da</strong>gações de outros<br />

cinco especialistas no assunto interessados<br />

em saber como o organismo<br />

chega à maiori<strong>da</strong>de.<br />

Uma <strong>da</strong>s grandes bibliotecas do<br />

mundo está em Bogotá. Tem capaci<strong>da</strong>de<br />

para dois milhões de leitores<br />

por ano e desfruta de prestígio junto<br />

ao público, que chega a formar longas<br />

filas na porta. Leonor Amarante,<br />

editora de Nossa <strong>América</strong>, observou in<br />

loco essa face surpreendente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

colombiana. De outro lado, Silvia<br />

Pra<strong>da</strong>, gerente <strong>da</strong> rede de bibliotecas<br />

públicas de Bogotá, defende um amplo<br />

projeto com o objetivo de levar o<br />

acesso à leitura também para outros<br />

pontos do país.<br />

Encerra a edição um poema do<br />

espanhol Federico Garcia Lorca, nome<br />

consagrado mundialmente, com tradução<br />

de Augusto de Campos, outro<br />

peso-pesado <strong>da</strong> literatura.<br />

Boa leitura!<br />

Fernando Leça<br />

Presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

5


6<br />

LITERATURA<br />

o reVerSo<br />

NarratiVo <strong>da</strong> liNGUaGeM<br />

ESTIRPE LITERÁRIA<br />

ATENTA À MISCELÂNIA<br />

ADOLFO MONTEJO NAVAS<br />

Se pudesse utilizar o termo gráfico<br />

de uma narrativa oblíqua seria para<br />

tomar alguma distância <strong>da</strong>quela narrativa<br />

de maior lineari<strong>da</strong>de textual, e<br />

cuja ausência de laterali<strong>da</strong>des de sentidos<br />

é mais evidente. Talvez a prática<br />

de uma escrita breve e fragmentária, assim como,<br />

precisamente, certo senso de humor, e em alguns<br />

casos um jogo verbal e cultural explícito, coloca<br />

esta escrita em outro prazer do texto, na procura<br />

de ressonâncias diversas entre a linguagem e o<br />

mundo. E também em outro regime de leitura.<br />

Como se houvesse predisposição para uma meta-linguagem<br />

literária sem cair num conceitualismo<br />

narcisista ou hermético. Em outras palavras,<br />

poder olhar a linguagem,seu reverso narrativo:


FOTOs: reprOduçãO<br />

mas muito mais seu nascimento imagético<br />

que a sua mera sucessão verbal.<br />

Uma literatura assim, só pode<br />

ser de frestas, fen<strong>da</strong>s, interstícios. E<br />

sabendo-se impotente ante qualquer<br />

signo de totali<strong>da</strong>de, se reconhece<br />

como parcial, na<strong>da</strong> logocêntrica ou<br />

teleológica. Quase portátil, pelo tamanho,<br />

mas também pelo seu dom de<br />

ubiqui<strong>da</strong>de, seus interesses poliglotas,<br />

trasmun<strong>da</strong>nos e intertextuais.<br />

Um inventário internacional de escritores<br />

com estas preocupações ou<br />

ambições surpreenderia, mas sendo<br />

circunscrito a um território continental<br />

latino-americano, autores como Macedônio<br />

Fernández, Julio Cortázar, Juan<br />

José Arreola e Augusto Monterroso,<br />

pertenceriam a esta estirpe literária que<br />

está atenta a uma miscelânea de assun-<br />

tos que faz que tudo acabe religando-se.<br />

Aliás, são precisamente os câmbios de<br />

registros semânticos uma outra característica<br />

que os vincula, pois na<strong>da</strong> assim<br />

parece banal, cotidianamente pobre ou<br />

reduzido em significação. E não falamos<br />

de literatura com anseios fantásticos ou<br />

de derivas mágico-maravilhosas.<br />

Sem pretender casar os quatro exemplos<br />

literários citados, deve se dizer que<br />

todos, sendo de gerações e geografias<br />

diversas, compartilham alguns fios terra<br />

semelhantes. E a pesar de suas características<br />

diferentes podem-se reconhecer<br />

neste território desenhado que aposta<br />

por ser mais um continente verbal metonímico<br />

que metafórico. A fábula <strong>da</strong> escrita,<br />

o assombro verbal, o exercício <strong>da</strong><br />

imaginação e a atenção por universos diversos,<br />

paralelos, transidos de passagens<br />

7


não cifrados ou codificados, é alimento<br />

para poéticas literárias sempre precisas,<br />

na<strong>da</strong> retóricas ou redun<strong>da</strong>ntes. Cultas<br />

e apropriacionistas, ao mesmo tempo<br />

que mun<strong>da</strong>nas e subjetivizadoras. São,<br />

em suma, literaturas celebratórias que<br />

proclamam as núncias impossíveis mas<br />

sempre tentadoras do mundo e as palavras,<br />

sabendo de seus hiatos.<br />

Por ordem de aparição histórica,<br />

Macedônio Fernández (Buenos Aires,<br />

1874 –1952) já resultaria inevitável,<br />

mas sobretudo por colocar a sua biografia<br />

literária num plano de observação<br />

cotidiana e ao mesmo tempo,<br />

distancia<strong>da</strong>mente, como se o eu fosse<br />

outro que conhecemos em parte. Esse<br />

diálogo às vezes chega a pontos paradoxais,<br />

a perfilar-se como escritor<br />

com “certa dificul<strong>da</strong>de de escrever”<br />

mas capaz de não separar na<strong>da</strong> para<br />

a sua escrita heterodoxa. O que existe<br />

e o que não existe, mas que não deixa<br />

de confundir a sua frágil fronteira,<br />

e muitas outras observações diáfanas<br />

ou obscuras fazem parte de uma reflexão<br />

sem limites, sem eixo fixo ou<br />

confortável (ideológico ou burguês).<br />

8<br />

Sem excessiva preocupação pela publicação,<br />

a sua literatura era, sobretudo,<br />

pensante, necessariamente antierudita,<br />

a favor <strong>da</strong> perplexi<strong>da</strong>de e do<br />

assombro: um texto como Continuação<br />

<strong>da</strong> na<strong>da</strong> mostra até onde chegam os<br />

contornos (paradoxalmente ilimitados<br />

pelo realismo) de Macedônio, a sua<br />

contribuição para a perplexi<strong>da</strong>de. É<br />

muito significativo que duas obras de<br />

Macedônio Fernández aportem mais<br />

dúvi<strong>da</strong>s que certezas, numa arquitetura<br />

sensível na<strong>da</strong> desprezível. Elas são<br />

os Papeles de recienvenido (1929) ou Museu<br />

de la novela de la Eterna (1967), duas<br />

quimeras literárias.<br />

To<strong>da</strong> sua obra pode receber o qualificativo<br />

de miscelânea (algo que assinariam<br />

também o Atlas literário de Borges,<br />

grande admirador e amigo seu, o poliedro<br />

verbal de Cortázar, e, claro, a esponja<br />

literária de Ramón Gómez de la Serna, já<br />

quase como maestro unânime <strong>da</strong>s coisas<br />

miú<strong>da</strong>s, dessa cosmologia ínfima que não<br />

entende de macropolíticas).<br />

O grau de atenção e de reflexão,<br />

além de um profundo humor que circula<br />

como ver<strong>da</strong>deira alteri<strong>da</strong>de, é evidente<br />

nas cartas ou fragmentos que fazem<br />

parte de sua obra literária, sem desmerecer<br />

nem se inferiorizar com outros registros.<br />

Simples palavras de celebração,<br />

de brindes, de tertúlia do café <strong>da</strong> Balvanera<br />

mostravam uma eloqüência sem liber<strong>da</strong>de<br />

condicional, que reconhecia seu<br />

estatuto reflexivo rente à cotidiani<strong>da</strong>de<br />

estranha<strong>da</strong>: “Há um mundo para todo<br />

nascer, e o não-nascer não tem na<strong>da</strong> de<br />

pessoal, é meramente não haver mundo.<br />

Nascer e não encontrá-lo é impossível:<br />

não se viu a nenhum eu que nascendo<br />

encontra-se sem mundo”.<br />

Julio Cortázar (Bruxelas,1914 – Paris,<br />

1984), sem chegar aos extremos <strong>da</strong><br />

parca eloquência e abstração de Macedônio,<br />

talvez tenha pluralizado ain<strong>da</strong><br />

mais as dispersas inquietudes por quanti<strong>da</strong>des<br />

de temas, campos semânticos


que reuniam literatura, prosa sem classificar,<br />

ensaios literários sobre arte, poesia,<br />

reflexões de índole vária e frequentemente<br />

ínfima, microcelular, contra<br />

to<strong>da</strong> pompa, como a sua bem sucedi<strong>da</strong><br />

tipologia humanista dos cronópios, estabeleci<strong>da</strong>,<br />

fun<strong>da</strong>cionalmente, em livro<br />

assim intitulado, Histórias de cronópios e<br />

de famas (1962). Algo que também permeia<br />

grande parte de sua obra narrativa,<br />

seja o romance de O jogo <strong>da</strong> amarelinha<br />

(1963), livros de relatos como Um Tal<br />

Lucas (1979), entre outros, ou obras<br />

mais abertas, Prosa do Observatório (1972)<br />

ou La casilla de los Morelli (1973) ou aqueles<br />

livros-álbum, A volta ao dia em oitenta<br />

mundos (1967), Último round (1969), por<br />

exemplo, tudo compondo uma geografia<br />

de pontes literárias, outras perspec-<br />

tivas de entendimento plural, que reuniam<br />

universos diversos, contaminando<br />

até o pensamento mais sério ou rigoroso<br />

(veja-se a parte crítica estrita do escritor,<br />

em que a invenção pode aparecer mais<br />

soterra<strong>da</strong>mente até ganhar presença e a<br />

prosa/ensaio/ficção que se articula nesta<br />

indefinição polisêmica).<br />

A necessi<strong>da</strong>de manifesta de contar<br />

com um leitor cúmplice, que acompanhasse<br />

as insinuações e meandros<br />

desta escrita diz <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de desta<br />

literatura, de sua vocação transbor<strong>da</strong>nte<br />

por gerar novos territórios<br />

em que o outro não estivesse longe,<br />

ain<strong>da</strong> que como companheiro de viagem,<br />

de liber<strong>da</strong>de, de diálogo.<br />

A chega<strong>da</strong> de Juan José Arreola<br />

(Zapotlán el Grande (agora Ciu<strong>da</strong>d<br />

9


Guzmán),1918 – Gua<strong>da</strong>lajara, 2001),<br />

também representa to<strong>da</strong> uma literatura,<br />

que pode ser tão ampla como um<br />

dicionário, outro jogo de significados<br />

atraente para todos estes escritores<br />

que precisam encontrar outra designação<br />

diferente, uma tradução impar.<br />

No fundo, todos dionisíacos com a<br />

concepção <strong>da</strong> linguagem.<br />

A sua obra, breve e complexa, sedutora<br />

e diversifica<strong>da</strong> inclui numerosas<br />

vozes, sempre com precisão e rara elegância<br />

de dicção: a fábula, a parábola,<br />

o diário fictício, o teatro, a anedota, até<br />

o ensino. Todo um sortilégio de formas<br />

regido pela “a liber<strong>da</strong>de de uma ilimita<strong>da</strong><br />

imaginação, regi<strong>da</strong> por uma lúci<strong>da</strong> inteligência”<br />

(na consideração de Borges,<br />

outro escritor próximo a esta literatura<br />

oblíqua) e também uma ironia entrelinhas.<br />

Como Macedônio, ele também<br />

era escritor poroso, literatura an<strong>da</strong>nte,<br />

conversador inesgotável, sem a liber<strong>da</strong>de<br />

condicional do verbo. Até já foi<br />

chamado de o verbocrata (por José de la<br />

Colina) e há vários livros significativos<br />

com registros orais a se juntar a sua obra<br />

estritamente escrita (o de Fernando del<br />

Paso é especialmente intenso).<br />

A extrema brevi<strong>da</strong>de de Arreola<br />

e seu enciclopedismo, o seu interesse<br />

pela criação humana, inventa<strong>da</strong> e maquina<strong>da</strong>,<br />

pelo dom <strong>da</strong> palavra, se reflete<br />

em Varia invención (1949), Confabulário<br />

(1952), Inventário (1977), que já delatam<br />

10<br />

o grau de antologia/bazar de úteis, sonhos,<br />

lembranças, artefatos e quimeras<br />

verbais que está conti<strong>da</strong> neles. Não em<br />

vão, algum breviário alfabético já se fez<br />

de sua obra, pelo número possível de<br />

entra<strong>da</strong>s, verbetes, chama<strong>da</strong>s que sua literatura<br />

permitia a seus visitantes.<br />

Ao bestiário extraordinário que povoa<br />

sua obra –outra sintonia com Monterroso–,<br />

deve-se acrescentar a imensa<br />

diversi<strong>da</strong>de de pontos de arranque literários<br />

de seus textos. Ain<strong>da</strong> assim, seu<br />

leque amplo de interesses de sua escrita<br />

sempre esteve longe do preciosismo<br />

com que a crítica mexicana quis engavetá-lo.<br />

De fato, “o sentimento frutal <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>” sempre o acompanhou, o colocou<br />

numa cultura mais vital que livresca.<br />

Sendo autodi<strong>da</strong>ta, amante <strong>da</strong>s letras<br />

e namorado <strong>da</strong>s vozes populares,<br />

a fé em desenvolver o ser com a literatura<br />

é o ver<strong>da</strong>deiro leit motif deste<br />

escritor <strong>da</strong> região de Jalisco (a mesma<br />

que o muralista José Clemente Orozco):<br />

“Eu sou um autobiógrafo contínuo,<br />

ain<strong>da</strong> que este falando em certo<br />

momento de Babilônia!”.<br />

Não por último menos significativo,<br />

Augusto Monterroso (Tegucigalpa,<br />

1921 – México D.F., 2003) apresenta<br />

sintonias com Arreola, coincidindo no<br />

território <strong>da</strong> fábula, do texto breve que<br />

ironiza até de seu tamanho: “Hoje me<br />

sinto bem, um Balzac; estou completando<br />

esta linha”, frente à literatura monumental,<br />

que vende a sua edificação<br />

sistêmica como salvação. Os esparsos<br />

volumes deste escritor, especialista nas<br />

pequenas dimensões abrange paródias,<br />

paradoxos, âmbages, alusões, sempre<br />

com humor e contenção como rigores<br />

abraçados a sua escrita. A sua justiça<br />

poética faz atender de forma equânime<br />

objetos e sujeitos, o pequeno e o<br />

grande, com certa vis cômica (muito<br />

cervantina). O encantamento literário<br />

corre paralelo sempre a certa releitura<br />

cultural e literária, alguma sorna sot-


to você, cheia de punctum (diz Jorge<br />

Ruffinelli), que deixa-nos acor<strong>da</strong>dos a<br />

ca<strong>da</strong> linha. Em suas páginas de formas<br />

breves há tanto de revelado como de<br />

escondido para continuar o jogo, sobretudo<br />

a batalha contra o óbvio.<br />

Obras completas y otros cuentos (1959),<br />

A ovelha negra e outras fábulas (1969,<br />

houve tradução de Millôr Fernandes),<br />

Movimiento perpetuo (1972) ou La letra<br />

e (1987) levantam uma prosa multiforme,<br />

de uma capaci<strong>da</strong>de proverbial<br />

de enunciação. Uma ars combinatória<br />

que pede também cumplici<strong>da</strong>de, como<br />

Cortázar, e de alguma outra forma<br />

Borges (adlatere desta narrativa oblíqua),<br />

e que aponta para desmascarar a<br />

retórica literária.<br />

“Deus ain<strong>da</strong> não criou o mundo;<br />

só está imaginando-o, como entre sonhos.<br />

Por isso o mundo é perfeito, mas<br />

confuso“. Difícil foi sempre para seus<br />

leitores não esboçarem um sorriso,<br />

não verem além de suas palavras apura<strong>da</strong>s.<br />

Como se houvesse uma placa na<br />

entra<strong>da</strong> de seus livros: abstenham-se<br />

sérios, caretas e poderosos.<br />

A pesar de alguns reconhecimentos<br />

crescentes e a consideração de culto<br />

–excetuando o caso de Cortázar–, a literatura<br />

que comentamos endereça-se<br />

numa interpretação especial, aquela de<br />

escritores peculiares, raros, e que são<br />

exemplos paradigmáticos de contracânone.<br />

Mais que fun<strong>da</strong>dores, seguem<br />

uma prática des-construtiva <strong>da</strong> literatura<br />

(assim como na poesia existem<br />

Oliverio Girondo, César Vallejo ou<br />

Nicanor Parra para funções que saboteiam<br />

qualquer ideário de pompa e<br />

circunstância <strong>da</strong> lírica). Todos são escritores<br />

diluidores <strong>da</strong>s prisões dos gêneros<br />

e seus sacramentos. E talvez por<br />

essas razões ou por outras não menos<br />

esdrúxulas permanecem inéditos no<br />

Brasil, exceto sempre Julio Cortázar,<br />

e longe de qualquer boom literário ou<br />

marketing programado. As suas obras a-<br />

sistêmicas são antídotos para possíveis<br />

perigos fun<strong>da</strong>mentalistas, construções<br />

que relativizam o cansaço ideológico<br />

do mundo, a favor de outros horizontes<br />

mais amáveis, sem ser, de forma alguma,<br />

literaturas naif ou escapistas. E<br />

sim, o contrário, adensamentos literários<br />

no núcleo <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> convencionalmente<br />

reali<strong>da</strong>de.<br />

Longe do mainstream <strong>da</strong> literatura<br />

mais formal, e dos escritores gentleman<br />

tão pródigos em nossos dias, aqueles que<br />

aspiram à separação radical entre autor e<br />

livro, estes autores recuperam um diapasão<br />

verbal multifacetado –uma literatura<br />

inclassificável que homenageia a cultura<br />

por extenso de forma babélica–, e essa<br />

proximi<strong>da</strong>de biográfica/subjetivizadora,<br />

junto com os valores enunciados por<br />

Ítalo Calvino, para este novo milênio:<br />

rapidez, brevi<strong>da</strong>de, multiplici<strong>da</strong>de...<br />

Adolfo Montejo Navas é poeta e crítico literário.<br />

11


12<br />

HOMENAGEM<br />

roMero<br />

MeStre de UM GraNde teMa<br />

FASCÍNIO PELA<br />

CULTURA OCIDENTAL<br />

RICARDO MEDRANO<br />

Há exatos cem anos nascia em<br />

Buenos Aires José Luis Romero.<br />

Após a morte de seu<br />

pai, ain<strong>da</strong> na infância, Romero<br />

esteve sob os cui<strong>da</strong>dos de<br />

Francisco Romero, irmão mais<br />

velho do lado paterno, um importante filósofo<br />

argentino, também militar e engenheiro. Isto<br />

lhe permitiu (apoiado também em outros mestres,<br />

como Pedro Henríquez Ureña), desde muito<br />

cedo encontrar lugar para suas inquietações e<br />

construir uma sóli<strong>da</strong> trajetória, tendo se transformado<br />

em um dos mais importantes historiadores<br />

do século XX. Romero faleceu durante uma<br />

viagem ao Japão, em 1977, deixando-nos como<br />

legado uma valiosa coleção de idéias e trabalhos.


