Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

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12.05.2013 Views

mórbidas, da miséria mental e das mesquinharias e dos questionamentos, expostos por Urânia Munzanzu. A literatura poderá ser um lugar de indicação de critérios para se “[...] ter um sonho lindo [...]” e “[...] Firmar os passos na corda bamba da vida e ser forte.” (FONSECA, 2008, p. 14). 104 Assim, através de um eu poético, afirmado pelo eu autoral, torna-se possível expressar dilemas constituídos entre a mulher literária e a mulher estereotipada pela cultura androcêntrica. Tal configuração se estabelece ao se considerar que a arte literária, em muitos momentos, circunstanciada pela tradição patriarcal, “[...] incumbiu- se de reforçar uma suposta natureza feminina, pautada em domesticidades, fragilidades, submissão, sentimentalismos, emoções e sensibilidades exacerbadas e pouca racionalidade” (SILVA, 2010, p. 24). Os versos servem também para mostrar o próprio eu autoral ficcional, haja vista que, em matiz metalinguística, despontam poemas e contos de cinco participantes da pesquisa, em que o foco poético caracteriza-se por uma escritora. Em Meu poema, de Rita Santana, o sujeito poético feminino está grávida de um poema. Aparecem as façanhas que inventa de nove em nove meses para gestar e procriar, em segredo, seus versos. Incompreendida pelo marido louco, preocupado com a paternidade, entre festa e silêncio, ela continua com a sua gestação indesejada pelo marido, mas por ela celebrada no pós-parto. Só, após parir os versos, ela comemora o poema. Levei nove meses gerando um poema, E o meu marido louco em questões de paternidade. Nunca confesso o meu verso! Trepadeira sobe na parede da casa, E eu como a casca de barro entre a tinta e o tijolo. Gosto de comer terra quando acordo. Quando nasce um fiz temperada e chamei amigos, Usei algodão de chita. Ele sério, cismado, num canto, E eu sempre grávida De nove em nove, paria um poema E era festa lá em casa. Se contasse, inspiração ia embora, Levando ovário, útero e as trombetas. Eu fico é quieta, Servindo temperada com minha camisola de Musa. (SANTANA, 2005, p. 72) Com voz própria, ela traz o desafio da primeira pessoa como uma voz autoral emancipada, revertendo histórias de subordinação. Embora tenha um marido louco que reivindica questões de paternidade, ela reage sabiamente ao recalque de sua escrita pelo

marido, ficando “[...] quieta, servindo temperada como minha camisola de Musa.” (SANTANA, 2005, p. 72). 105 Construir uma produção literária com os traços dos poemas apresentados, neste capítulo, incontestavelmente, exige o movimento de jogos de significações já cristalizados de autoria, gênero, mulher negra, entre outros. Para tal exercício, é preciso compreendê-los, sem excluí-los ou colocá-los em oposição, mas sob rasura, isto é, descentralizá-los com o reconhecimento de que um significado é sempre flutuante e, de modo imperceptível, pela linguagem, apoia-se e se transforma em outros. Esse jogo consiste em promover atos dinâmicos e reversivos de significações atribuídas às palavras poéticas e ficcionais e às experiências autorais dos sujeitos da pesquisa, na medida em que seus textos, como encadeamento de rastros (DERRIDA, 1971; 2004), tecem um jogo de referencialidades, isto é, não se organiza a partir de uma suposta origem, de um significado transcendental, conforme a linguagem de Derrida, mas de múltiplas possibilidades de imputação de significados de mundos e histórias, memórias e imaginação manejados pelas autoras. As participantes do estudo arriscam se instituírem como escritoras, utilizando um jogo de relações que se concretiza no devir, ora tenso, ora dialogado e negociado, distante de apelos e posições naturalizantes ou vocacionais e de significações fixas. O jogo, assim sendo, transita do ser para o se tornar e o devir, ou seja, compreende a mobilização delas em migrar suas vozes, de silenciadas para escutadas. Para isso, forjam caminhos vários, como descritos anteriormente, para alcançar públicos leitores e provocar abalos em critérios e prática de eleição, controle e valoração da palavra literária, estabelecidos pelo cânone.

mórbi<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> miséria mental e <strong>da</strong>s mesquinharias e dos questionamentos, expostos por<br />

Urânia Munzanzu. A literatura poderá ser um lugar de indicação de critérios para se<br />

“[...] ter um sonho lindo [...]” e “[...] Firmar os passos na cor<strong>da</strong> bamba <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e ser<br />

forte.” (FONSECA, 2008, p. 14).<br />

104<br />

Assim, através de um eu poético, afirmado pelo eu autoral, torna-se possível<br />

expressar dilemas constituídos entre a mulher literária e a mulher estereotipa<strong>da</strong> pela<br />

cultura androcêntrica. Tal configuração se estabelece ao se considerar que a arte<br />

literária, em muitos momentos, circunstancia<strong>da</strong> pela tradição patriarcal, “[...] incumbiu-<br />

se de reforçar uma suposta natureza feminina, pauta<strong>da</strong> em domestici<strong>da</strong>des, fragili<strong>da</strong>des,<br />

submissão, sentimentalismos, emoções e sensibili<strong>da</strong>des exacerba<strong>da</strong>s e pouca<br />

racionali<strong>da</strong>de” (SILVA, 2010, p. 24).<br />

Os versos servem também para mostrar o próprio eu autoral ficcional, haja<br />

vista que, em matiz metalinguística, despontam poemas e contos de cinco participantes<br />

<strong>da</strong> pesquisa, em que o foco poético caracteriza-se por uma escritora. Em Meu poema, de<br />

<strong>Rita</strong> Santana, o sujeito poético feminino está grávi<strong>da</strong> de um poema. Aparecem as<br />

façanhas que inventa de nove em nove meses para gestar e procriar, em segredo, seus<br />

versos. Incompreendi<strong>da</strong> pelo marido louco, preocupado com a paterni<strong>da</strong>de, entre festa e<br />

silêncio, ela continua com a sua gestação indeseja<strong>da</strong> pelo marido, mas por ela celebra<strong>da</strong><br />

no pós-parto. Só, após parir os versos, ela comemora o poema.<br />

Levei nove meses gerando um poema,<br />

E o meu marido louco em questões de paterni<strong>da</strong>de.<br />

Nunca confesso o meu verso!<br />

Trepadeira sobe na parede <strong>da</strong> casa,<br />

E eu como a casca de barro entre a tinta e o tijolo.<br />

Gosto de comer terra quando acordo.<br />

Quando nasce um fiz tempera<strong>da</strong> e chamei amigos,<br />

Usei algodão de chita.<br />

Ele sério, cismado, num canto,<br />

E eu sempre grávi<strong>da</strong><br />

De nove em nove, paria um poema<br />

E era festa lá em casa.<br />

Se contasse, inspiração ia embora,<br />

Levando ovário, útero e as trombetas.<br />

Eu fico é quieta,<br />

Servindo tempera<strong>da</strong> com minha camisola de Musa.<br />

(SANTANA, 2005, p. 72)<br />

Com voz própria, ela traz o desafio <strong>da</strong> primeira pessoa como uma voz autoral<br />

emancipa<strong>da</strong>, revertendo histórias de subordinação. Embora tenha um marido louco que<br />

reivindica questões de paterni<strong>da</strong>de, ela reage sabiamente ao recalque de sua escrita pelo

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