Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

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12.05.2013 Views

chão) que subvertem o perfil de um herói ocidental. É um deus anti-herói: defeituoso e súdito de uma divindade feminina. Aleduma é um herói de força incomum, incansável, guerreiro, fiel ao seu povo, possuidor de um poder sobrenatural e semelhante aos deuses nagô africanos. É um homem-deus e deus-homem, o qual vive como homem e como deus; ele conhece e se relaciona com os seus ancestrais, por isso digno de confiança, capaz de ajudar os enfraquecidos. 100 Em certo continente da Terra, há milênio atrás, proveniente do espaço longínquo, surgiu um negro de aparência divina, com a missão de iniciar a proliferação de uma raça que, futuramente, viria se tornar, na história desse continente, um componente de relevante importância. Era Aleduma, um deus negro, de inteligência superior, vindo do planeta Ignum, governado pela deusa Salópia. Seu porte altivo, pele reluzente, ligeiramente corcunda, com os pés voltados para trás, barba trançada, caída até o chão, dava-lhe um aspecto singular, Veio para a escolha do local onde se desenvolveria a raça negra (FRANÇA, 1985, p. 10). A narrativa tem sua marca espaço-temporal no passado, mas a trama se desenvolve no presente, no aqui e agora. Isso configura a temporalidade inacabada do romance e a sua aproximação da realidade, caracterizada por Bakhtin (1993, p. 401). Nessa perspectiva, o leitor torna-se contemporâneo simultaneamente ao narrador e à narrativa. Narrativas de homens, mulheres e deuses (as), como essa novela, retratam reveses e alegrias da vida, por isso os mitos são relatos sobre seres humanos e deuses. Os povos, em todos os tempos, tiveram necessidade de que seus deuses ou heróis fossem mais fortes, e poderosos, mais felizes, mais próximos do povo e seus aliados no combate aos inimigos. A mulher de Aleduma é, entretanto, uma narrativa em que atos heroicos, ordinários e hodiernos se sobressaem igualmente. Em Ignum, um país imaginário, o povo vive uma perversa escravidão. A narrativa é construída a partir dela e das lutas em prol da libertação e de elaboração de um refúgio (a ilha de Aleduma, a ilha maravilhosa de Coinja). Toda a história se desenvolve a partir do universo africano-brasileiro mítico e cultural: os nomes, as experiências artístico-culturais, a natureza, as relações entre os seres humanos entre si e com a natureza, o ambiente, costumes, religiosidade etc. O presidente do afoxé falou, com voz alta: - Que esta febre apareça sempre em cada um de nós – e com a voz embaraçada de emoção, gritou: - Oxum! Oxum! Banhe a terra com suas águas abençoadas e todos os nossos cânticos traduzam nossas homenagens

101 ao planeta Ignum. Cantem! Arranquem de suas almas os cânticos e brindemos a Salópia, Deusa de Ignum. E o afoxé cantou: As águas de Oxalá Vão lavar minha cabeça Os filhos da África Já vêm me buscar. Eu vou, eu vou, na África dançar Pra meu pai Oxalá! (FRANÇA, 1985, p. 94). Evidentemente que não há na narrativa uma busca, através do mito, de origem ou de reprodução cristalizada e imutável da tradição africano-brasileira. Ao contrário, é uma re-elaboração de múltiplas possibilidades de se (re) inventar e de se agenciar novos sentidos e respostas às demandas da sua presença e participação na sociedade brasileira. É um exercício dinâmico e descontínuo de contar, (des) contar e interpretar as interpretações, as ocorrências ordinárias e extraordinárias. Ao reconhecer o discurso mítico, ainda que idealizado, nessa novela, deduzo que os mitos acompanham a dinamicidade da existência humana e dela se retroalimentam. Por eles, grupos humanos atribuem sentidos aos acontecimentos, aos fenômenos, às relações etc., constituindo-se em invenções humanas para narrar, explicar e mostrar as ações inusitadas e ordinárias de ancestrais e herois. Com eles, se podem construir vários sentidos para a existência, re-elaborar respostas para os eventos e entender as cenas e as vicissitudes que compõem o cotidiano inventado. Assim, os mitos são indispensáveis tanto para os indivíduos quanto para as sociedades, uma vez que eles são como a memória coletiva, que assegura a preservação e, simultaneamente, a modificação de comportamentos humanos, desempenhando funções socioculturais pertinentes para a vida em coletividade. Nisso consiste a relevância da novela A mulher de Aleduma, dentre outras dessa autora, já que é uma ficção em que o narrador inventa outra história de africanos e negros, àa medida em que eles reconstroem o Brasil, pela linguagem literária, imbuídos de africanidades, mitologias africanas, marcas da escravidão, mas também daquelas marcas deixadas pelas resistências e insurgências negras. Aline França se aproxima de Lita Passos e Fátima Trinchão pela identidade geracional, mas, com essa última, a relação se estreita mais, no que se refere à temática abordada em suas narrativas: universos míticos afrobrasileiros. Na produção literária de ambas, nota-se que esses contínuos civilizatórios aparecem para que sejam reinventadas epopeias e recontados os pequenos feitos de povos africanos e diaspóricos.