FOTO: reprOduçãO<br />

Entre suas obras mais cita<strong>da</strong>s<br />

estão Las ideas políticas en la Argentina<br />

(1946), La Revolución Burguesa en el<br />

mundo feu<strong>da</strong>l (1967), Crisis y orden en el<br />

mundo feudoburgués (publica<strong>da</strong> pouco<br />

depois de sua morte) e Latinoamérica.<br />

Las ciu<strong>da</strong>des y las ideas (1976. A edição<br />

brasileira é de 2004), <strong>da</strong> qual nos ocuparemos<br />

mais adiante.<br />

Como explica seu filho, Luis Alberto<br />

Romero (também eminente historiador),<br />

antes dos trinta anos de i<strong>da</strong>de,<br />

já havia definido seu projeto intelectual,<br />

ao qual dedicou uma vi<strong>da</strong> de trabalho rigoroso<br />

e persistente. Para definir a personali<strong>da</strong>de<br />

do pai, Luis Alberto Romero<br />

cita o historiador italiano Ruggiero Romano,<br />

que dizia que as pessoas comuns<br />

têm muitas ideias, mu<strong>da</strong>ndo-as com<br />

facili<strong>da</strong>de; por isso, os “pequenos mestres”<br />

possuem cinco ou seis ideias em<br />

sua vi<strong>da</strong>, e os grandes mestres apenas<br />

uma. Romero se situa neste caso, fazendo<br />

com que esta empresa o absorvesse<br />

completamente, muitas vezes deixando<br />

de seguir os padrões convencionais acadêmicos.<br />

Tudo o que recolhia em seus<br />

estudos direcionava para seu projeto<br />

que, estando já definido, apenas aguar<strong>da</strong>va<br />

sua concretização.<br />

Seu grande tema de estudo foi<br />

a cultura ocidental, explorando-a desde<br />

a antigui<strong>da</strong>de greco-romana até os<br />

tempos contemporâneos. Nesse arco<br />

temporal ocupam também um espaço<br />

significativo a I<strong>da</strong>de Média e as transformações<br />

do século XVIII.<br />

Muitos destacados humanistas se<br />

debruçaram sobre a obra de Romero,<br />

de sorte que hoje é possível contar com<br />

um rico repertório de análises e interpretações,<br />

entre outros: Túlio Halperin<br />

Donghi, Félix Luna, Adrián Gorelik,<br />

Jacques Le Goff, Noé Jitrik, Carlos Al-<br />

13<br />

José Luis Romero<br />

é autor de Latinoamérica.<br />

Las ciu<strong>da</strong>des y las ideas,<br />

sua obra mais cita<strong>da</strong>.


tamirano e Afonso Carlos Marques dos<br />

Santos, além de Luis Alberto Romero.<br />

Nestes processos de criação,<br />

construção e transformação, Romero<br />

dá um lugar especial às ci<strong>da</strong>des, palco<br />

privilegiado onde encontra uma base<br />

sóli<strong>da</strong> e segura para estu<strong>da</strong>r as diferentes<br />

manifestações históricas. Seu interesse<br />

não era apenas “de escritório”,<br />

nesta empreita<strong>da</strong> visitou mais de cem<br />

ci<strong>da</strong>des, guar<strong>da</strong>ndo consigo um arquivo<br />

de imagens e planos.<br />

Porém, imaginou que viveria alguns<br />

anos mais, deixando assim, algumas<br />

obras inconclusas. Felizmente, parte<br />

desta obra tem vindo à luz. Destacamos,<br />

em particular, a recente publicação de<br />

La ciu<strong>da</strong>d occidental (2009), uma coletânea<br />

desses textos que, como as peças de um<br />

meccano (jogo pelo qual tomou gosto),<br />

permitiam que suas ideias fossem<br />

ganhando forma e sentido. Em notável<br />

prefácio, Adrian Gorelik destaca o impacto<br />

que a primeira visita às ci<strong>da</strong>des<br />

européias lhe causaram, onde esse cedo<br />

despertar teve um papel decisivo em seu<br />

projeto de vi<strong>da</strong>. Assinala Gorelik:<br />

“A importância crescente que foi ganhando<br />

nele a ci<strong>da</strong>de, menos como objeto<br />

material que lhe interessasse por si mesmo,<br />

e mais como meio revelador de algo<br />

muito caro à própria forma como concebia<br />

a história: a condensação de processos<br />

de longo prazo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social e cultural, a<br />

síntese do conjunto <strong>da</strong>s criações humanas<br />

representativas de uma época.”<br />

Mas ladeando em importância La<br />

ciu<strong>da</strong>d occidental, está o magnífico livro,<br />

fun<strong>da</strong>mental e singular: Latinoamérica.<br />

Las ciu<strong>da</strong>des y las ideas. Publicado originalmente<br />

em 1976, teve que enfrentar<br />

o ambiente deflagrado pelo golpe militar<br />

de 24 de março desse mesmo ano,<br />

que reprimiu duramente as manifestações<br />

intelectuais, fechou a editora (Siglo<br />

Veintiuno Argentina), e provocou a<br />

prisão e o desaparecimento de autores<br />

e editores. Seu formato, sem notas de<br />

ro<strong>da</strong>pé, fontes e discussão do “estado<br />

<strong>da</strong> questão” também provocou estranhamento.<br />

Aos poucos, entretanto, foi<br />

divulgado e valorizado, traduzido para<br />

outras línguas, construindo sua reputação<br />

de obra excepcional.<br />

Segundo Romero, o objetivo essencial<br />

deste livro é responder à pergunta:<br />

“qual o papel desempenhado pelas<br />

ci<strong>da</strong>des no processo histórico latinoamericano”.<br />

O livro foi dividido em capítulos,<br />

ca<strong>da</strong> um tratando de uma etapa<br />

<strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, recolhendo<br />

um universo multifacetado que deriva<br />

do conceito por ele denominado “vi<strong>da</strong><br />

histórica”: formas de vi<strong>da</strong>, política, mentali<strong>da</strong>des,<br />

economia, ideologias. Inicia-se<br />

com a expansão européia, passa pelo ciclo<br />

<strong>da</strong>s fun<strong>da</strong>ções, pelas ci<strong>da</strong>des fi<strong>da</strong>lgas,<br />

ci<strong>da</strong>des criollas, ci<strong>da</strong>des patrícias, ci<strong>da</strong>des<br />

burguesas, e finaliza com as ci<strong>da</strong>des massifica<strong>da</strong>s.<br />

Embora recolha contribuições<br />

de diferentes origens - Escola dos Annales,<br />

marxismo, sociologia estadunidense,<br />

entre outras – sua particular abor<strong>da</strong>gem<br />

torna difícil qualquer filiação, como já foi<br />

apontado por Carlos Altamirano. Romero<br />

era, como ele próprio se definia, um<br />

historiador cultural.<br />

Há um aspecto fun<strong>da</strong>mental desta<br />

obra que merece ser destacado: a construção<br />

de uma visão de conjunto <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Fazendo parte de um<br />

reduzido universo de trabalhos com essa<br />

abrangência, e ain<strong>da</strong> mais reduzido se nos<br />

atermos às ci<strong>da</strong>des e ocupação do território,<br />

podemos situá-la ao lado outros<br />

autores, como Ángel Rama (em particular<br />

La ciu<strong>da</strong>d letra<strong>da</strong>, de 1984), Jorge Enrique<br />

Hardoy, Ramón Gutiérrez, Richard<br />

Morse e Adrián Gorelik. Mas não é uma<br />

história endógena, pelo contrário, é uma<br />

construção que incorpora esta parte do<br />

mundo à história ocidental.<br />

Fornece-nos ain<strong>da</strong> instrumentos<br />

para enfrentar este recorte tão difícil de<br />

definir, mas ao mesmo tempo complexo<br />

e fascinante que é a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

15


Há certamente um fio condutor, afirma,<br />

mas é tarefa difícil encontrá-lo.<br />

O livro começa com a chega<strong>da</strong><br />

dos europeus, e a partir <strong>da</strong>í vai amarrando,<br />

no tempo e no espaço, to<strong>da</strong> sorte de<br />

aspectos culturais, que habilmente transforma<br />

em uma explicação convincente<br />

para esse processo, incluindo aí um dos<br />

períodos mais áridos para os estudos urbanos:<br />

a primeira parte do século XIX<br />

(ver, por exemplo, La ciu<strong>da</strong>d regular, de<br />

Fernando Aliata).<br />

O fio condutor, que alinhava esse<br />

período histórico, e que tem como suporte<br />

a ci<strong>da</strong>de – entendi<strong>da</strong> como uma<br />

socie<strong>da</strong>de urbana e sua criação – começa<br />

com a implantação de uma Europa na<br />

<strong>América</strong>, fazendo tabula rasa do que aqui<br />

existia: um território vazio. Este sistema,<br />

controlado com mão firme desde a metrópole<br />

no caso espanhol, mais frouxo<br />

no caso português, se no início permitiu<br />

a construção de algo que foi passível de<br />

controle, logo sucumbiu à toma<strong>da</strong> de<br />

consciência, por estas ci<strong>da</strong>des, de que já<br />

possuíam uma história, e ao confronto<br />

<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de com uma construção abstrata<br />

que vinha <strong>da</strong> Europa. Diante <strong>da</strong> ofensiva<br />

mercantilista, nas últimas déca<strong>da</strong>s<br />

do século XVIII, estas ci<strong>da</strong>des sofrem<br />

nova inflexão, onde algumas se mantêm<br />

no esquema tradicional, estancando-se, e<br />

outras se transformam em ativas ci<strong>da</strong>des<br />

mercantis, já decidi<strong>da</strong>mente burguesas e<br />

em busca de independência. A socie<strong>da</strong>de<br />

industrial provoca novo impacto nas últimas<br />

déca<strong>da</strong>s do século XIX, período no<br />

qual passam a se inserir plenamente no<br />

sistema econômico capitalista mundial.<br />

Neste caso, as burguesias que já estavam<br />

constituí<strong>da</strong>s buscam um desenvolvimento<br />

heterônomo, freando o desenvolvimento<br />

autônomo mediante o exercício<br />

de um poder forte. Isto não durou mais<br />

do que alguns decênios, quando diante<br />

de novos atores, mu<strong>da</strong>nças políticas e do<br />

fenômeno <strong>da</strong> metropolização, é deflagrado<br />

um novo ciclo, a ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s massas.<br />

16<br />

Parafraseando Argan, esta é uma<br />

história <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> como história<br />

de suas ci<strong>da</strong>des. Que é, para Romero,<br />

esse jogo constante de forças, entre desenvolvimento<br />

heterônomo e autônomo,<br />

entre mundo rural e mundo urbano,<br />

entre ideologias e estruturas reais.<br />

Isto nos fornece armas para enfrentar<br />

alguns dos problemas frequentemente<br />

apontados na historiografia,<br />

como, por exemplo, o <strong>da</strong>s histórias<br />

nacionais, que li<strong>da</strong>m com um limite<br />

arbitrário, as fronteiras nacionais, para<br />

explicar fenômenos cuja lógica obriga<br />

a transcendê-las. Isto fica ain<strong>da</strong> mais<br />

evidente ao tratar do território e <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des.<br />

Outro problema refere-se à possibili<strong>da</strong>de<br />

de uma explicação conjunta<br />

<strong>da</strong>s colonizações espanhola e portuguesa,<br />

ain<strong>da</strong> um obstáculo a ser transposto.<br />

Esta tensão não está ausente no livro:<br />

o protagonismo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de se vê surpreendido<br />

por um Brasil onde no período<br />

colonial as ativi<strong>da</strong>des nas ci<strong>da</strong>des eram<br />

quase sempre sazonais e a vi<strong>da</strong> se passava<br />

nos engenhos. Somente já avançado<br />

o século XVIII os universos luso-americano<br />

e hispano-americano se encontram<br />

em um percurso comum. Sérgio Buarque<br />

de Holan<strong>da</strong>, no célebre Raízes do<br />

Brasil, também percorreu a trilha destas<br />

ci<strong>da</strong>des, mas em Romero elas recebem<br />

como incumbência o papel principal, e<br />

a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> é o princípio.<br />

Que estas breves palavras sirvam<br />

de estímulo à leitura de um autor ain<strong>da</strong><br />

pouco conhecido no Brasil. Romero encontrou<br />

um fio. Mas o labirinto ain<strong>da</strong><br />

permanece à nossa espera.<br />

Ricardo Medrano é doutor em Arquitetura e Urbanismo<br />

pela Universi<strong>da</strong>de de São Paulo e professor<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Mackenzie.


18<br />

OLHAR<br />

a MaGia<br />

de UM PalCo NatUral<br />

CENAS IMPREGNADAS<br />

DE MISTICISMO<br />

o<br />

que leva alguém a atravessar a pé<br />

a Espanha de leste a oeste? Um<br />

grupo de fotógrafos galegos se<br />

pôs a Caminho de Santiago, rota<br />

de peregrinação que se estende<br />

pela Península Ibérica até Santiago<br />

de Compostela, capital <strong>da</strong> Galícia. O resultado<br />

dessa viagem/aventura são 300 fotos que mostram a<br />

simbiose entre a paisagem e os tipos humanos e que<br />

foram expostas em maio deste ano no <strong>Memorial</strong>. Algumas<br />

imagens estão mais próximas <strong>da</strong>s poéticas pictóricas,<br />

como as de Fernando Bellas, Javier Teniente<br />

e Delmi Alvarez e Tino Viz escolhi<strong>da</strong>s para compor<br />

esse ensaio. O interesse arquitetônico, em todos trabalhos,<br />

dilui-se diante <strong>da</strong> magia do clima local em<br />

que a neblina se transforma em elemento cênico.


Fernando Bellas


Javier Teniente


Javier Teniente


Tino Viz


Fernando Bellas


ARTES VISUAIS<br />

Matta<br />

o olHo de CoSÁrio eM<br />

iNFiNito MoViMeNto<br />

O PODER<br />

DE FIXAR VERTIGENS<br />

FERNANDO CASTRO FLÓREZ<br />

Não nasci – indicou Roberto Matta<br />

- como todo mundo, porque o<br />

Chile está em nenhuma parte”. Na<br />

ver<strong>da</strong>de, este jovem arquiteto que<br />

chegou a trabalhar com Le Corbusier<br />

elaborando os desenhos <strong>da</strong><br />

Cité Radieuse, começou a desenvolver sua imaginação<br />

em 19<strong>34</strong>, em Madri, onde conheceu Federico<br />

García Lorca, Rafael Alberti, Maruja Mallo,<br />

Manuel Ángeles Ortiz e Pablo Neru<strong>da</strong>. Três anos<br />

depois foi contratado por Josep Lluis Sert como<br />

“pau para to<strong>da</strong> obra” no Pavilhão Espanhol <strong>da</strong><br />

Exposição Universal de Paris, onde conheceu Alberto<br />

Sánchez, que o estimulou a ver no real o<br />

fantástico. Também pôde ver algumas sessões de<br />

Picasso trabalhando em Guernica. E foi justamente<br />

25


Inscape (Psychological Morphology).<br />

lá, em Paris, que Matta descobriu sua condição<br />

de pintor. Seu passaporte para entrar<br />

na Vanguardia era um exemplar com<br />

dedicatória de Llanto por Ignacio Sánchez<br />

Mejías, que ele mostrou a Dalí, que por<br />

sua vez serviu para que Breton o recebesse<br />

na Galería Gradiva, onde lhe comprou<br />

dois desenhos e o declarou instantaneamente<br />

surrealista. De forma imediata, em<br />

1938, foi incluído na Exposição Internacional<br />

de Surrealismo e integrado ao grupo<br />

onde travou amizade com Duchamp,<br />

Magritte, Penrose, Tanguy e Miró. Já em<br />

1939, Breton frisou que em Matta assistimos<br />

à necessi<strong>da</strong>de de uma representação<br />

sugestiva do universo quadridimensional.<br />

Seus quadros são descritos como uma<br />

festa “onde são joga<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des,<br />

uma pérola que se transforma em<br />

bola de neve à qual se incorporam todos<br />

os fulgores, tanto físicos quanto mentais”.<br />

Marcel Duchamp, um antagonista<br />

<strong>da</strong>quilo que chamava de “retiniano”,<br />

considerava que Matta era o pintor mais<br />

profundo de sua geração; o que lhe interessava<br />

de sua obra era a forma em que<br />

tinha seguido os físicos modernos em<br />

busca de um novo espaço que não devia<br />

ser confundido com uma ilusão tridimensional.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, a sua era uma<br />

visão deslumbrante do mundo em que,<br />

como afirmou Damián Bayón, partia <strong>da</strong><br />

rejeição <strong>da</strong> figuração cotidiana. Quando<br />

contemplamos os quadros do denominado<br />

“período cósmico”, encontramos<br />

uma espécie de simbologia hermética do<br />

primeiro dia <strong>da</strong> criação com uma atmosfera<br />

que sugere a catástrofe. A matéria,<br />

26<br />

nessas obras sumamente enérgicas, sempre<br />

dá a impressão de ser fluí<strong>da</strong>, instável,<br />

larvária e eruptiva. É como se Matta<br />

compusesse um planeta em gestação.<br />

No entanto, não se trata meramente de<br />

uma desordem expansiva, porque sempre<br />

há uma ordem arquitetônica, compartimentos<br />

e inclusive alusões a máquinas.<br />

Os traços nervosos, quase histéricos,<br />

de Roberto Matta, certamente<br />

estão relacionados à prática surrealista<br />

<strong>da</strong> escrita automática. Contudo, suas<br />

“morfologias psicológicas” escapam<br />

<strong>da</strong> “ortodoxia” <strong>da</strong> pintura visionária<br />

<strong>da</strong> época. Michaux falará de um universo<br />

constituído por on<strong>da</strong>s, que se<br />

contrapõe a um universo sólido. Este<br />

é um modelo dinâmico cujo infinito<br />

não é um ponto-centro ou um zênite<br />

detido, mas um infinito em movimento,<br />

atravessando sem fim o finito.<br />

Vemos mutações, estados em tensão,<br />

desespero, angústia ou desejo. William<br />

Rubin destaca que os símbolos poéticos<br />

de Matta faziam parte de um sistema<br />

de formas novo e muito pessoal,<br />

“que parecia in<strong>da</strong>gar mais profun<strong>da</strong>mente<br />

que o imaginário surrealista nos<br />

subterrâneos do inconsciente e chegar<br />

mais longe às fontes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> psíquica.<br />

