Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

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80 Um pedaço de mim é harmonia, swing, arranjo. O outro é letra, poesia. Parte de mim é uma boca úmida, que toca com delicadeza o que há de mais íntimo. A outra parte tem vergonha até de beijar em público! Parte de mim é o Rio de Janeiro e suas possibilidades, a outra metade é o Rio Una encontrando o mar da Gambôa... Parte de mim é uma bateria da Mangueira, avisando que vai entrar na passarela, a outra parte é o Mundo Negro cantando a liberdade de Angola nas ruas do Curuzu. Eu sou a raiz mais profunda de Iyá Nassô Oká, Bamboxé e Iyá Biticu, mas sou também os Jeje Mahi e seu sangue Malê. Eu sou metade e sou o tudo! Sou Kinzu e Fomotinha! (MUNZANZU, 2008) Desfilam, nos versos, nomes de orisàs como Nana Agotimé 20 , mães ancestrais como Iyá Nassô Oká 21 , Iya Biticu, líder religioso africano como Bambosè, participante da Revolta dos Malês, Mahi (Luiza Mahin) 22 , a qual como Yaa Asantewaa e rainha Ginga, destaca-se na história dos/as negros/as no Brasil. A mulher preta se mostra ecleticamente com traços diferenciais e identitários de divindades, linguagens, mundos, mães ancestrais e lideranças que se entrecruzam com múltiplas suas metades e partes – suas práticas socioculturais – e a constituem rainha e mulher preta de cheiro forte. Decerto, nesse autorretrato, em que prevalecem imagens mulheres e divindades africano-brasileiras, a voz poética indica seus referentes em processos de autoformação, apontando para leitores/as seu projeto identitário de mulher preta, que pretende ser forte, guerreira, insurgente, sintonizada com seus/suas antepassados/as africano- brasileiros/as. Além disso, essas figuras também possibilitam ao público leitor (re) pensar suas afrodescendências mediante os múltiplos traços culturais que lhe rodeiam e as oportunidades de construir e tensionar identidades individuais e coletivas. 20 Nanã, divindade africana de origem Jeje, da religião da Dassa Zumê e Savê, no Daomé, hoje conhecida com República de Benin. É considerada a Iyabá (orisá feminina) mais velha e foi integrada pelos yorubanos aos rituais oriundos das nações Ketu, tal a sua importância para o culto às divindades e ancestrais africanos/as. Pelos mitos de Nanã é a possível entender por que a morte é necessária para se ter vida e a premissa de que para viver em paz é preciso agradar a morte. 21 Segundo a tradição oral, o primeiro candomblé baiano, Ilê Nassô Oká, Ketu, de origem nagô, foi fundado por três mulheres libertas filiadas à Irmandade do Bom Jesus dos Martírios, cujos nomes rituais são Iyá Adetá, Iyá Akalá e Iyá Nassô, em um terreno situado nos fundos da Igreja de Nossa Senhora da Piedade da Barroquinha, em Salvador-BA, na antiga ladeira do Berquó, hoje Visconde de Itaparica. Essas três mulheres, influenciadas pelo estatuto das mulheres responsáveis pelo culto de Sangó, no palácio de Oyó, na África, foram responsáveis por recriar em terras brasileiras uma organização religiosa de cunho político, que reuniu diversas etnias. 22 Luísa Mahin foi uma africana escravizada, mãe do escritor brasileiro Luis Gama. Pertenceu à civilização Mahin, da nação nagô, praticante da religião islâmica, conhecida no Brasil como Malês. Luísa Mahin envolveu-se com a articulação de revoltas e levantes do escravizados na Província Portuguesa da Bahia nas primeiras décadas do século XIX.