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ao planeta Ignum. Cantem! Arranquem de suas almas os cânticos e<br />

brindemos a Salópia, Deusa de Ignum.<br />

E o afoxé cantou:<br />

As águas de Oxalá<br />

Vão lavar minha cabeça<br />

Os filhos <strong>da</strong> África<br />

Já vêm me buscar.<br />

Eu vou, eu vou, na África <strong>da</strong>nçar<br />

Pra meu pai Oxalá! (FRANÇA, 1985, p. 94).<br />

Evidentemente que não há na narrativa uma busca, através do mito, de origem<br />

ou de reprodução cristaliza<strong>da</strong> e imutável <strong>da</strong> tradição africano-brasileira. Ao contrário, é<br />

uma re-elaboração de múltiplas possibili<strong>da</strong>des de se (re) inventar e de se agenciar novos<br />

sentidos e respostas às deman<strong>da</strong>s <strong>da</strong> sua presença e participação na socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

É um exercício dinâmico e descontínuo de contar, (des) contar e interpretar as<br />

interpretações, as ocorrências ordinárias e extraordinárias.<br />

Ao reconhecer o discurso mítico, ain<strong>da</strong> que idealizado, nessa novela, deduzo que<br />

os mitos acompanham a dinamici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> existência humana e dela se retroalimentam.<br />

Por eles, grupos humanos atribuem sentidos aos acontecimentos, aos fenômenos, às<br />

relações etc., constituindo-se em invenções humanas para narrar, explicar e mostrar as<br />

ações inusita<strong>da</strong>s e ordinárias de ancestrais e herois. Com eles, se podem construir vários<br />

sentidos para a existência, re-elaborar respostas para os eventos e entender as cenas e as<br />

vicissitudes que compõem o cotidiano inventado. Assim, os mitos são indispensáveis<br />

tanto para os indivíduos quanto para as socie<strong>da</strong>des, uma vez que eles são como a<br />

memória coletiva, que assegura a preservação e, simultaneamente, a modificação de<br />

comportamentos humanos, desempenhando funções socioculturais pertinentes para a<br />

vi<strong>da</strong> em coletivi<strong>da</strong>de.<br />

Nisso consiste a relevância <strong>da</strong> novela A mulher de Aleduma, dentre outras dessa<br />

autora, já que é uma ficção em que o narrador inventa outra história de africanos e<br />

negros, àa medi<strong>da</strong> em que eles reconstroem o Brasil, pela linguagem literária, imbuídos<br />

de africani<strong>da</strong>des, mitologias africanas, marcas <strong>da</strong> escravidão, mas também <strong>da</strong>quelas<br />

marcas deixa<strong>da</strong>s pelas resistências e insurgências negras.<br />

Aline França se aproxima de Lita Passos e Fátima Trinchão pela identi<strong>da</strong>de<br />

geracional, mas, com essa última, a relação se estreita mais, no que se refere à temática<br />

abor<strong>da</strong><strong>da</strong> em suas narrativas: universos míticos afrobrasileiros. Na produção literária de<br />

ambas, nota-se que esses contínuos civilizatórios aparecem para que sejam reinventa<strong>da</strong>s<br />

epopeias e recontados os pequenos feitos de povos africanos e diaspóricos.

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