Daí a possibili<strong>da</strong>de de considerá-las<br />

uma iconografia <strong>da</strong> consciência humana,<br />

como teria podido existir antes de<br />

conceber-se e encarnar-se nessas formas<br />

e componentes reconhecíveis de<br />

nossa experiência cotidiana”. Se, por<br />

um lado, nunca deixa de manifestar<br />

uma espécie de simbolismo sexual cifrado<br />

ou, em outros termos, um erotismo<br />

sublimado, sua estética também<br />

poderia ser entendi<strong>da</strong> como uma espécie<br />

de prefiguração <strong>da</strong> ficção científica.<br />

Octavio Paz acertou na mosca<br />

quando disse que a pintura de Matta tem<br />

um pé na arquitetura e o outro no sonho.<br />

É evidente que Roberto Matta<br />

desenhava impressionantemente<br />

bem e que isso está presente em to-<br />

Obras: reprOduçãO


dos seus momentos pictóricos. Seu<br />

procedimento básico de composição<br />

consistia em aplicar pigmento sobre<br />

a tela e depois trabalhá-lo até conseguir<br />

uma mancha ou atmosfera que<br />

desencadeava a pulsão pelo desenho,<br />

executa<strong>da</strong> diretamente com o tubo de<br />

tinta. Em suas imagens dinâmicas o lúdico<br />

entra constantemente e inclusive<br />

adquire, em algumas ocasiões, a forma<br />

de histórias em quadrinhos, com<br />

um mundo delirante de bonequinhos<br />

fruto de uma imaginação sem limites.<br />

A primeira exposição individual foi<br />

realiza<strong>da</strong> por Roberto Matta em Nova<br />

York, mais concretamente na galeria de<br />

Pierre Matisse, em 1942, com o título “A<br />

terra é um homem”. Reconhece-se a influência<br />

de suas propostas sobre a pintura<br />

americana, especialmente a de William<br />

Baziotes, Germone Kramowski, Jackson<br />

Pollock e Robert Motherwell. Com<br />

27<br />

Para Duchamp, Matta foi o<br />

pintor mais profundo de sua<br />

geração.


Gorky estabeleceu um intenso diálogo. O<br />

que Matta “ensinou” a esses pintores foi<br />

a importância do automatismo e, sobretudo,<br />

um caminho para ir além tanto do<br />

cubismo quanto <strong>da</strong>s propostas figurativas,<br />

em bastantes casos de signo pompier,<br />

que proliferavam no seio do surrealismo.<br />

A ver<strong>da</strong>de do gesto, a ação em uma escala<br />

expansiva, a pulsão que deixa o inconsciente<br />

livre, uma aposta na cor exalta<strong>da</strong>,<br />

foram acolhi<strong>da</strong>s por artistas que necessitavam,<br />

por todos os meios possíveis,<br />

livrar-se <strong>da</strong> “angústia <strong>da</strong>s influências”,<br />

para utilizar a famosa noção cria<strong>da</strong> por<br />

Harold Bloom, diante <strong>da</strong> Europa e de sua<br />

memória cultural. Anos depois diria que<br />

sua famosa “influência” sobre os expressionistas<br />

abstratos era um mito e que na<br />

ver<strong>da</strong>de tudo tinha sido um diálogo de<br />

surdos. No final dos anos 40, não vacilou<br />

em afirmar, quando o cenário de Nova<br />

Iorque lhe <strong>da</strong>va as costas e o suicídio de<br />

Gorky pesava como uma pedra sobre seu<br />

nome, que o mundo estava “californicando”<br />

e atacou furiosamente o Vampire<br />

State e os United Snakes of America.<br />

Matta era um pintor com ver<strong>da</strong>deiro<br />

talento literário, que procurava sempre<br />

uma mu<strong>da</strong>nça inespera<strong>da</strong> <strong>da</strong>s coisas.<br />

Ilustrou, com Max Erns, Victor Brauer<br />

e Yves Tanguy a reedição dos Cantos de<br />

Maldoror, de Isidoro Ducasse, Conde<br />

de Lautréamont, editado pela Gallimard.<br />

Sabia de sobra que a imagem é o encontro<br />

do heterogêneo, a construção de uma<br />

metáfora sobre um plano de reali<strong>da</strong>de<br />

que pode ser uma “mesa de dissecação”.<br />

Seu universo plástico era a materialização<br />

do encontro casual, <strong>da</strong> beleza convulsa<br />

como forma de escapar do fossilizado,<br />

<strong>da</strong>quilo que nos impede ver outra coisa.<br />

“Porque Matta – escreve Rafael Alberti<br />

na Arbole<strong>da</strong> perdi<strong>da</strong>- é, acima de tudo, a<br />

surpresa. A surpresa na pintura e a surpresa<br />

em tudo aquilo que faz, nas conversas,<br />

nas opiniões, na maneira de desenvolver<br />

suas opiniões. De repente surge como<br />

um meteoro, e depois quase não se con-<br />

28<br />

segue mais falar com ele. Alguém diz uma<br />

palavra e Matta rapi<strong>da</strong>mente a transforma<br />

em cem coisas diferentes, mu<strong>da</strong> umas por<br />

outras, cria e recria a qualquer momento,<br />

deixando no ar, depois de estar uma<br />

tarde com ele, a veloci<strong>da</strong>de que nunca se<br />

detinha de suas improvisações”. Queria<br />

estabelecer pontes entre continentes, isto<br />

é, gerar uma cartografia que, na ver<strong>da</strong>de,<br />

era um autorretrato. O que chamou<br />

de Verbo <strong>América</strong> consistia em conjugar<br />

particípios passados com presentes condicionais,<br />

“é reorganizar todos os pretéritos<br />

<strong>da</strong>s contas e contos do índio do<br />

Mediterrâneo com os indígenas <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

e do Pacífico; é colocar bem os dedos<br />

naquilo que os une, em vez de se desprezar<br />

com megatônicas megalomanias”.<br />

De sua busca <strong>da</strong> transparência a<br />

partir do Grande Vidro de Duchamp restam<br />

formas ou aparições que nos fazem<br />

pensar em cristais ou telas, bem como no<br />

desejo de se abrir e conhecer o mundo. O<br />

caos e o magmático misturam-se com a<br />

busca <strong>da</strong> clareza. Após uma doença que o<br />

deixou cego durante nove meses, Roberto<br />

Matta adquiriu L´objet invisible (19<strong>34</strong>)<br />

de Giacometti. Talvez esse artefato com<br />

tantas conotações psicanalíticas fosse o<br />

contrapeso de sua paixão pela magia e o<br />

tarot, na qual também detectamos a inspiração<br />

do Arcane 17 de Breton. O universo<br />

vertiginoso e energético de Matta também<br />

tem uma certa atmosfera de concentração,<br />

<strong>da</strong> mesma forma que sua figuração<br />

primitiva situa-se no seio de espaços<br />

hiper-tecnológicos. Neste caso, falar de<br />

“imagens incongruentes” ou de “estética<br />

do acidente” pode ser considerado elogio.<br />

Com grande ironia respondeu<br />

brilhantemente à convencional pergunta<br />

de um entrevistador: “É ver<strong>da</strong>de<br />

que se considera um surrealista?”<br />

“De forma alguma: não sou surrealista,<br />

sou um realista do sul”. A ver<strong>da</strong>de é<br />

que, embora Matta tenha estabelecido,<br />

especialmente a partir do governo de<br />

Salvador Allende, um vínculo político-


emocional com o Chile, não é, como<br />

pretende nos fazer pensar, um artista<br />

“enraizado” em sua terra de origem<br />

que, como ele mesmo declarou, é “nenhuma<br />

parte”. Matta traçou sua viagem<br />

estética principalmente no trânsito entre<br />

Paris e os Estados Unidos, em uma<br />

viajem de i<strong>da</strong> e volta que o transformou,<br />

como já foi indicado, em singular “embaixador<br />

do automatismo” e mais tarde<br />

em influente colaborador de CoBRA,<br />

quando regressou ao velho continente.<br />

Um criador tão talentoso para o<br />

manual foi capaz, pela sua curiosi<strong>da</strong>de vital,<br />

de trabalhar com o computador, realizando<br />

vídeos que apresentou na Bienal de<br />

Veneza de 1989. O que sempre o interessava<br />

era o modo de manifestar espaços. “A<br />

arte – afirmou Roberto Matta- serve para<br />

provocar a intuição <strong>da</strong> emoção latente em<br />

tudo o que nos rodeia e para mostrar a arquitetura<br />

emocional que as pessoas precisam<br />

para existir e viver juntos. Sei que um<br />

artista só será autêntico se sua obra se incorporar<br />

a esse movimento de duas mãos<br />

que consiste em realizar, em receber de<br />

seu povo a consciência <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des<br />

que detectou em si mesmo e como artista,<br />

em dotar essa consciência <strong>da</strong> intuição<br />

de uma emoção essencial que utiliza para<br />

ampliar a visão <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de”. Matta considera<br />

que estamos encurralados em Euclides<br />

e que o cubismo ain<strong>da</strong> é geometria<br />

clássica: “teríamos de desencantar a lógica.<br />

Inventar novos espaços. Desintegrar<br />

o ‘portanto’. Criar metáforas proibi<strong>da</strong>s”.<br />

Matta queria uma morfologia que<br />

não se detivesse nas silhuetas, na pele dos<br />

seres e <strong>da</strong>s coisas. Seu esforço estava direcionado<br />

a um despertar <strong>da</strong> consciência,<br />

à geração <strong>da</strong>quilo que denominou inscape.<br />

O desafio era mostrar, apenas, “o fundo<br />

do ser”. Ele queria pintar o espaço do<br />

sentimento. Certamente, como indicou<br />

seu amigo Duchamp, Matta descobriu<br />

“regiões do espaço, desconheci<strong>da</strong>s até<br />

então no campo <strong>da</strong> arte”. Em um texto<br />

de 1944, Breton frisa que é Matta quem<br />

sustenta a estrela mais firmemente acima<br />

do abismo presente que assimilou to<strong>da</strong>s<br />

as características <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que a pode tornar<br />

invalorável; a pintura e os desenhos,<br />

excitados e cheios de potência, falam, de<br />

forma múltipla, do amor humano, “e é<br />

provável que Matta esteja no caminho<br />

mais seguro para obter o segredo supremo:<br />

o domínio do fogo”. A pintura é<br />

tremor: tempo metamórfico. “Sou – escreveu<br />

Matta em 1970 - um homem que<br />

testemunha morfologicamente o que vê”.<br />

Tinha o olho corsário, explorava<br />

outras geometrias para conquistar,<br />

pensava em uma terra que estava em<br />

“to<strong>da</strong>s as partes”. A abor<strong>da</strong>gem de um<br />

novo espaço o levou até uma tempora<strong>da</strong><br />

no inferno de Rimbaud. Sabia de sobra<br />

que a tarefa <strong>da</strong> arte é fixar vertigens.<br />

Fernando Castro Flórez é crítico de arte espanhol.<br />

29<br />

Dar a la vi<strong>da</strong> una luz.<br />

Composición Azul.


30<br />

CINEMA<br />

FeStiVal<br />

de CiNeMa latiNo-aMeriCaNo<br />

de São PaUlo<br />

EVENTO CHEGA<br />

À QUARTA EDIÇÃO<br />

ANDRÉ STURM<br />

repleto de atrações, entre elas<br />

produções premia<strong>da</strong>s, inéditas e<br />

clássicas, o Festival de Cinema<br />

Latino-Americano de São Paulo<br />

realiza sua quarta edição, ain<strong>da</strong><br />

mais prestigiado. Quando foi<br />

idealizado, em 2006, seu projeto prendeu-se à necessi<strong>da</strong>de<br />

de difundir a produção cinematográfica<br />

do Continente, que <strong>da</strong>va mostras de uma crescente<br />

vitali<strong>da</strong>de, mas carecia de mecanismos de divulgação.<br />

Realizadores consagrados precisavam de<br />

espaço, os cineastas estreantes de uma primeira vitrina<br />

para poder deslanchar. O <strong>Memorial</strong> articulou<br />

o evento, a Secretaria de Estado <strong>da</strong> Cultura encampou,<br />

outras instituições aderiram e o Festival tornou-se<br />

ver<strong>da</strong>deiro sucesso no calendário cultural.


FOTOs: divulgaçãO<br />

Cena do filme Tule Kuna: Cantamos para no Morir, do colombiano Gérman Enrique Piffano Mendoza.


La Teta Asusta<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong> peruana Claudia Llosa,<br />

com as atrizes Susi Sánchez e<br />

Magali Solier, filme vencedor do<br />

último Festival de Berlim.<br />

A quarta edição do Festival de Cinema<br />

Latino-Americano deixa claro que o<br />

evento “pegou”. Sessões disputa<strong>da</strong>s têm<br />

sido comuns durante os dias do festival.<br />

São Paulo oferece uma <strong>da</strong>s programações<br />

de cinema mais diversifica<strong>da</strong>s do<br />

mundo. Pode parecer pretensioso, mas<br />

poucas têm tantas salas destina<strong>da</strong>s ao cinema<br />

“de arte” ou o não de Hollywood,<br />

e quanti<strong>da</strong>de de títulos vindos de tantos<br />

locais diferentes. Qualquer filme que<br />

consiga um destaque num dos principais<br />

festivais internacionais, como Cannes<br />

ou Berlim, mesmo que demorando<br />

um pouco, às vezes, termina estreando<br />

nos cinemas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

De alguns anos para cá, o cinema<br />

argentino começou a aparecer mais,<br />

criando até uma legião de fãs. Além <strong>da</strong><br />

quali<strong>da</strong>de dos filmes, ajudou a criação de<br />

um Programa <strong>da</strong> Ancine (Agência Nacional<br />

de Cinema) que apoiava com um<br />

pequeno recurso os distribuidores independentes<br />

para o lançamento de filmes<br />

argentinos no Brasil. Simultaneamente<br />

o órgão argentino equivalente faria<br />

o mesmo por lá. Foram três anos com<br />

esse apoio e a presença desse cinema<br />

passou de um filme por ano para uma<br />

média de cinco ou seis. Infelizmente lá<br />

na Argentina não aconteceu o mesmo, e<br />

o Programa não foi descontinuado, os<br />

filmes continuam estreando por aqui,<br />

com público e atenção <strong>da</strong> mídia.<br />

O mesmo não acontece com os<br />

filmes dos demais países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

São raras as produções mexicanas,<br />

chilenas ou colombianas que estréiam em<br />

nossas salas. E essas são as cinematografias<br />

mais expressivas em quanti<strong>da</strong>de de<br />

títulos. Dos demais países então é quase<br />

impossível lembrar a última vez que estreou<br />

um título <strong>da</strong> Bolívia, do Equador<br />

ou de outro dos países <strong>da</strong> região.<br />

O Festival vem preencher essa<br />

lacuna. E formar público. Com certeza<br />

o sucesso que alcança a ca<strong>da</strong> ano<br />

pode vir a aju<strong>da</strong>r para que mais desses<br />

títulos estréiem no país.<br />

Esse ano a programação enriqueceu-se.<br />

As diversas sessões foram programa<strong>da</strong>s<br />

para permitir o contato com


Gael Garcia Bernal em Rudo y Cursi, do mexicano Carlos Cuarón.


Simonal dos brasileiros Claudio Manoel, Calvito Leal e Micael langer.<br />

Ricardo Yuono em O Fim <strong>da</strong> Pica<strong>da</strong>, de Christian Saghaard (Brasil).<br />

<strong>34</strong>


alguns dos melhores filmes recentes, e recuperar<br />

alguns títulos de anos anteriores.<br />

Uma <strong>da</strong>s mostras foi idealiza<strong>da</strong><br />

para focalizar o cinema dos anos<br />

90. Essa déca<strong>da</strong> marcou uma mu<strong>da</strong>nça<br />

importante na produção <strong>da</strong> região<br />

e alguns dos cineastas “jovens” mais<br />

importantes <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de começaram<br />

nesse período, como Beto Brant e Lucrecia<br />

Martel, entre outros. Excelente<br />

chance de rever e, principalmente, conhecer<br />

esses filmes para quem, em alguns<br />

casos, estava de “calças curtas” ou<br />

“Maria Chiquinha” nessa época. É interessante<br />

observar como esses filmes<br />

mantêm sua força, sem ter envelhecido,<br />

mostrando que a impressão que causaram<br />

à época não foi passageira.<br />

Uma homenagem a Alex Viany<br />

significa outra atração de grande importância.<br />

Cineasta, estudioso e mais que<br />

tudo crítico, é um dos nomes pilares <strong>da</strong><br />

cultura cinematográfica brasileira junto<br />

a Paulo Emilio Salles Gomes. Sua obra<br />

marcou o pensar sobre cinema brasileiro<br />

e permanece instigante até hoje.<br />

Além de alguns de seus filmes, durante<br />

o Festival será relança<strong>da</strong> sua principal<br />

obra Introdução ao Cinema Brasileiro.<br />

Outra homenagem marca o mais<br />

importante cineasta brasileiro vivo, Nelson<br />

Pereira dos Santos. Autor de obras<br />

primas, como Vi<strong>da</strong>s Secas e Memórias do<br />

Cárcere, ele permanece ativo, tendo lançado<br />

seu último filme há pouco mais de<br />

dois anos. O Festival programou-se para<br />

exibir alguns de seus mais importantes<br />

trabalhos, oferecendo uma oportuni<strong>da</strong>de<br />

imperdível, a chance de assistir a esses<br />

filmes na tela grande do cinema.<br />

Enfim, ca<strong>da</strong> ano que passa, o<br />

Festival amplia um cardápio instigante<br />

e excitante para todos os gostos. Ao<br />

lado de seminários e debates coloca o<br />

cinema latino-americano nas telas paulistanas<br />

com todo o cui<strong>da</strong>do e a quali<strong>da</strong>de<br />

que ele merece.<br />

André Sturm é roteirista, cineasta e produtor.<br />

35<br />

Quién Diablos es Juliette,<br />

do mexicano Carlos Marcovich,<br />

outro filme <strong>da</strong><br />

mostra retrospectiva.


Os Matadores, de<br />

Beto Brant (Brasil),<br />

com Maria Padilha, na<br />

mostra retrospectiva.<br />

EVENTO CONQUISTA PÚBLICO E REALIZADORES<br />

A idéia inicial mantém-se basicamente<br />

a mesma desde o início: mostra<br />

retrospectiva, com os melhores momentos<br />

do cinema latino-americano, e<br />

uma seleção de estreantes, além <strong>da</strong>s sessões<br />

de debates. No entanto, o evento<br />

tem crescido em conteúdo, tanto pela<br />

diversi<strong>da</strong>de, quanto pela profundi<strong>da</strong>de.<br />

Por isso, vem conquistando público e<br />

importantes realizações.<br />

Vale ressaltar a exibição do filme<br />

La Teta Assusta<strong>da</strong>, <strong>da</strong> peruana Cláudia<br />

Llosa, vencedor do último Festival de<br />

Berlim. Assim como a presença <strong>da</strong> mais<br />

nova produção do mexicano Carlos<br />

Cuarón, o filme Rudo y Cursi, obra préseleciona<strong>da</strong><br />

para participar do Festival<br />

de Su<strong>da</strong>nce, nos Estados Unidos, cujo<br />

elenco é encabeçado por Gael Garcia<br />

Bernal. Outro destaque internacional é<br />

Una Semana Solos, produção de Martin<br />

Scorsese, dirigi<strong>da</strong> pela argentina Celina<br />

Murga, diretora do aclamado Ana<br />

y los Otros. Lançado no último Festival<br />

de Cannes, o média metragem 1989 é<br />

36<br />

do colombiano Camilo Matiz, estrelado<br />

por Vicent Gallo, e narra uma história<br />

em que a violência protagoniza.<br />

Do Brasil, entre outros, destaca-se o<br />

inédito no circuito comercial A Erva<br />

do Rato, de Júlio Bressane, selecionado<br />

para o Festival de Veneza.<br />

Na mostra retrospectiva, um bom<br />

exemplo é Rodrigo D. en el Futuro, do colombiano<br />

Victor Gavíria, que depois faria<br />

Vendedora de Rosas, filme que conquistou<br />

mais de 20 prêmios internacionais e<br />

que foi indicado para a Palma de Ouro<br />

em Cannes. Merece menção também<br />

a exibição de El Heróe, curta premiado<br />

em Cannes, do diretor mexicano Carlos<br />

Carrera, que dirigiu O Crime do Padre<br />

Amaro. Entre os brasileiros, o famoso<br />

Os Matadores, de Beto Brant.<br />

O Festival de Cinema Latino-<br />

Americano contou com a co-realização<br />

<strong>da</strong> Cinemateca Brasileira, Museu<br />

<strong>da</strong> Imagem e do Som, Cineusp, Prefeitura<br />

Municipal de São Bernardo e do<br />

Sesc São Paulo.


POLÍTICA<br />

Serra do Sol<br />

iMPaSSeS SUPeradoS<br />

EM CENÁRIO<br />

DE GRANDES TENSÕES<br />

CAROLINA MOTA MOURÃO<br />

E BIANCA GALAFASSI<br />

O caso<br />

<strong>da</strong> demarcação <strong>da</strong> terra<br />

indígena Raposa Serra do<br />

Sol – TI RSS, em Roraima,<br />

recentemente julgado pelo<br />

Supremo Tribunal Federal,<br />

instância máxima do poder<br />

judiciário brasileiro, revelou a complexi<strong>da</strong>de do<br />

debate em torno <strong>da</strong> efetivação dos direitos indígenas<br />

no Brasil. Esse processo demarcatório, que<br />

pode ser considerado um dos mais conflituosos<br />

<strong>da</strong> história do país, colocou em foco, duas<br />

déca<strong>da</strong>s após a promulgação <strong>da</strong> Constituição Federal<br />

de 1988, o desafio de concretizar as garantias<br />

constitucionais em um cenário de acentua<strong>da</strong>s<br />

tensões envolvendo os mais diversos setores <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de brasileira. Os impasses na demarcação<br />

37


<strong>da</strong> TI RSS decorreram principalmente<br />

<strong>da</strong>s disputas entre defensores <strong>da</strong><br />

confirmação <strong>da</strong> área demarca<strong>da</strong> em<br />

extensão contínua e aqueles que pretendiam<br />

a demarcação <strong>da</strong> área “em<br />

ilhas”, permitindo a permanência de<br />

não-índios ao redor <strong>da</strong>s aldeias.<br />

Com uma extensão territorial de<br />

851.196.500 hectares, o Brasil apresenta<br />

110.218.920 hectares destinados<br />

aos povos indígenas, o que corresponde<br />

a cerca de 13% de seu território. No<br />

total, há 430 terras indígenas no país,<br />

as quais se encontram em fases distintas<br />

do processo demarcatório. A maior<br />

parte <strong>da</strong>s terras indígenas concentrase<br />

na Amazônia Legal, onde vive 60%<br />

<strong>da</strong> população indígena brasileira. Esse<br />

é o caso <strong>da</strong> TI RSS, que está situa<strong>da</strong><br />

ao norte do Estado de Roraima, junto<br />

à fronteira do Brasil com a Venezuela<br />

e a Guiana. Atualmente, essa terra<br />

indígena possui área contínua de 1,74<br />

milhão de hectares e conta com aproxima<strong>da</strong>mente<br />

19 mil indígenas <strong>da</strong>s<br />

etnias Taurepang, Macuxi, Wapixana,<br />

Ingarikó e Patamona.<br />

No Brasil, o direito dos índios à posse<br />

<strong>da</strong>s terras por eles ocupa<strong>da</strong>s é reconhecido<br />

desde o período colonial, mas<br />

foi somente com a Constituição Federal<br />

de 1988 que se ofereceu aos povos indígenas<br />

garantias mais efetivas. Atribuiu-se<br />

à União a condução do processo demarcatório,<br />

que deve ser orientado pelo reconhecimento<br />

do direito originário dos<br />

índios sobre as “terras tradicionalmente<br />

ocupa<strong>da</strong>s”, defini<strong>da</strong>s pelo texto constitucional<br />

como sendo as terras “por eles<br />

habita<strong>da</strong>s em caráter permanente, as utiliza<strong>da</strong>s<br />

para suas ativi<strong>da</strong>des produtivas, as<br />

imprescindíveis à preservação dos recursos<br />

ambientais necessários ao seu bemestar<br />

e as necessárias a sua reprodução<br />

física e cultural, segundo seus usos, costumes<br />

e tradições” (art. 231, § 1º).<br />

No caso <strong>da</strong> TI RSS, há pesquisas<br />

etnográficas, relatos de cronistas <strong>da</strong><br />

38<br />

região e documentos oficiais do governo<br />

que comprovam a existência de<br />

diversas etnias indígenas em áreas localiza<strong>da</strong>s<br />

dentro dos limites do Estado<br />

de Roraima desde os tempos do Brasil<br />

Colônia. A presença desses povos naquela<br />

região foi especialmente importante<br />

para a demarcação <strong>da</strong>s fronteiras,<br />

pelos portugueses, frente às tentativas<br />

de ocupação espanhola. Apesar dos<br />

séculos de interferência por ocupações<br />

não-indígenas, as distintas etnias que<br />

hoje habitam o território de Roraima,<br />

em particular a TI RSS, apresentam um<br />

vínculo histórico com a região. A preservação<br />

<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de, a coesão cultural<br />

e a estrutura social desses povos<br />

indígenas dependem, portanto, <strong>da</strong> permanência<br />

em suas terras de origem.<br />

Nesse contexto histórico, deu-se<br />

início ao processo de reconhecimento<br />

<strong>da</strong> posse originária visando à demarcação<br />

oficial <strong>da</strong> TI RSS para uso exclusivo<br />

dos indígenas. Iniciado formalmente<br />

em 1977 e concluído somente em<br />

2005, o processo demarcatório dessa<br />

área, conduzido pela Fun<strong>da</strong>ção Nacional<br />

do Índio – FUNAI e homologado<br />

pelo Presidente <strong>da</strong> República – enfrentou<br />

uma série de dificul<strong>da</strong>des de natureza<br />

político-institucionais e ensejou<br />

numerosos questionamentos jurídicos.<br />

No que se refere ao plano político-institucional,<br />

o processo demarcatório<br />

<strong>da</strong> TI RSS prolongou-se em<br />

razão <strong>da</strong>s sucessivas mu<strong>da</strong>nças dos<br />

dirigentes de órgãos responsáveis<br />

pelo processo demarcatório no âmbito<br />

do poder executivo federal. No<br />

período entre a identificação <strong>da</strong> área<br />

pela FUNAI, em 1993, e a sua efetiva<br />

homologação, em 2005, o país<br />

contou com treze Ministros <strong>da</strong> Justiça<br />

– autori<strong>da</strong>de que declara a posse<br />

permanente <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des indígenas<br />

sobre as terras identifica<strong>da</strong>s pela<br />

FUNAI – ao longo dos governos dos<br />

Presidentes Itamar Franco, Fernando


Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula<br />

<strong>da</strong> Silva. Ain<strong>da</strong> que essa dinâmica<br />

harmonize-se com a necessi<strong>da</strong>de de<br />

aperfeiçoamento <strong>da</strong>s instituições democráticas<br />

no país, gera também instabili<strong>da</strong>de<br />

e demora na concretização<br />

<strong>da</strong>s ações necessárias à garantia dos<br />

direitos dos povos indígenas.<br />

Outro aspecto que teve impacto<br />

no processo foi a edição do decreto<br />

presidencial, em 1996, que alterou as<br />

regras do procedimento demarcatório<br />

e abriu novo prazo para que todos os<br />

possíveis interessados – inclusive Estados<br />

e Municípios – apresentassem<br />

contestações em relação a to<strong>da</strong>s as<br />

demarcações de terras indígenas em<br />

curso no país, independentemente <strong>da</strong><br />

fase do processo administrativo demarcatório.<br />

Tal iniciativa foi objeto de<br />

críticas especialmente porque, segun-<br />

do a regra constitucional, a condução<br />

desse processo cabe apenas à União,<br />

com a participação <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des<br />

indígenas envolvi<strong>da</strong>s.<br />

O caso também trouxe à tona questões<br />

relativas à coincidência <strong>da</strong> área <strong>da</strong><br />

TI RSS com áreas destina<strong>da</strong>s a outros<br />

fins. De fato, uma <strong>da</strong>s principais discussões<br />

centrou-se na sobreposição<br />

entre a terra indígena demarca<strong>da</strong> e a<br />

faixa de fronteira, o que supostamente<br />

significaria a impossibili<strong>da</strong>de de acesso<br />

de militares à região e representaria<br />

ameaça à soberania nacional. Ain<strong>da</strong><br />

nesse sentido discutiu-se a sobreposição<br />

<strong>da</strong> área destina<strong>da</strong> às comuni<strong>da</strong>des<br />

indígenas e o Parque Nacional do<br />

Monte Roraima, criado em 1989 com<br />

vistas a assegurar a preservação ambiental.<br />

Além disso, para tornar viável<br />

a permanência de não-índios na TI<br />

39<br />

Parte <strong>da</strong> área <strong>da</strong> Raposa Serra<br />

do Sol.


A monocultura do arroz<br />

tornou-se ameaça<br />

constante à proteção dos<br />

povos indígenas do<br />

Estado de Roraima.<br />

RSS foram feitas instalações de infraestrutura,<br />

como a construção de estra<strong>da</strong>s<br />

e a instalação de equipamentos<br />

públicos (como, por exemplo, linhas<br />

de transmissão de energia). A demarcação<br />

enfrentou, ain<strong>da</strong>, impasses de<br />

natureza federativa, em razão <strong>da</strong> criação<br />

de municípios dentro <strong>da</strong> área identifica<strong>da</strong><br />

(nota<strong>da</strong>mente os Municípios<br />

de Normandia em 1982 e de Uiramutã<br />

e Pacaraima em 1995) e <strong>da</strong>s crescentes<br />

pressões exerci<strong>da</strong>s pelos poderes locais<br />

e regionais em face <strong>da</strong> União.<br />

Somaram-se a essas questões a<br />

disputa pela terra. De modo geral, a<br />

pecuária, o garimpo e agricultura –<br />

nota<strong>da</strong>mente a monocultura de arroz<br />

– tornaram-se ameaças constantes à<br />

proteção dos povos indígenas que habitam<br />

essa região do Estado de Roraima.<br />

Em estudo realizado pelo Instituto<br />

Nacional de Pesquisas <strong>da</strong> Amazônia<br />

para monitorar a presença de monoculturas<br />

na área, sua evolução no tempo<br />

e impactos ambientais, identificou-se<br />

a presença de extensas áreas de monocultura<br />

de arroz dentro dos limites<br />

<strong>da</strong> TI RSS. Com base em imagens de<br />

satélites realiza<strong>da</strong>s nos anos de 1992,<br />

1997, 1998, 2001 e 2005, verificou-se<br />

que tais plantações correspondiam a<br />

ocupações de má-fé, tendo em vista<br />

que cresceram em período posterior<br />

ao <strong>da</strong> definição, pelo poder executivo<br />

federal, dos limites <strong>da</strong>quela terra indígena.<br />

Isso explica porque o processo<br />

de demarcação <strong>da</strong> TI RSS culminou<br />

em um cenário de intolerância e violência:<br />

protestos de rizicultores e nãoíndios<br />

contrários à demarcação, invasões<br />

a sedes locais de órgãos federais,<br />

bloqueios de rodovias e outras vias<br />

públicas e, até mesmo, agressões entre<br />

os grupos envolvidos no conflito.<br />

No plano jurídico, a demarcação<br />

<strong>da</strong> TI RSS, nos moldes definidos pela<br />

União, foi contesta<strong>da</strong>, direta e indiretamente,<br />

em inúmeras ações judiciais<br />

40<br />

no âmbito <strong>da</strong> justiça estadual, <strong>da</strong> justiça<br />

federal e dos tribunais superiores.<br />

Em 2005, a questão chegou ao STF<br />

por meio de ação popular em que se<br />

contestava, essencialmente, o modelo<br />

contínuo de demarcação <strong>da</strong> terra<br />

indígena e pedia-se a nuli<strong>da</strong>de dos<br />

atos do executivo que determinaram<br />

os seus limites. Em março de 2009, o<br />

STF decidiu pela constitucionali<strong>da</strong>de<br />

do processo demarcatório, não sem<br />

estabelecer certas condições – mais<br />

especificamente 18 condições – à ocupação<br />

<strong>da</strong>s terras pelos índios.<br />

Os Ministros declararam a vali<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> demarcação contínua e a necessi<strong>da</strong>de<br />

de desocupação <strong>da</strong> TI RSS por parte dos<br />

não-índios que se encontravam na região,<br />

consagrando o entendimento de que as<br />

terras cuja posse é atribuí<strong>da</strong> aos índios<br />

pela Constituição Federal não se limitam<br />

ao espaço <strong>da</strong>s aldeias, mas compreendem<br />

to<strong>da</strong> a área necessária à reprodução física<br />

e cultural <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des indígenas, não<br />

devendo ser reduzi<strong>da</strong> em função <strong>da</strong> presença<br />

de ocupações de não-indígenas.<br />

Quanto a um dos pontos mais polêmicos<br />

do caso – o suposto risco à soberania<br />

nacional – o STF decidiu não<br />

se opor à inclusão de faixa de fronteira<br />

na área <strong>da</strong> TI RSS, considerando não<br />

haver impedimento à atuação do poder<br />

público na região para a defesa do<br />

território brasileiro, mediante intervenção<br />

<strong>da</strong>s Forças Arma<strong>da</strong>s ou <strong>da</strong> Polícia<br />

Federal. Entendeu-se que o país dispõe<br />

de normas capazes de autorizar a<br />

proteção do nosso território, sem que<br />

a terra indígena represente um empecilho.<br />

Afastou-se, no entanto, a necessi<strong>da</strong>de<br />

de consulta, nessas situações,<br />

às comuni<strong>da</strong>des indígenas envolvi<strong>da</strong>s<br />

e à Funai, o que representa riscos de<br />

abusos, justificados pelo histórico de<br />

violências cometi<strong>da</strong>s por autori<strong>da</strong>des<br />

arma<strong>da</strong>s em terras de índios.<br />

É relevante mencionar que a decisão<br />

assegurou a participação dos entes<br />

FOTO: reprOduçãO


FOTO: reprOduçãO<br />

federados – Estados e Municípios – no<br />

processo administrativo de demarcação<br />

<strong>da</strong>s terras indígenas em seus territórios,<br />

realizado pela União. Quanto a isso,<br />

deve-se considerar que se por um lado<br />

a manifestação dos entes federados<br />

tende a aproximar o ci<strong>da</strong>dão do núcleo<br />

de decisão, descentralizando o poder<br />

e ampliando as esferas de controle sobre<br />

o próprio processo decisório, por<br />

outro lado é importante atentar para<br />

o fato de que elites locais – detentoras<br />

de cargos políticos ou suficientemente<br />

influentes na esfera política local – são,<br />

tradicionalmente, menos propícias a<br />

adotarem políticas equânimes de distribuição<br />

de terras e frequentemente se<br />

revelam pouco favoráveis à efetivação<br />

do direito indígena às terras.<br />

Por fim, no que diz respeito à extensão<br />

<strong>da</strong> TI RSS, embora neste aspecto<br />

a votação não tenha sido unânime, ficou<br />

decidido que a área demarca<strong>da</strong> não<br />

pode ser amplia<strong>da</strong>, o que pode significar<br />

fonte de dificul<strong>da</strong>des para diversas<br />

comuni<strong>da</strong>des indígenas caso isso seja<br />

interpretado como aplicável a to<strong>da</strong>s as<br />

TIs demarca<strong>da</strong>s no Brasil. Quem acom-<br />

panha a questão indígena de perto sabe<br />

que há comuni<strong>da</strong>des, como é o caso dos<br />

Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do<br />

Sul, cuja sobrevivência depende <strong>da</strong> revisão<br />

do tamanho de suas terras, demarca<strong>da</strong>s<br />

antes de 1988 e, portanto, sem as<br />

atuais garantias constitucionais.<br />

Diante de tais considerações, percebe-se<br />

que as consequências <strong>da</strong> demarcação<br />

<strong>da</strong> TI RSS ultrapassam o<br />

caso particular. Apesar <strong>da</strong>s restrições<br />

determina<strong>da</strong>s pelo STF, a conclusão<br />

do processo de demarcação representou<br />

um ganho importante em favor<br />

do projeto <strong>da</strong> Constituição Federal de<br />

1988, que visa garantir o respeito aos<br />

direitos <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des indígenas no<br />

Brasil. Também significou a superação<br />

dos impasses político-institucionais<br />

apontados e a possibili<strong>da</strong>de real de<br />

se encontrarem novas soluções para<br />

atender os interesses de diferentes setores<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Carolina Mota Mourão e Bianca Galafassi<br />

são advoga<strong>da</strong>s, com experiência em questões<br />

indígenas.<br />

41<br />

A conclusão do processo de demarcação<br />

representou um ganho importante<br />

em favor <strong>da</strong> Constituição.


42<br />

ECONOMIA<br />

aGroeNerGia<br />

Não É UMa aVeNtUra<br />

REAL OPORTUNIDADE<br />

PARA O CONTINENTE<br />

ROBERTO RODRIGUES<br />

a<br />

agricultura mundial tem um enorme<br />

conjunto de desafios para o<br />

futuro, representados pela necessi<strong>da</strong>de<br />

de aumentar a produção agropecuária<br />

com sustentabili<strong>da</strong>de. Nos<br />

próximos 30 anos, mais de dois bilhões<br />

de pessoas se somarão aos atuais 6,2 bilhões de<br />

terráqueos. Isto representa um aumento de 30% em<br />

30 anos! Deste total, cerca de 85% estarão na Ásia e<br />

na África, continentes com países mais pobres, mas<br />

onde a ren<strong>da</strong> per capita cresce mais que nos países<br />

ricos. Em 2030, 61% <strong>da</strong> população global será urbana,<br />

devido ao forte êxodo rural que vem ocorrendo,<br />

mu<strong>da</strong>ndo um perfil que, até 2010, terá maioria rural.<br />

Por estas, e outras razões, a FAO - Organização <strong>da</strong>s<br />

Nações Uni<strong>da</strong>s, para a Agricultura e a Alimentação,


FOTO: reprOduçãO<br />

acredita que, de 2005 e 2025, a oferta<br />

de grãos e de carnes precisaria crescer<br />

cerca de 42% para atender ao aumento<br />

<strong>da</strong> deman<strong>da</strong>.<br />

Mas produzir alimentos não será<br />

o único grande desafio dos agricultores<br />

contemporâneos. O prêmio Nobel<br />

de Química o neozelandês, Alan Mac<br />

Diarmid, afirmou que, nos próximos 50<br />

anos, cinco dos dez maiores problemas<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de terão que ser resolvidos<br />

pela agricultura (energia, água, alimentos,<br />

meio ambiente e pobreza).<br />

Na ver<strong>da</strong>de, a agropecuária contemporânea<br />

será responsável pela produção<br />

de três eixos fun<strong>da</strong>mentais para a<br />

vi<strong>da</strong> humana: alimentos, fibras e energia.<br />

E no caso <strong>da</strong> energia, esta responsabili<strong>da</strong>de<br />

ganha uma dimensão extraordinária.<br />

Nos próximos 30 anos, de<br />

acordo com a Agência Internacional de<br />

Energia, a deman<strong>da</strong> crescerá 50% em<br />

todo o mundo. Só a deman<strong>da</strong> de combustíveis<br />

líquidos será 55% maior no<br />

período. E está claro que o petróleo não<br />

resolverá tudo isto sozinho, ou o fará a<br />

preços elevados.<br />

Aliás, não deixa de ser surpreendente<br />

o fato de o petróleo ter se tornado<br />

a grande fonte de energia universal,<br />

somente em poucas déca<strong>da</strong>s do século<br />

XX. Antes disso, a biomassa deriva<strong>da</strong> de<br />

lenha havia sido, por séculos, a grande<br />

fonte de energia, secun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo carvão<br />

mineral. Mas, de repente, pelo baixo custo<br />

e pela facili<strong>da</strong>de de extração, o petróleo<br />

- que é fóssil, finito e mal distribuído<br />

se tornou o motor <strong>da</strong> civilização.<br />

O debate sobre seus altos preços<br />

e seus efeitos perversos para o aqueci-<br />

43<br />

Álcool armazenado em tonéis.


A agroenergia contribui<br />

de maneira efetiva<br />

para a redução<br />

do aquecimento global.<br />

mento global e para a poluição atmosférica,<br />

sobretudo nos grandes centros<br />

urbanos, vai conduzindo a investigação<br />

para fontes renováveis e não poluentes<br />

de energia. A ciência está debruça<strong>da</strong> sobre<br />

formas de melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de<br />

vi<strong>da</strong> para o futuro. Energia solar, energia<br />

nuclear, energia eólica, energia hidráulica,<br />

são temas recorrentes de eventos realizados<br />

diariamente nos quatro cantos.<br />

E, para o caso dos combustíveis líquidos,<br />

alternativas são também pensa<strong>da</strong>s,<br />

como o gás natural, uma nova célula de<br />

hidrogênio e o carro elétrico volta a ser<br />

avaliado com novas tecnologias.<br />

No entanto, é indiscutível que a<br />

agroenergia tem um papel reservado<br />

neste cenário em que os biocombustíveis<br />

se apresentam como uma solução<br />

simples. Qualquer país pode fazer seu<br />

próprio etanol e seu biodiesel, embora<br />

os custos de produção favoreçam<br />

mais uns que outros.<br />

O Brasil acumulou uma larga experiência<br />

com o etanol. Embora conhecesse<br />

este combustível desde os idos de<br />

1929, foi somente após o “choque do petróleo”,<br />

na déca<strong>da</strong> de 70, que o Governo<br />

Federal implantou um formidável programa<br />

nacional, o Proalcool - em 1975 - destinado<br />

à produção de álcool carburante.<br />

Foi um programa espetacular e único no<br />

mundo como alternativa concreta e consistente<br />

à explosão dos preços <strong>da</strong> gasolina.<br />

A indústria automobilística aderiu ao<br />

programa, reinventando o carro movido<br />

a álcool hidratado e os motores a gasolina<br />

aditiva<strong>da</strong> com álcool anidro. Foi um<br />

grande sucesso, mas a falta de visão de alguns<br />

poucos empresários do setor quase<br />

o colocou a perder. Como a matéria- prima<br />

para o álcool era a mesma do açúcar, a<br />

cana, quando os preços internacionais do<br />

açúcar remuneravam mais que o mercado<br />

interno do álcool, eles reduziam a produção<br />

deste para ganhar mais com aquele.<br />

Isto aconteceu em mais de uma oportuni<strong>da</strong>de,<br />

derrubando a confiança e a segu-<br />

44<br />

rança dos donos de carro a álcool, que<br />

perderam a fé no projeto. O Proalcool<br />

quase morreu por esta razão e, naturalmente,<br />

pela resistência que a indústria de<br />

petróleo oferecia a esta alternativa ao seu<br />

próprio império.<br />

O grande impulso do etanol se<br />

deu mais recentemente, a partir do começo<br />

do século XXI, quando a indústria<br />

automobilística brasileira desenvolveu<br />

o carro flex e quando os preços do<br />

petróleo voltaram a disparar.<br />

O carro flex deu ao consumidor<br />

a oportuni<strong>da</strong>de de escolher qual combustível<br />

usar, em função do preço e <strong>da</strong><br />

disponibili<strong>da</strong>de do produto.<br />

O presidente Luis Inácio Lula <strong>da</strong><br />

Silva compreendeu a importância que<br />

a agroenergia poderia ter para o Brasil,<br />

seja na direção <strong>da</strong> autossuficiência do<br />

petróleo, seja na geração de empregos,<br />

riqueza e ren<strong>da</strong> no país, para exportar<br />

etanol, biodiesel ou equipamentos e<br />

tecnologia, seja - principalmente - para<br />

ofertar ao mundo uma alternativa energética<br />

renovável, ambientalmente melhor,<br />

que poderia ser um projeto de<br />

desenvolvimento para todos os países<br />

tropicais. E passou a trabalhar em defesa<br />

<strong>da</strong> agroenergia. Mas este não é um<br />

tema apenas para o Brasil. Praticamente<br />

to<strong>da</strong> a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, entre os trópicos,<br />

é potencial produtora de agroenergia.<br />

A Argentina já produz biodiesel a<br />

partir <strong>da</strong> soja.<br />

Existem vantagens extraordinárias<br />

no uso dos biocombustíveis. A primeira,<br />

e relevante, é a ambiental. Qualquer<br />

planta cultiva<strong>da</strong> sequestra carbono.<br />

Por outro lado, é evidente que os combustíveis<br />

fósseis são muito mais poluentes<br />

do que os renováveis. Desta forma, a<br />

agroenergia contribui de maneira efetiva<br />

pra a redução do aquecimento global.<br />

A segun<strong>da</strong> é a renovabili<strong>da</strong>de: petróleo<br />

queimado não volta mais, ao passo<br />

que o etanol e o biodiesel são produzidos<br />

sempre, e ca<strong>da</strong> vez com melhor tec-


nologia, mais produtiva, competitiva e<br />

sustentável. O petróleo está onde está e<br />

ponto final. O biocombustível pode ser<br />

produzido em qualquer lugar do mundo,<br />

a partir de diversas matérias-primas.<br />

A terceira é de caráter social: o Proalcool<br />

gerou, à sua época, mais de um<br />

milhão de novos empregos, diretos ou indiretos.<br />

A nova fase do boom do etanol<br />

volta a empregar milhares de brasileiros de<br />

todos os níveis e competências, e já está<br />

faltando gente prepara<strong>da</strong> para as dezenas<br />

de nascentes projetos agroindustriais. Este<br />

é um fator que pode ser multiplicado em<br />

todos os países que optarem pela agroenergia,<br />

especialmente na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

O quarto é econômico: mais empregos<br />

e mais ren<strong>da</strong> já são <strong>da</strong>dos suficientes,<br />

mas o impacto na balança comercial<br />

de quem depende do petróleo<br />

é evidente. O Brasil é hoje auto-suficiente<br />

em óleo por causa dos biocombustíveis,<br />

especialmente do etanol. A<br />

matriz energética é muito melhor que<br />

a do resto do mundo, porque mais de<br />

40% é de energia renovável.<br />

E, mais ain<strong>da</strong>, a cogeração de<br />

eletrici<strong>da</strong>de por parte <strong>da</strong>s usinas de álcool<br />

ganha crescente importância no<br />

país, reduzindo os riscos de um apagão<br />

elétrico. O Estado de São Paulo, o<br />

mais industrializado do país, já consome<br />

17% de energia vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> cana-deaçúcar.<br />

E vai crescer.<br />

Mas a quinta vantagem é a mais<br />

importante de to<strong>da</strong>s: a agroenergia é um<br />

novo paradigma agrícola, e vai mu<strong>da</strong>r a<br />

geoeconomia agrícola mundial. Diferentes<br />

matérias-primas vocaciona<strong>da</strong>s para os<br />

mais diversos países mu<strong>da</strong>rão o panorama<br />

rural neles. Só a cana-de-açúcar, que<br />

ocupará áreas de pastagens, por exemplo,<br />

permitirá a produção de grãos, especialmente<br />

leguminosas, onde antes isto não<br />

existia. Além do mais, agroenergia deman<strong>da</strong><br />

terra, sol, água, gente, tecnologia<br />

e capital. Os primeiros cinco itens estão<br />

disponíveis entre os trópicos, seja na<br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, na África ou na Ásia.<br />

O capital, por sua vez, virá dos<br />

grandes consumidores de energia, mu<strong>da</strong>ndo<br />

até mesmo, possivelmente, a<br />

45


geopolítica mundial. Esta é a meta traça<strong>da</strong><br />

para a agroenergia e para os biocombustíveis.<br />

Da mesma forma como<br />

respondeu ao monumental desafio <strong>da</strong><br />

segurança alimentar no século XX, a<br />

agricultura, a pecuária e o agronegócio<br />

vão responder, no século XXI, ao<br />

enorme desafio <strong>da</strong> segurança energética,<br />

base para o desenvolvimento de<br />

qualquer comuni<strong>da</strong>de, de qualquer país,<br />

e nosso continente pode sair na frente.<br />

A recente volatili<strong>da</strong>de dos preços<br />

do petróleo não afetará violentamente os<br />

investimentos em biocombustíveis. Da<br />

mesma forma que a segurança alimentar<br />

era estratégica, a segurança energética<br />

também o será, e não importará, como<br />

não importou no primeiro caso, o custo<br />

de produção: o que importará é a garantia<br />

do suprimento de energia.<br />

É preciso, no entanto, criar um<br />

mercado global para os biocombustíveis.<br />

Para que este mercado seja criado,<br />

quatro premissas são essenciais: mais<br />

países produzindo e exportando; legislações<br />

que obriguem a mistura nos países<br />

consumidores; derruba<strong>da</strong> dos mitos;<br />

uma estratégia global.<br />

46<br />

Mais países produzindo e exportando:<br />

jamais haverá uma commoditie se<br />

um único país for exportador ou se o<br />

maior dentre eles estiver muito longe do<br />

segundo colocado. Nenhum governo<br />

asiático ou europeu trocará a dependência<br />

que tem hoje do petróleo <strong>da</strong> Opep<br />

por álcool de um só produtor. Por isso<br />

é necessário levar avante o acordo Brasil/Estados<br />

Unidos para a produção do<br />

etanol de cana na <strong>América</strong> Central e no<br />

Caribe, que já tem projetos na República<br />

Dominicana, El Salvador e Haiti.<br />

Também com o Japão se busca<br />

parceria similar, visando a produção de<br />

etanol em países asiáticos. O processo<br />

deveria se repetir em acordos com a<br />

União Européia tendo em vista a África,<br />

sobretudo a subsahariana. Neste<br />

caso a concentração <strong>da</strong> atenção deve se<br />

<strong>da</strong>r na cana-de-açúcar como matéria-<br />

prima principal. Ela tem muito mais resultado<br />

econômico e no balanço energético<br />

do que outras matérias primas,<br />

especialmente o milho.<br />

Mistura compulsória: é evidente<br />

que os biocombustíveis não interessam<br />

à indústria de petróleo, nem a boa parte


<strong>da</strong> indústria de alimentos. Não obstante<br />

algumas empresas petrolíferas já estejam<br />

reconhecendo que a mistura de X%<br />

de álcool na gasolina pode aumentar em<br />

X% o tempo de “dominação” do império,<br />

o lobby ain<strong>da</strong> é contra a agroenergia,<br />

porque esta não deixa de ser uma ameaça.<br />

Diante disto, só com legislação que<br />

obrigue a mistura, será possível criar um<br />

poderoso mercado consumidor. O potencial<br />

deste mercado é enorme.<br />

A legislação americana prevê um<br />

consumo de 136 bilhões de litros em 2022<br />

e a União Européia, mais de 10 bilhões<br />

no mesmo período, sem falar em China,<br />

Japão, Coréia e outros países importantes.<br />

Mesmo no Brasil, o Proalcool só<br />

se firmou para valer quando o governo<br />

obrigou, por lei, a mistura do álcool à<br />

gasolina. Aliás, foi este mesmo princípio<br />

que orientou a posição do atual governo<br />

ao implantar o Programa de Biodiesel.<br />

Os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

deveriam criar legislações harmoniza<strong>da</strong>s<br />

neste quesito, tornando-se o<br />

primeiro grande conjunto global produtor<br />

de biocombustíveis.<br />

Eliminar os mitos: os “adversários”<br />

dos biocombustíveis tratam de alimentar<br />

a mídia com desinformações. Todos os<br />

dias se noticia, mundo afora, um fantasma<br />

hipoteticamente criado pela agroenergia:<br />

vai haver escassez de alimentos porque as<br />

terras cultiva<strong>da</strong>s com estes serão usa<strong>da</strong>s<br />

para produção de biocombustíveis. Na<strong>da</strong><br />

mais escan<strong>da</strong>losamente falso. Dados conhecidos<br />

mostram que há disponibili<strong>da</strong>de<br />

de terra para isso, no mundo todo.<br />

Em recente estudo econométrico<br />

realizado pela Fun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas,<br />

importante e respeita<strong>da</strong> instituição acadêmica<br />

brasileira, ficou absolutamente provado<br />

que o aumento recente dos preços<br />

dos alimentos se deve a dois fatores:<br />

Primeiro, o desequilíbrio entre<br />

oferta e deman<strong>da</strong>: nos últimos anos, a<br />

deman<strong>da</strong> de alimentos, especialmente<br />

nos países emergentes cresceu mui-<br />

to mais que a oferta, gerando estoques<br />

mundiais ca<strong>da</strong> vez menores.<br />

Segundo, a especulação dos<br />

grandes fundos nos mercados futuros.<br />

Aliás, com a crise financeira<br />

mundial, os especuladores saíram do<br />

mercado agrícola e os preços já caíram<br />

bastante.<br />

Fonte: USDA (Jun/2009) Nota: calculado com base no estoque inicial e o consumo do mesmo ano.<br />

Elaboração: GV Agro<br />

Mas o exemplo brasileiro é o mais<br />

importante. Hoje no país se cultivam 72<br />

milhões de hectares de to<strong>da</strong>s as plantas, e<br />

apenas 5% disto (3,6 milhões de hectares)<br />

são plantados com cana para produzir etanol.<br />

Outro tanto é destinado para açúcar.<br />

E temos cerca de 71 milhões de hectares,<br />

parte do que é hoje ocupado com pastagens,<br />

por ser agricultados, em função de<br />

boas condições de solo e clima. Destes,<br />

apenas 22 milhões de hectares serviriam<br />

para a cana, de modo que ain<strong>da</strong> sobrariam,<br />

só no Brasil, cerca de 50 milhões de hectares<br />

para a produção de alimentos. É a<br />

mesma área hoje cultiva<strong>da</strong>, o que nos permite<br />

dobrar, horizontalmente, a produção.<br />

E to<strong>da</strong> a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> tem espaço<br />

generoso para isso. Adicionalmente, a<br />

perspectiva de fazer álcool do bagaço de<br />

cana e <strong>da</strong>s folhas de cana corta<strong>da</strong> crua com<br />

colhedeiras, viabiliza dobrar a produção<br />

47


de álcool por hectare. Tudo isso leva ao<br />

horizonte hipotético <strong>da</strong> produção de 300<br />

bilhões de litros de álcool por ano, quinze<br />

vezes mais do que hoje se produz.<br />

A oferta de alimentos, por outro<br />

lado, crescerá não apenas por causa do aumento<br />

horizontal <strong>da</strong> área cultivável, mas<br />

também pelo aumento <strong>da</strong> produtivi<strong>da</strong>de.<br />

A julgar pelos avanços obtidos nos últimos<br />

quinze anos com a área e a produção<br />

de grãos, há muito ain<strong>da</strong> por avançar.<br />

Também precisa ficar claro que<br />

não vai ser preciso ir à Amazônia em<br />

busca de terra: to<strong>da</strong> a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

tem área suficiente para produzir energia<br />

e alimentos sem competição. Ademais,<br />

a Amazônia é longe dos centros<br />

de consumo e dos portos, e a logística<br />

cara inviabilizaria o etanol. E por último,<br />

vastas regiões <strong>da</strong> floresta são impróprias<br />

para o cultivo <strong>da</strong> cana porque<br />

chove todo o tempo, o que impede a<br />

maturação <strong>da</strong> gramínea.<br />

Por to<strong>da</strong>s estas razões, a floresta<br />

não será destruí<strong>da</strong> para plantar cana.<br />

Também é tolice dizer que nenhuma área<br />

<strong>da</strong> Amazônia legal terá cana. Terá, até<br />

porque na região vivem hoje 25 milhões<br />

de brasileiros que também consomem.<br />

Mas esta é a exceção à regra.<br />

Para eliminar estes mitos, é preciso<br />

dizer também que a emissão de CO2<br />

48<br />

de to<strong>da</strong> a cadeia produtiva do etanol<br />

(desde o plantio <strong>da</strong> cana até queima do<br />

combustível) representa apenas 11% <strong>da</strong><br />

emissão de CO2 <strong>da</strong> gasolina.<br />

Portanto, os biocombustíveis,<br />

além de gerar empregos e ren<strong>da</strong> nos<br />

países mais pobres, além de aju<strong>da</strong>r a<br />

produzir mais alimentos e bioeletrici<strong>da</strong>de,<br />

também contribuem para a redução<br />

do aquecimento global.<br />

Trata-se de uma obvie<strong>da</strong>de tão<br />

cristalina, que impressiona a resistência<br />

contra estas vantagens to<strong>da</strong>s. O<br />

Brasil vai ampliar sua produção; como<br />

se vê no quadro abaixo.<br />

E to<strong>da</strong> a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> poderia<br />

entrar nesta temática. Uma estratégia<br />

global: a criação de um mercado de<br />

biocombustíveis mu<strong>da</strong>rá o paradigma<br />

agrícola mundial, aumentará a produção<br />

de alimentos, melhorará a geopolítica<br />

internacional (diminuindo a distância<br />

entre países ricos e pobres) e reduzirá o<br />

aquecimento global.<br />

Estes fatos exigem uma grande estratégia<br />

global, alicerça<strong>da</strong> em parcerias construtivas<br />

entre países dos cinco continentes e<br />

com uma visão inovadora dos organismos<br />

<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, como a Organização<br />

<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a Agricultura e<br />

Alimentação- FAO, a Organização Mundial<br />

de Comércio- OMC, e Conferência<br />

<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, para o Comércio e o<br />

Desenvolvimento, entre outros.<br />

As grandes instituições financeiras<br />

como Banco Interamericano do<br />

Desenvolvimento e Fundo Monetário<br />

Internacional, também precisam se engajar<br />

neste projeto.<br />

Não é uma aventura. A <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> sabe disso, e só não vê quem<br />

não quer.<br />

Roberto Rodrigues é engenheiro agrônomo e foi<br />

ministro <strong>da</strong> agricultura.


DESAFIO<br />

MerCoSUl<br />

atiNGe a Maiori<strong>da</strong>de<br />

AVANÇOS<br />

E RETROCESSOS<br />

EM 18 ANOS<br />

RUBENS BARBOSA<br />

o<br />

Mercado Comum do Sul –<br />

Mercosul – está completando<br />

18 anos. Alcançou a maiori<strong>da</strong>de?<br />

Tudo indica que ain<strong>da</strong><br />

não. A despeito de muitos<br />

esforços no sentido de sua<br />

consoli<strong>da</strong>ção, o organismo tem apresentando dificul<strong>da</strong>des.<br />

Um especialista no assunto, Rubens<br />

Barbosa, mestre em ciências políticas e econômicas,<br />

aponta, nesta edição, os problemas que o<br />

organismo vem enfrentando, ao responder perguntas<br />

formula<strong>da</strong>s por cinco outros intelectuais<br />

estudiosos do assunto: Celso Lafer, Tullo Vigevani,<br />

Ricardo Markwald, Demétrio Magnoli e Sérgio<br />

Fausto. De todo o modo, para Barbosa, a despeito<br />

dos retrocessos o Mercosul não desaparecerá.<br />

49


TULLO VIGEVANI - No início dos<br />

anos 90 nos governos Collor e Itamar<br />

Franco e ain<strong>da</strong> no governo Sarney<br />

surgiu a ideia de um ministério <strong>da</strong><br />

integração regional que acabou sendo<br />

efetivamente constituído. Qual é a relação<br />

entre a criação deste ministério<br />

e o início do funcionamento <strong>da</strong> Subsecretaria<br />

de Integração Regional do<br />

Ministério <strong>da</strong>s Relações Exteriores?<br />

Havia divergências nos governos brasileiros<br />

sobre as formas de encaminhar<br />

a integração?<br />

RUBENS BARBOSA - A criação do<br />

Ministério <strong>da</strong> Integração Regional foi<br />

uma decisão política do Presidente Fernando<br />

Collor. O Itamaraty já estava estu<strong>da</strong>ndo<br />

a criação de um Departamento<br />

de Integração para coordenar as negociações<br />

comerciais no âmbito <strong>da</strong> Aladi e do<br />

recém criado Mercosul. O aparecimento<br />

do Ministério acelerou a decisão sobre o<br />

Departamento de Integração, sugerido<br />

por mim ao Ministro Rezek. Por indicação<br />

dele, fui o primeiro chefe do recém-<br />

criado Departamento. Pelo Tratado de<br />

Assunção, as Chancelarias são, em todos<br />

os países membros, os coordenadores<br />

50<br />

<strong>da</strong>s negociações do Mercosul e durante o<br />

período em que o Ministério existiu houve<br />

estreita coordenação, sob o comando<br />

do Itamaraty. Mais tarde, o Departamento<br />

foi transformado em Subsecretaria de<br />

Integração e o Ministério foi extinto. Não<br />

havia nenhuma divergência entre o Governo<br />

Collor e o Governo Itamar Franco<br />

quanto à forma de encaminhamento do<br />

processo de integração. O Mercosul foi,<br />

desde o início e continua atualmente sendo,<br />

um projeto de Estado, com razoável<br />

continui<strong>da</strong>de de ações governamentais<br />

não só na área comercial, como também<br />

agora na área política e social.<br />

RICARDO MARkwALD - Quando<br />

do estabelecimento <strong>da</strong> união aduaneira<br />

afirmava-se que a principal motivação<br />

do Brasil para a constituição<br />

do Mercosul era “política”, enquanto<br />

a <strong>da</strong> Argentina era prioritariamente<br />

“comercial”. Em outras palavras: o<br />

principal atrativo do Mercosul para<br />

Argentina era o livre acesso a um mercado<br />

cujo tamanho era três ou quatro<br />

vezes maior que o próprio, enquanto<br />

que o principal atrativo para o Brasil<br />

residia na possibili<strong>da</strong>de de afirmar sua FOTO:<br />

divulgaçãO


liderança na <strong>América</strong> do Sul, ganhar<br />

visibili<strong>da</strong>de e aumentar seu poder de<br />

barganha na arena internacional. Qual<br />

é o balanço do Mercosul na ótica de<br />

ca<strong>da</strong> um dos (principais) sócios à luz<br />

dessas expectativas?<br />

R.B. - Talvez fosse mais preciso dizer<br />

que o Brasil sempre teve uma visão de<br />

longo prazo em relação ao Mercosul,<br />

enquanto a Argentina tinha, e ain<strong>da</strong> tem,<br />

uma visão de curto prazo, mais comercialista,<br />

tendo como referência o grande<br />

mercado brasileiro. Na visão brasileira,<br />

o Mercosul seria a plataforma para um<br />

processo mais amplo de integração sulamericana.<br />

O objetivo era aumentar o<br />

intercâmbio comercial com os países<br />

membros do Mercosul e com os vizinhos<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> do Sul. No início do<br />

Mercosul, não havia a ênfase de coordenação<br />

política, o que veio a ocorrer<br />

mais tarde e agora adquiriu contornos<br />

mais nítidos, apesar <strong>da</strong> inexistência de<br />

resultados concretos do ponto de vista<br />

do Brasil. Do ângulo político, é evidente<br />

que uma integração comercial no Cone<br />

Sul e depois na <strong>América</strong> do Sul reforçaria<br />

a posição e a visibili<strong>da</strong>de do Brasil<br />

- que representa mais <strong>da</strong> metade do<br />

produto, <strong>da</strong> população, do território <strong>da</strong><br />

região - no cenário internacional. Não<br />

havia, contudo, a intenção de buscar<br />

uma liderança política a partir do Mercosul.<br />

Ela viria por gravi<strong>da</strong>de no médio<br />

e longo prazo. Um dos problemas que<br />

o Mercosul enfrenta hoje é justamente<br />

a falta de uma atitude firme do Brasil<br />

no sentido de influir decidi<strong>da</strong>mente no<br />

processo de integração do Mercosul e<br />

regional. O Brasil hoje está sem uma<br />

estratégia clara para a defesa de seus<br />

interesses, e mostra uma atitude reativa<br />

frente a iniciativas que são toma<strong>da</strong>s por<br />

seus sócios do Mercosul, nem sempre<br />

alinha<strong>da</strong>s com nossos interesses. Hoje,<br />

contudo, com as grandes transformações<br />

que estão ocorrendo no mundo, na<br />

<strong>América</strong> do Sul e no Brasil, o Mercosul,<br />

no contexto internacional, é mais um<br />

peso do que uma vantagem. O Mercosul<br />

está perdendo importância relativa no<br />

contexto do comércio exterior brasileiro,<br />

representando, em 2008, apenas cerca<br />

de 9% do total, enquanto em 1997/8<br />

era responsável por 16%. No caso <strong>da</strong><br />

Argentina, penso que o resultado foi<br />

bem mais positivo, como pode ser comprovado,<br />

por exemplo, pela ampliação<br />

<strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de produtiva <strong>da</strong> indústria<br />

automobilística, que, sem o Mercosul,<br />

provavelmente teria deixado de existir.<br />

Se a Argentina não se beneficiou mais<br />

do acesso ao mercado brasileiro foi em<br />

decorrência de seus problemas internos,<br />

políticos e econômicos, e pela debili<strong>da</strong>de<br />

de seu setor industrial, fragilizado<br />

por políticas econômicas equivoca<strong>da</strong>s<br />

ao longo dos últimos 20 anos.<br />

DEMéTRIO MAGNOLI - O Mercosul,<br />

como a União Européia, nasceu para solucionar<br />

uma necessi<strong>da</strong>de política e estratégica:<br />

converter a tradicional rivali<strong>da</strong>de<br />

com a Argentina numa parceria estratégica.<br />

A entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Venezuela de Hugo<br />

Chávez no Mercosul também deveria ser<br />

analisa<strong>da</strong> sob o ponto de vista estratégico,<br />

e não meramente sob o ponto de vista<br />

comercial. Como o senhor interpreta a<br />

incorporação <strong>da</strong> Venezuela?<br />

R.B. - O Mercosul foi um desdobramento<br />

natural <strong>da</strong> aproximação política<br />

e estratégica entre o Brasil e a Argentina,<br />

inicia<strong>da</strong> logo após a volta ao<br />

poder civil nos dois países. Acordos<br />

econômicos e comerciais e de cooperação<br />

nuclear foram a pedra de toque<br />

para o desarmamento dos espíritos<br />

entre os dois países. O eixo Brasília-<br />

Buenos Aires é a base para o processo<br />

de integração do Mercosul. A entra<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> Venezuela - promovi<strong>da</strong> pela Argentina<br />

e apoia<strong>da</strong> pelo Brasil -, do ponto<br />

de vista estratégico, para o Mercosul<br />

51


é positiva na medi<strong>da</strong> em que amplia<br />

a base territorial <strong>da</strong> União Aduaneira,<br />

que irá <strong>da</strong> Terra do Fogo ao Caribe,<br />

e incorpora uma potência petroleira e<br />

um dos três ou quatro maiores países<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> do Sul. A adesão <strong>da</strong> Venezuela,<br />

com o forte empenho do atual<br />

governo brasileiro, colocará, contudo,<br />

alguns desafios importantes para<br />

o Brasil. Em primeiro lugar, poderá<br />

criar um novo eixo: Buenos Aires-<br />

Caracas, como evidenciado pela coordenação<br />

entre as duas capitais em relação<br />

a diversas iniciativas de Chávez.<br />

Em segundo lugar, poderá aumentar<br />

a pressão sobre o Brasil na toma<strong>da</strong> de<br />

decisões, visto que o processo decisório<br />

ain<strong>da</strong> é consensual. O veto de<br />

um país bloqueia decisões que podem<br />

interessar a todos. O voto ponderado<br />

terá de ser introduzido, caso o processo<br />

avance em direção a um mercado<br />

comum, como previsto no Tratado<br />

de Assunção. O Congresso Nacional,<br />

que deverá apreciar o Protocolo<br />

de Adesão <strong>da</strong> Venezuela ao Mercosul,<br />

com compromissos assumidos livremente<br />

por Caracas, deveria verificar<br />

se essas obrigações estão sendo cumpri<strong>da</strong>s<br />

no tocante ao processo de liberalização<br />

comercial, a incorporação<br />

<strong>da</strong> Tarifa Externa Comum, a incorporação<br />

<strong>da</strong>s normas e regulamentos do<br />

Mercosul ao ordenamento jurídico venezuelano<br />

e as obrigações decorrentes<br />

de acordos assinados pelo Mercosul<br />

com terceiros países. O maior desafio<br />

do Brasil, nos próximos anos, com a<br />

Venezuela incorpora<strong>da</strong> ao Mercosul,<br />

será como tratar as atitudes e propostas<br />

de Hugo Chavéz que tem uma<br />

agen<strong>da</strong> diferente <strong>da</strong> do Brasil, dentro<br />

de sua visão alternativa aos EUA e ao<br />

sistema de mercado. Como vai atuar<br />

a alternativa bolivariana (Alba) em relação<br />

ao Mercosul? Vamos continuar<br />

a reboque dos acontecimentos, como<br />

até aqui, ou vamos definir claramente<br />

52<br />

nosso interesse regional, dentro e fora<br />

do Mercosul?<br />

SéRGIO FAUSTO - Em vista do retrospecto<br />

do Mercosul e <strong>da</strong>s oportuni<strong>da</strong>des<br />

que se abrem para o Brasil<br />

no mundo, o que seria melhor para os<br />

interesses de longo prazo do País: preservar<br />

o Mercosul como União Aduaneira<br />

ou transformá-lo em Área de Livre<br />

Comércio?<br />

R.B. - O Mercosul, apesar de to<strong>da</strong>s as<br />

dificul<strong>da</strong>des e retrocessos na área comercial,<br />

não desaparecerá. Dificilmente<br />

algum presidente assumirá o ônus político<br />

de tomar uma decisão radical nessa<br />

direção. Em vista <strong>da</strong> fragili<strong>da</strong>de institucional<br />

do Mercosul, decorrência do<br />

seguido descumprimento de muitas <strong>da</strong>s<br />

regras do Tratado de Assunção, o Brasil<br />

deveria adotar uma atitude pragmática.<br />

O Mercosul é hoje uma união aduaneira<br />

imperfeita. O desaparecimento <strong>da</strong> Tarifa<br />

Externa Comum, como consequência<br />

de uma eventual transformação do<br />

Mercosul em área de livre comércio,<br />

poderia, a médio prazo, ser contrário<br />

aos interesses <strong>da</strong> indústria brasileira pela<br />

inevitável triangulação que ocorreria sobretudo<br />

com a China. A Resolução 32,<br />

de 2000, que determina aos membros<br />

do Mercosul a negociação interna com<br />

uma só voz, deveria ser flexibiliza<strong>da</strong>,<br />

como ocorreu nos entendimentos com<br />

o Grupo Andino e com o Suriname. Os<br />

objetivos maiores de completar uma<br />

união aduaneira e um mercado comum<br />

permaneceriam, mas, na prática, as negociações<br />

sobre produtos deveriam ser<br />

feitas de forma individual. A Resolução<br />

32 representa uma decisão política, fora<br />

do Tratado de Assunção. Mesmo sem<br />

revogar a Resolução, os países poderiam<br />

concor<strong>da</strong>r em negociar individualmente<br />

com o compromisso de fazer convergir<br />

as tarifas depois de um período determinado.<br />

Os objetivos de longo prazo do


Tratado permaneceriam, mas nas negociações<br />

de novos acordos comerciais, as<br />

listas de produtos seriam discuti<strong>da</strong>s separa<strong>da</strong>mente.<br />

O importante, do ponto<br />

de vista do Brasil, é não limitar - como<br />

está ocorrendo no momento atual - a<br />

margem de manobra para buscar acordos<br />

com parceiros comerciais importantes.<br />

Essa modificação no Mercosul<br />

deveria ser parte de uma nova estratégia<br />

de negociação comercial, mais de acordo<br />

com os interesses nacionais.<br />

CELSO LAFER - O Mercosul corre,<br />

passados 18 anos, o risco de uma aladização?<br />

R.B. - A fragili<strong>da</strong>de institucional, já menciona<strong>da</strong>,<br />

o descumprimento do Tratado<br />

de Assunção e <strong>da</strong>s regras <strong>da</strong> OMC pelas<br />

crescentes medi<strong>da</strong>s restritivas dentro do<br />

bloco e a falta de um claro objetivo nos<br />

entendimentos apontam para um crescente<br />

risco de aladização do Mercosul.<br />

Como fui Representante do Brasil junto<br />

a Aladi, em Montevidéu, entendo perfeitamente<br />

a observação. A Aladi, cria<strong>da</strong> em<br />

1980 para impulsionar o processo de integração<br />

regional, decorridos quase trinta<br />

anos, pouco avançou pela falta de apoio<br />

político dos seus membros e pelo déficit<br />

de integração de todos os países, muito<br />

mais preocupados com seus problemas<br />

internos do que com o avanço institucional<br />

dos mecanismos de integração. A<br />

grande questão é que o Brasil, que poderia<br />

se beneficiar mais com o processo de<br />

integração, está paralisado. Sem liderança,<br />

o processo de integração avança tími<strong>da</strong><br />

e lentamente sem uma estratégia clara<br />

e sem um objetivo definido.<br />

Rubens Barbosa, Celso Lafer, Sérgio Fausto e<br />

Tulio Vigevani são cientistas políticos, Ricardo<br />

Markwald é especialista em comércio internacional<br />

e Demetrio Magnoli é sociólogo e geógrafo.<br />

53<br />

À esquer<strong>da</strong>, Brasília<br />

em desenho de Oscar Niemeyer,<br />

e à direita, Buenos Aires em<br />

intervenção sobre fotografia.


BOGOTÁ<br />

CAPITAL MUDIAL DO LIVRO<br />

LEONOR AMARANTE<br />

SILVIA PRADA<br />

54<br />

ACERVO<br />

lUiS ÁNGel araNGo<br />

biblioteCa<br />

Modelo<br />

Já na calça<strong>da</strong>, momentos antes de entrar<br />

na Biblioteca Luis Ángel Arango<br />

em Bogotá, a mais visita<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong>, fui surpreendi<strong>da</strong> por um projeto<br />

cativante. Caiu em minhas mãos um<br />

exemplar de bolso de Cortázar, entregue<br />

por uma pessoa que esperava um ônibus. Sem<br />

compreender na<strong>da</strong>, abri o livro e na contracapa<br />

entendi a senha. “Depois de ler, passe a outra pessoa<br />

ou deixe o exemplar em outro lugar público”.<br />

Na sequência fiquei sabendo que a coleção Leitura<br />

ao Vento publicara outros escritores como<br />

García Márquez, Borges, ca<strong>da</strong> um com 70 mil<br />

exemplares. Nesse cartão de visita de Bogotá já<br />

continha tudo o que aquele país havia conquistado<br />

em matéria de livro e de leitor. Com uma


FOTOs: reprOduçãO<br />

ponta de inveja, reação natural de qualquer<br />

editor e amante de livro, segui para<br />

a megabiblioteca Luis Ángel Arango.<br />

Logo depois de vencer as primeiras<br />

salas me dei conta de onde estava<br />

e me lembrei de Humberto Eco<br />

falando sobre bibliotecas. “Elas deveriam<br />

se transformar, gradualmente,<br />

numa grande máquina de tempos livres,<br />

como é o Museu de Arte Moderna<br />

de Nova York, aonde se vai ao<br />

cinema, se passeia no jardim, se vê<br />

escultura e se faz refeição completa.”<br />

Ou seja, se a biblioteca é, como pretende<br />

Borges, um modelo do Universo,<br />

tentemos transformá-la num Universo<br />

à medi<strong>da</strong> do Homem.<br />

A Colômbia, terra natal de García<br />

Márquez, parece seguir os conselhos de<br />

Humberto Eco. O movimento intenso<br />

<strong>da</strong> Biblioteca Luis Ángel Arango, no<br />

centro do Bogotá, que reúne cerca de<br />

dois milhões e setecentos exemplares, e<br />

tem espaços amplos com capaci<strong>da</strong>de de<br />

acomo<strong>da</strong>r dois mil leitores sentados, dá<br />

mostra de que o público heterogêneo<br />

e animado se orgulha <strong>da</strong> sua biblioteca<br />

modelo.<br />

Ao longo do edifício perfilam<br />

espaços amplos, claros, coloridos, mas<br />

também há outros silenciosos dedicados<br />

ao estudo e à pesquisa. O ambiente<br />

digno qualifica o ato de ler. Transcendendo<br />

os conceitos de Borges, nos<br />

55


quais livro e leitura são extensões <strong>da</strong><br />

memória, as bibliotecas colombianas<br />

fazem parte dos programas de combate<br />

à violência e dão ao homem comum<br />

muito mais do que leitura, o introduzem<br />

ao universo <strong>da</strong>s artes plásticas, <strong>da</strong><br />

música e os leva aos debates, que ocorrem<br />

frequentemente.<br />

Pouco se sabe sobre essa outra<br />

face <strong>da</strong> Colômbia, país de prêmio Nobel<br />

de literatura com Garcia Márquez,<br />

pintores importantes como Fernando<br />

Botero, alta tecnologia no cultivo do<br />

café, de flores e frutas. Esse país de topografia<br />

cenográfica busca acabar com<br />

o narcotráfico e a violência tendo como<br />

armas a cultura e, sobretudo a leitura. Se<br />

bibliotecas brotam em todo o país, só<br />

nos últimos anos houve a “corri<strong>da</strong> aos<br />

livros”. O programa colombiano de alfabetização,<br />

considerado modelo, exibe<br />

56<br />

seu resultado: apenas cinco por cento <strong>da</strong><br />

população não sabe ler. Soma<strong>da</strong> a essa<br />

maratona do saber, a presença marcante<br />

do Banco de la República, mantenedor<br />

<strong>da</strong> Biblioteca Luis Ángel Arango com<br />

investimentos constantes é a alavanca<br />

principal. A resposta natural do público<br />

é imediata e figura no índice de fideli<strong>da</strong>de<br />

à instituição e ao livro.<br />

Costuma - se dizer que só se colhe<br />

aquilo que se planta. Essa lógica é comprova<strong>da</strong><br />

na Colômbia. A Unesco escolheu<br />

Bogotá como Capital Mundial do<br />

Livro. Diante do reconhecimento, outras<br />

instituições também se curvaram.<br />

A Fun<strong>da</strong>ção Bill e Melin<strong>da</strong> Gates doou<br />

um milhão de dólares para a rede municipal<br />

de bibliotecas, além de disponibilizar<br />

equipamentos tecnológicos.<br />

A Biblioteca Luis Ángel Arango<br />

é o principal guardião <strong>da</strong> riqueza literária<br />

do país e responsável por outras<br />

16 bibliotecas espalha<strong>da</strong>s por várias ci<strong>da</strong>des,<br />

além de sala de concertos, museu<br />

numismático e a Coleção Botero,<br />

doa<strong>da</strong> pelo nome máximo <strong>da</strong> pintora<br />

colombiana, que além de seus quadros


conserva ain<strong>da</strong> os de Picasso, Klee, Bacon<br />

e Miró, entre outros. Esse projeto<br />

governamental fez escola. A prefeitura<br />

de Bogotá construiu outras megabibliotecas<br />

pela ci<strong>da</strong>de e criou diversos<br />

programas de leitura de olho <strong>da</strong> formação<br />

de leitores em massa.<br />

Hoje tudo isso é sinônimo de sucesso,<br />

e a história <strong>da</strong> Biblioteca Ángel<br />

Arango prova que uma ideia simples<br />

pode se desdobrar em algo espetacular.<br />

Em 1933 quando o Banco de la República<br />

(Banco Central <strong>da</strong> Colômbia) decidiu<br />

receber o público em sua acanha<strong>da</strong><br />

biblioteca, que contava com apenas<br />

doze cadeiras e cerca de dez mil livros.<br />

Vinte e cinco anos se passaram e o grande<br />

impulso veio em 1958 quando a biblioteca<br />

ganha sede e se transforma em<br />

Biblioteca Luis Ángel Arango, com 250<br />

lugares para leitura e acervo de cerca de<br />

cem mil volumes. O sucesso do empreendimento<br />

foi tal que logo se tornou a<br />

biblioteca mais visita<strong>da</strong> de Bogotá. A<br />

quali<strong>da</strong>de dos serviços é também uma<br />

grife. Vários pesquisadores nacionais e<br />

estrangeiros mencionam esse quesito<br />

em artigos acadêmicos.<br />

Hoje a Biblioteca Luis Angel<br />

Arango é uma <strong>da</strong>s maiores <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s<br />

e seu nome entrou para o catálogo <strong>da</strong>s<br />

maiores bibliotecas contemporâneas.<br />

No seu acervo se destacam entre livros<br />

raros, teses estrangeiras sobre a Colômbia<br />

e a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, que somam mais<br />

de cinco mil; a documentação em microfilme,<br />

perto de 400 rolos que transcrevem<br />

as instruções e informações<br />

secretas dos embaixadores americanos<br />

em Bogotá, bem como coleções sobre<br />

movimentos sociais. A música também<br />

chama a atenção com a ampla coleção<br />

de partituras eruditas e populares, gravações<br />

de vídeo, discos laser e digitais,<br />

que podem ser apreciados nas cabines<br />

com equipamento apropriado.<br />

Depois de reler no hotel o Jogo<br />

de Amarelinha e já pensando em que<br />

outro lugar público deixaria a obra de<br />

Cortázar saí feliz pelas ruas de Bogotá.<br />

Leonor Amarante é editora <strong>da</strong> revista<br />

Nossa <strong>América</strong>.<br />

57


iblored ColoMbiaNa<br />

SILVIA PRADA<br />

A biblioteca pública como instituição<br />

social tem sofrido importantes<br />

transformações na socie<strong>da</strong>de atual.<br />

Nesse sentido países como a Colômbia<br />

vêm observando importantes fenômenos<br />

relacionados com o lugar e a<br />

valorização <strong>da</strong> biblioteca pública, não<br />

apenas como um problema dos bibliotecólogos,<br />

mas também como parte,<br />

ca<strong>da</strong> mais crescente, dos discursos de<br />

governo tanto do país como <strong>da</strong>s grandes<br />

ci<strong>da</strong>des.<br />

Neste sentido, a biblioteca pública<br />

pode ser comprendi<strong>da</strong> num marco<br />

dos processos sociais relacionados<br />

com a educação e a cultura, mas também<br />

passa a ser entendi<strong>da</strong> a partir de<br />

processos sociais relacionados com o<br />

econômico e o político. Isto tem implicado<br />

transformações na forma de<br />

pensar, projetar e executar os projetos<br />

relacionados com as redes ou sistemas<br />

de bibliotecas no país.<br />

Como evidência desses importantes<br />

processos, surgem no país o<br />

projeto de Biblored no Distrito Capital,<br />

o Plano Nacional de Leitura e<br />

Bibliotecas no país e a Red de Bibliotecas<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Medellín, refletindo<br />

o papel consciente que começam<br />

a ter os serviços bibliotecários públicos<br />

nos planos de desenvolvimento e<br />

na construção de uma socie<strong>da</strong>de mais<br />

equitativa e includente.<br />

A Biblored começou em 1998<br />

como um dos projetos especiais de investimentos<br />

<strong>da</strong> Prefeitura de Bogotá,<br />

que incluiu o desenvolvimento de uma<br />

rede de bibliotecas dentro de suas estratégias<br />

encaminha<strong>da</strong>s no sentido de<br />

conseguir melhores condições para os<br />

58<br />

indivíduos, as famílias e para a comuni<strong>da</strong>de<br />

em Bogotá, com ênfase nos<br />

mais necessitados.<br />

Além disso, a Biblored buscou<br />

atrair as crianças, os jovens , os adultos,<br />

os idosos para apropriarem-se do programa<br />

de biblioteca públicas. O projeto<br />

também tinha a expectativa de oferecer<br />

aos ci<strong>da</strong>dãos maior segurança, uma vez<br />

que as bibliotecas ofereciam espaços de<br />

interação e convivência social naquilo<br />

que se chegou a conhecer como “uma<br />

ci<strong>da</strong>de na escala humana”.<br />

A Bibliored é um projeto <strong>da</strong><br />

Prefeitura de Bogotá e <strong>da</strong> Secretaria de<br />

Educação do Distrito e foi concebido<br />

como um sistema de conhecimento integrado<br />

por quatro bibliotecas maiores,<br />

localiza<strong>da</strong>s em pontos estratégicos <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de (três delas em funcionamento<br />

e uma em contrução), seis bibliotecas<br />

locais e dez de bairro, to<strong>da</strong>s conecta<strong>da</strong>s<br />

entre si e distribuí<strong>da</strong>s de forma a <strong>da</strong>r<br />

uma ampla cobertura.<br />

Ca<strong>da</strong> biblioteca é por si só um<br />

importante centro de investigações e<br />

aprendizagem, assim como um espaço<br />

cultural e de encontro comunitário, no<br />

qual os habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de têm acesso<br />

livre, representando a outra dimensão<br />

do espaço público ao serviço de informação,<br />

a educação e a cultura. As<br />

coleções que a rede oferece alcançam,<br />

na atuali<strong>da</strong>de, mais de 420 mil volumes<br />

e atendem mais de 450 mil visitantes<br />

por mês. Igualmente, a rede integra o<br />

Sistema de Bibliotecas Públicas de Bogotá<br />

junto com a Biblioteca Luis Ángel<br />

Arango que depende do Banco de la<br />

República e a Rede de bibliotecas de<br />

Colsubsido que é uma Caixa de Com


pensação Familiar, oferecendo uma<br />

ampla gama de serviços e programas<br />

em diferentes setores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, assim<br />

como uma extensa coleção bibliográfica<br />

em diversas áreas. Igualmente, proporcionam<br />

acesso gratuito à Internet,<br />

favorecendo a relação <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des<br />

com as novas tecnologias.<br />

A Biblored surge como resultado<br />

de um diagnóstico que mostra uma<br />

Bogotá em situação profun<strong>da</strong>mente<br />

crítica frente a seus sistemas bibliotecários,<br />

que não chegam a cobrir as<br />

necessi<strong>da</strong>des básicas <strong>da</strong> população, ao<br />

redor de 7,5 milhões de habitantes.<br />

Noventa por cento <strong>da</strong>s coleções estavam<br />

concentra<strong>da</strong>s na Biblioteca Luis<br />

Ángel Arango e na Rede de Bibliotecas<br />

de Colsubsidio.<br />

Dentro desse panorama se pleiteia<br />

uma rede de bibliotecas distrital<br />

que objetiva o enriquecimento do capital<br />

cultural <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de( individual, coletivo<br />

e público) e o melhoramento <strong>da</strong><br />

quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong>, além <strong>da</strong> construção<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

Durante a primeira etapa do<br />

projeto se deu uma ampla difusão e<br />

um protagonismo às três megabibliotecas<br />

estabeleci<strong>da</strong>s pela administração<br />

Distrital, <strong>da</strong><strong>da</strong> a sua importância e relevância<br />

por seu papel fun<strong>da</strong>mental na<br />

inclusão <strong>da</strong>s bibliotecas públicas nos<br />

planos do desenvolvimento distrital,<br />

como projetos fun<strong>da</strong>mentais para o<br />

melhoramento <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de de vi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, seu impacto no desenvolvimento<br />

urbanístico de Bogotá, uma<br />

59


vez que esses projetos de alto nível<br />

arquitetônico geraram novos espaços<br />

e ambientes em setores antes deteriorados,<br />

originando novas dinâmicas<br />

sociais, econômicas e sociais em diferentes<br />

comuni<strong>da</strong>des onde se encontram;<br />

provocando a transformação<br />

do imaginário, não só nas ci<strong>da</strong>des,<br />

mas também em todo o país, sobre o<br />

conceito de biblioteca, <strong>da</strong>ndo-lhe um<br />

protagonismo no marco institucional<br />

e emblemático de ci<strong>da</strong>de. Ao oferecer<br />

espaços mais amplos e confortáveis,<br />

com a possibili<strong>da</strong>de de criar diferentes<br />

ambientes para diferentes tipo de<br />

público, as bibliotecas começaram a<br />

diversificar amplamente os usuários.<br />

Mas apesar de to<strong>da</strong>s as transformações<br />

que estas megabibliotecas<br />

geraram na ci<strong>da</strong>de era indiscutível o<br />

papel fun<strong>da</strong>mental que cumpriam os<br />

serviços bibliotecários de caráter local<br />

e de bairro, uma vez que muitas pessoas<br />

localiza<strong>da</strong>s neste pontos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

não podiam ter acesso às bibliotecas<br />

60<br />

maiores e era necessário projetar o<br />

crescimento <strong>da</strong> rede em todos os níveis<br />

de intervenção.<br />

No ano de 2007 a Biblored definiu<br />

sua “Declaração de Propósitos de<br />

2010” na qual foi estabelecido dentro<br />

de seus princípios orientadores que “a<br />

ci<strong>da</strong>de contará com uma rede articula<strong>da</strong><br />

que tenha presença em ca<strong>da</strong> uma<br />

<strong>da</strong>s locali<strong>da</strong>des, <strong>da</strong>ndo priori<strong>da</strong>de às<br />

zonas com maior vulnerabili<strong>da</strong>de social<br />

e econômica, sendo fun<strong>da</strong>mental<br />

para o desenvolvimento, contemplar os<br />

vários níveis de intervenção na vi<strong>da</strong> de<br />

Bogotá, possiblitando a preservação e<br />

a promoção <strong>da</strong> cultura de bairro, local<br />

e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e atendendo às características<br />

próprias de ca<strong>da</strong> uma delas, com os<br />

mesmos níveis de quali<strong>da</strong>de e eficiência<br />

na prestação de serviços<br />

Desta maneira, a partir de fevereiro<br />

de 2007, como resultado de uma vontade<br />

política <strong>da</strong> administração atual em que<br />

a Secretaria de Educação do Distrito<br />

gestou um projeto ante o Conselho


de Bogotá, conseguiu-se uma ampliação<br />

de orçamento para a administração<br />

direta destas bibliotecas por parte<br />

de Biblored, mediante a assinatura de<br />

convênios interinstitucionais com as<br />

diferentes enti<strong>da</strong>des.<br />

Este novo esquema permitiu<br />

definir uma estrutura de recurso humano<br />

para ca<strong>da</strong> biblioteca composto<br />

por um coordenador- bibliotecólogo,<br />

um promotor de leitura; permitiu replicar<br />

a escala do modelo de serviços<br />

e programas nas três frentes de ação<br />

<strong>da</strong> Red: serviços bibliotecários e de<br />

informação, promoção de leitura e escritura<br />

e fomento à cultura.<br />

A Bibliored funciona sob uma<br />

estrutura administrativa <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de<br />

Bogotá e de sua Secretaria de Educação.<br />

A ci<strong>da</strong>de designa um orçamento<br />

anual para sustentar o projeto de acordo<br />

com os requerimentos de funcionamento<br />

<strong>da</strong>s distintas bibliotecas.<br />

Na medi<strong>da</strong> em que o projeto<br />

cresce, a ca<strong>da</strong> ano a administração <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de concede um volume maior de<br />

dinheiro. No ano de 2007 tivemos cerca<br />

de 18 por cento acima <strong>da</strong> soma designa<strong>da</strong><br />

em 2006.<br />

Para a Administração Municipal<br />

a Biblored tem sido um dos programas<br />

de maior impacto na ci<strong>da</strong>de. A prova é<br />

que nos últimos três anos consecutivos,<br />

os ci<strong>da</strong>dãos posicionaram a Biblored<br />

no ranque dos primeiros postos, como<br />

enti<strong>da</strong>de com o melhor desempenho.<br />

As bibliotecas são, de longe, espaços<br />

especiais e privilegiados para a<br />

democratização <strong>da</strong> cultura, do conhecimento<br />

e <strong>da</strong> tecnologia. Fortalecem<br />

de maneira especial os Planos Setorais<br />

de Educação e Desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Silvia Pra<strong>da</strong> Torero é gerente <strong>da</strong> Rede Capital<br />

de Bibliotecas Públicas de Bogotá.<br />

61


AGENDA<br />

MiGração boliViaNa<br />

A história nem sempre tem um<br />

final infeliz. Ao menos na visão de<br />

dois documentaristas bolivianos, Leonardo<br />

de La Torre Ávila e Sergio Estra<strong>da</strong><br />

Lopez, que, em vez de gravar o<br />

triste destino de imigrantes bolivianos<br />

em regime de trabalho escravo, como<br />

ocorre, preferiram mostrar o sucesso<br />

fora de casa. Un día más, conta a vi<strong>da</strong><br />

de um imigrante natural do vale alto<br />

de Cochabamba, que mora nos Estados<br />

Unidos, onde conseguiu vencer<br />

os obstáculos. O projeto, apresentado<br />

no Pavilhão <strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de, espaço<br />

vídeo, é fruto de um trabalho investigativo<br />

chamado La Cheqancha<strong>da</strong>:<br />

Caminos y sen<strong>da</strong>s del desarrrollo em los municípios<br />

migrantes de Arbieto y Toco, em<br />

que Ávila e Yolan<strong>da</strong> Alfaro abor<strong>da</strong>m<br />

especialmente os imigrantes bolivianos<br />

nos Estados Unidos. Para Ávila o<br />

fenômeno migratório é uma tradição<br />

deixa<strong>da</strong> pelos povos andinos e os ci<strong>da</strong>dãos<br />

saem, mas voltam a seus locais<br />

de origem para rever e aju<strong>da</strong>r seus familiares.<br />

Eles optaram por um filme e<br />

não um livro por se tratar de um meio<br />

de linguagem mais abrangente. FOTOs:<br />

62<br />

SeMaNa CUltUral<br />

O <strong>Memorial</strong> recebeu em fins de<br />

junho a Semana Cultural <strong>da</strong> Colômbia,<br />

evento que encerrou o Festival<br />

dos Valores Colombianos, organizado<br />

pelo Consulado Geral <strong>da</strong> Colômbia<br />

em parceria com o Ministério <strong>da</strong>s Relações<br />

Exterior desse país. A programação<br />

foi extensa, envolvendo desde<br />

exposição de artes plásticas a degustação<br />

de café, considerado um dos<br />

mais saborosos do mundo. A mostra<br />

de pinturas do artista Kamel Ilián, que<br />

vive atualmente em São Paulo, ficou<br />

em cartaz no foyer do Auditório Simón<br />

Bolívar, onde ocorreu a abertura do<br />

evento com a apresentação de <strong>da</strong>nça<br />

do grupo Semilla Colombiana. Da<br />

programação também constou uma<br />

exposição de livros e artesanato do<br />

país, bem como exibição de vídeos sobre<br />

a cultura local.<br />

reCorde de PÚbliCo<br />

O <strong>Memorial</strong> registrou um número<br />

recorde de visitantes. Foram 161<br />

mil até maio contra os 204 mil contabilizados<br />

em todo o ano de 2004. Ano<br />

passado, passaram pelo <strong>Memorial</strong><br />

quase 800 mil pessoas, o que significa<br />

que os números vêm aumentando ano<br />

a ano. Um dos espaços mais apreciados<br />

por crianças é o Pavilhão <strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de<br />

com sua colori<strong>da</strong> coleção de<br />

peças que representam a arte popular<br />

de todos os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Mas a Biblioteca, as sessões de vídeo,<br />

as apresentações musicais e a galeria,<br />

entre tantas outras ativi<strong>da</strong>des também<br />

estão com visitações crescentes.<br />

divulgaçãO


AGENDA<br />

Corpos Estranhos reúne na Galeria<br />

Marta Traba três artistas internacionalmente<br />

conceitua<strong>da</strong>s cujas obras se<br />

reconhecem pelo forte tom de caráter<br />

psicológico. Laura Lima, do Brasil, Pilar<br />

Albarracín, <strong>da</strong> Espanha, e Regina José<br />

Galindo, <strong>da</strong> Guatemala, esta última premia<strong>da</strong><br />

na 51° edição <strong>da</strong> Bienal de Veneza,<br />

apresentam apelos comuns, entre<br />

eles o emprego de corpos para intermediar<br />

suas inquietações. Em Instância<br />

Dopa<strong>da</strong>, de Laura Lima, vê-se a vulnerabili<strong>da</strong>de<br />

do ser humano, na mulher<br />

que dorme em pleno espaço expositivo.<br />

O acervo do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> enriqueceu. Recebeu<br />

um traje típico feminino <strong>da</strong> cultura<br />

mexicana. O cônsul geral do México<br />

e presidente do Grupo Latino-Americano<br />

e do Caribe, Salvador Arriola entregou<br />

pessoalmente a Fernando Leça,<br />

presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção. A vestimen-<br />

eStraNHoS e MaCabroS<br />

aCerVo eNriQUeCido<br />

Em Enterramiento, Pilar Albarracín (na<br />

foto acima, Pata-negra <strong>da</strong> autora) cava<br />

sua própria cova, enterra-se nela e cobre<br />

até a cabeça jogando terra com as<br />

próprias mãos numa espécie de grito de<br />

alerta. Outra criação é Quien puede borrar<br />

lãs huellas?, de Regina Galindo, em vídeo,<br />

em que a artista imprime no chão pega<strong>da</strong>s<br />

de sangue simbolizando mortos em<br />

conflitos de seu país. Há outros trabalhos<br />

de ca<strong>da</strong> artista na mostra que teve<br />

apoio <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>d Estatal para Acción<br />

Cultural Exterior, <strong>da</strong> Espanha, e do Instituto<br />

Cervantes de São Paulo.<br />

ta que foi doa<strong>da</strong> pela ci<strong>da</strong>dã mexicana<br />

Sylvia de la Garza de Silva irá<br />

compor a coleção de arte popular do<br />

Pavilhão <strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de. Sylvia foi<br />

presidente do Grupo de Mexicanos<br />

em São Paulo (Mesp) e participou<br />

ativamente <strong>da</strong> Associação Empresarial<br />

Mexicana no Brasil.<br />

63<br />

AGENDA


CoNtoS de leoPoldo<br />

lUGoNeS<br />

O escritor argentino Leopoldo<br />

Lugones (1874-1938) foi um representante<br />

genuíno <strong>da</strong> passagem do século<br />

XIX para XX – período marcado por<br />

transformações sociais, científicas e<br />

históricas importantes no continente<br />

latino-americano. Seus contos retratam<br />

o conflito filosófico entre as pretensões<br />

cientificistas de oferecer uma explicação<br />

racional <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e as forças imprevisíveis<br />

e devastadoras do ocultismo. O<br />

estilo narrativo do autor, que conquistou<br />

a admiração de Jorge Luis Borges,<br />

se constrói a partir do equilíbrio muitas<br />

vezes tenso de referências antagônicas,<br />

alcançado com um senso de humor que<br />

se aproxima do delirante e do absurdo.<br />

Por essa razão, a proximi<strong>da</strong>de com o<br />

mundo sombrio de Franz Kafka – onde<br />

a aparente normali<strong>da</strong>de sempre mascara<br />

dimensões assustadores e insuspeitas.<br />

Nos textos de Contos fatais/ As<br />

forças estranhas, Lugones apresenta muitas<br />

situações em que a tentativa de explicação<br />

objetiva <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de é subverti<strong>da</strong> pela<br />

loucura, ou por fenômenos sobrenaturais.<br />

A razão, nesta perspectiva, não passa<br />

de um pálido espelho dos elementos<br />

subterrâneos que escapam ao nosso controle<br />

e nos dominam, como demonstrou<br />

Freud e sua teoria psicanalítica no início<br />

do século XX ao definir o inconsciente.<br />

No caso de Lugones, entretanto, não são<br />

apenas as maquinações do inconsciente<br />

que estão em cena, mas forças misteriosas,<br />

que alteram os rumos <strong>da</strong> história, ou<br />

mesmo dos desejos pessoais. O que pode<br />

se manifestar no relato de um milagre, no<br />

reconto de uma passagem mitológica ou<br />

bíblica, e mesmo na exasperante tentativa<br />

de encontrar a chave para um enigma<br />

64<br />

LIVROS<br />

musical. Está presente no universo ficcional<br />

de Lugones a mistura <strong>da</strong>quele inconsciente<br />

freudiano, e sua matriz racionalizante,<br />

com a teosofia e o esoterismo,<br />

que põem à prova todo entendimento<br />

objetivo.<br />

Há momentos em que o leitor<br />

supeitará que Lugones quer testar a racionali<strong>da</strong>de<br />

e uma suposta, ou imagina<strong>da</strong>,<br />

ordem <strong>da</strong>s coisas no mundo em<br />

que vivemos. O escritor se vale de uma<br />

narrativa que aparente um certo convencionalismo<br />

e elegância realista, conduzindo<br />

o leitor a saltos vertiginosos em<br />

cama<strong>da</strong>s ou instâncias do real que podem<br />

até parecer fantásticas, com seres<br />

fantasmagóricos, pesadelos e bizarrices.<br />

Algo também próximo <strong>da</strong> literatura gótica<br />

de Edgar Alan Poe, ou dos contos<br />

do uruguaio Horácio Quiroga.<br />

Ao definir as características de<br />

novela (pequena narrativa, entre o conto<br />

e o romance), num ensaio do livro<br />

Discusión, Borges diz que o processo<br />

causal de tais textos deve ser “o mágico,<br />

onde profetizam os pormenores, lúcido<br />

e limitado”. A definição é genérica e se<br />

aplica a um gênero marcante na literatura<br />

de língua hispânica, mas poderia<br />

muito bem ser aplica<strong>da</strong> ao tipo de ficção<br />

realiza<strong>da</strong> por Lugones, que soube manipular<br />

com inteligência e originali<strong>da</strong>de os<br />

limites entre a magia e a lucidez.<br />

Para Lugones, o poeta é uma espécie<br />

de “eleito”, com acesso privilegiado<br />

aos mistérios profundos.<br />

<strong>da</strong> tradição À VaNGUar<strong>da</strong><br />

Segundo o poeta Octavio Paz,<br />

“no México, a tradição <strong>da</strong> obra aberta,<br />

não no sentido estrito, mas no amplo<br />

e lasso, começa com Tabla<strong>da</strong>”. O livro<br />

Poemas (Edusp, 2008), do também mexi-<br />

FOTOs: divulgaçãO


cano José Juan Tabla<strong>da</strong> (1871-1945), foi<br />

organizado, apresentado e traduzido pelo<br />

poeta Ronald Polito. Trata-se de leitura<br />

essencial para o conhecimento <strong>da</strong> melhor<br />

literatura de língua espanhola, além<br />

de proporcionar um contato amplo e em<br />

profundi<strong>da</strong>de com as origens e os desdobramentos<br />

<strong>da</strong> poesia moderna latinoamericana,<br />

especialmente aquela de teor<br />

mais experimental.<br />

Tabla<strong>da</strong> foi historiador, cronista,<br />

tradutor, crítico de arte e literatura, teatrólogo,<br />

comerciante de vinhos, gourmet<br />

e polemista político – tendo se destacado<br />

como grande poeta. Foi o principal<br />

responsável pela introdução do haicai<br />

e dos poemas ideográficos na literatura<br />

feita na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> no início do<br />

século XX. Seus poemas misturam elementos<br />

<strong>da</strong> tradição milenar do Oriente<br />

com vigor inventivo dos movimentos<br />

de vanguar<strong>da</strong> que configuraram o ambiente<br />

<strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> política, tanto no<br />

continente como na Europa.<br />

O jogo intenso entre a brevi<strong>da</strong>de<br />

de imagens e a exploração conceitual<br />

se desdobra numa surpreendente figuração<br />

tipográfica, gerando poemas visuais<br />

inovadores, que subvertiam a tradição<br />

lírico-discursiva consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> no<br />

final do século XIX. Como poeta que<br />

participou ativamente dos movimentos<br />

literários de seu tempo, Tablado transita<br />

do simbolismo à vanguar<strong>da</strong>, como explica<br />

Ronald Polito na apresentação do<br />

livro, aproximando-se em larga medi<strong>da</strong><br />

de nossos modernistas e antecipando<br />

procedimentos que seriam reformulados<br />

por movimentos vanguardistas posteriores,<br />

como a poesia concreta.<br />

Um livro extraordinário como<br />

“Li-Po”, publicado em 1920, provocou<br />

grande polêmica nos meios intelectuais<br />

<strong>da</strong> época por seu radicalismo, por tra-<br />

zer elementos de construção imagética<br />

e exploração dos espaços <strong>da</strong> página, do<br />

arranjo <strong>da</strong>s palavras, com movimentos<br />

e representação de objetos por meio <strong>da</strong><br />

disposição dos versos. A ousadia de Tabla<strong>da</strong><br />

o projetou no cenário demolidor<br />

dos movimentos literários que sacudiram<br />

a tradição no início do século XX,<br />

como futurismo, ultraísmo, <strong>da</strong><strong>da</strong>ísmo,<br />

criacionismo e cubismo.<br />

PriMeira NarratiVa<br />

de beNedetti<br />

Publica<strong>da</strong> originalmente em<br />

1953, Quem de nós – edita<strong>da</strong> no Brasil pela<br />

Record, em 2007 – é a primeira novela<br />

escrita pelo escritor uruguaio Mario Benedetti<br />

(1920-2009). A narrativa abor<strong>da</strong><br />

o tema clássico do triângulo amoroso. O<br />

casal Miguel e Alicia vive um momento<br />

de desgaste na relação e acaba se separando.<br />

Alicia, por sua vez, encontra no<br />

escritor Lucas o estopim para sair do casamento<br />

e repensar a própria existência e<br />

seus sentimentos.<br />

O modo como Benedetti articula<br />

essa drama corriqueiro é muito delicado,<br />

poético, seguindo uma estrutura epistolar,<br />

que torna o leitor um participante<br />

quase íntimo <strong>da</strong>s reflexões e dos questionamentos<br />

<strong>da</strong>s personagens. Os capítulos<br />

em forma de cartas permitem que a<br />

história seja apresenta<strong>da</strong> sob várias perspectivas,<br />

como na vi<strong>da</strong> real, onde não há<br />

uma versão apenas para os fatos.<br />

A certa altura, o narrador afirma<br />

que os três estavam “organizados<br />

em uma espécie de burla recíproca, ca<strong>da</strong><br />

um pensando que os outros dois não<br />

se correspondiam e ele era a única peça<br />

adequa<strong>da</strong>”.<br />

Reynaldo Damazio é jornalista e escritor.<br />

65


66<br />

POESIA<br />

Morte<br />

FEDERICO GARCIA LORCA<br />

Que esforço!<br />

Que esforço do cavalo para ser cachorro!<br />

Que esforço do cachorro para ser andorinha!<br />

Que esforça <strong>da</strong> andorinha para ser abelha!<br />

Que esforça <strong>da</strong> abelha para ser cavalo!<br />

E o cavalo,<br />

Que flecha agu<strong>da</strong> exprime de uma rosa!,<br />

Que rosa gris levanta de seu beiço!<br />

E a rosa,<br />

Que rebanho de luzes e alaridos<br />

Ata no vivo açúcar de seu tronco!<br />

E o açúcar,<br />

Que punhaizinhos sonha na vigília!<br />

E os punhais diminutos,<br />

Que lua sem estábulos, que nus,<br />

Pele eterna e rubor, an<strong>da</strong>m buscando!<br />

E eu, pelos alpendres,<br />

Que Serafim de chamas busco e sou!<br />

Porém o arco de gesso,<br />

Que grande, que invisível, que diminuto,<br />

Sem esforço! Tradução de Augusto de Campos<br />

Poeta espanhol autor de obras como Romance Cigano, Poeta em<br />

Nova York, Seis Poemas Galegos e Cantares Populares.

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