A voz de mulher preta não tem identidade única e homogênea, haja vista que é formada por metades e parte dela “[...] é fêmea de curvas bem definidas e cheiro forte de mulher preta, a outra parte é um preto cismado, de pouca conversa e muito ciúme [...]”. Entre a voz feminina preta e entidades espirituais afrobrasileiras não existe distanciamento, pois metade dela é “[...] Nana Agotimé e seus caprichos de rainha, a outra metade é um escravo aguadeiro [...]” (MUNZANZU, 2008). Ser rainha e escrava parece uma oposição inimaginável, mas como ela se apresenta construída por identidades fragmentadas, é possível imaginá-la por diversas metades, inclusive por aquelas aparentemente desconexas. O título Encontro insinua a interação de suas diversidades, que abarcam partes pequenas e mínimas como o Rio Una ou [...] um rio tortuoso, arriscado, que corta a mata com quedas violentas [...]” (MUNZANZU, 2008) e outras tantas imensuráveis em suas dimensões como uma Baía, o Mar da Gambôa e a cidade do Rio de Janeiro. Ser várias em uma, mulher preta, contudo, não a afasta de afrodescendências, pois ela também é “[...] bateria da Mangueira, avisando que vai entrar na passarela, a outra parte é o Mundo Negro cantando a liberdade de Angola nas ruas do Curuzu” (MUNZANZU, 2008). Ser parte não implica desenhá-la com traços de incompletudes, haja vista que ela é o tudo imbricado por ações, devaneios certos, sonhos possíveis, cálculos malucos e estratégias sem simétricas e com “[...] os sentimentos mais nobres guardados bem lá no fundo, para poucos, ou melhor, para poucas!”(MUNZANZU, 2008). Tal multiplicidade lhe permite, sem escrúpulos, retificar a quem indubitavelmente se destinam seus sentimentos: a poucas!. Desse modo, a mulher preta, embora se constitua de feições masculinas e femininas, sua afetividade se restringe a poucas. Formada por movimentos e calmarias, a voz preta é tão dinâmica quanto o Barijó, entidade africano-brasileira, caracterizada pelo poeta Lepê Correia, ENU BARIJÓ* Oh! Primogênito do Universo Oh! Senhor dos Caminhos Boca coletiva Eco de todos os tons. Nota de todas as pautas Guardião de todas as portas Movimento de todo o Universo Pés de todas as rasteiras Pernas de todos os andares. Conduz teu povo 81

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Um pe<strong>da</strong>ço de mim é harmonia, swing, arranjo.<br />

O outro é letra, poesia.<br />

Parte de mim é uma boca úmi<strong>da</strong>, que toca com delicadeza o que há de mais<br />

íntimo.<br />

A outra parte tem vergonha até de beijar em público!<br />

Parte de mim é o Rio de Janeiro e suas possibili<strong>da</strong>des,<br />

a outra metade é o Rio Una encontrando o mar <strong>da</strong> Gambôa...<br />

Parte de mim é uma bateria <strong>da</strong> Mangueira, avisando que vai entrar na<br />

passarela,<br />

a outra parte é o Mundo Negro cantando a liber<strong>da</strong>de de Angola nas ruas do<br />

Curuzu.<br />

Eu sou a raiz mais profun<strong>da</strong> de Iyá Nassô Oká, Bamboxé e Iyá Biticu, mas<br />

sou também os Jeje Mahi e seu sangue Malê.<br />

Eu sou metade e sou o tudo!<br />

Sou Kinzu e Fomotinha! (MUNZANZU, 2008)<br />

Desfilam, nos versos, nomes de orisàs como Nana Agotimé 20 , mães ancestrais<br />

como Iyá Nassô Oká 21 , Iya Biticu, líder religioso africano como Bambosè, participante<br />

<strong>da</strong> Revolta dos Malês, Mahi (Luiza Mahin) 22 , a qual como Yaa Asantewaa e rainha<br />

Ginga, destaca-se na história dos/as negros/as no Brasil. A mulher preta se mostra<br />

ecleticamente com traços diferenciais e identitários de divin<strong>da</strong>des, linguagens, mundos,<br />

mães ancestrais e lideranças que se entrecruzam com múltiplas suas metades e partes –<br />

suas práticas socioculturais – e a constituem rainha e mulher preta de cheiro forte.<br />

Decerto, nesse autorretrato, em que prevalecem imagens mulheres e divin<strong>da</strong>des<br />

africano-brasileiras, a voz poética indica seus referentes em processos de autoformação,<br />

apontando para leitores/as seu projeto identitário de mulher preta, que pretende ser<br />

forte, guerreira, insurgente, sintoniza<strong>da</strong> com seus/suas antepassados/as africano-<br />

brasileiros/as. Além disso, essas figuras também possibilitam ao público leitor (re)<br />

pensar suas afrodescendências mediante os múltiplos traços culturais que lhe rodeiam e<br />

as oportuni<strong>da</strong>des de construir e tensionar identi<strong>da</strong>des individuais e coletivas.<br />

20 Nanã, divin<strong>da</strong>de africana de origem Jeje, <strong>da</strong> religião <strong>da</strong> Dassa Zumê e Savê, no Daomé, hoje conheci<strong>da</strong><br />

com República de Benin. É considera<strong>da</strong> a Iyabá (orisá feminina) mais velha e foi integra<strong>da</strong> pelos<br />

yorubanos aos rituais oriundos <strong>da</strong>s nações Ketu, tal a sua importância para o culto às divin<strong>da</strong>des e<br />

ancestrais africanos/as. Pelos mitos de Nanã é a possível entender por que a morte é necessária para se ter<br />

vi<strong>da</strong> e a premissa de que para viver em paz é preciso agra<strong>da</strong>r a morte.<br />

21 Segundo a tradição oral, o primeiro candomblé baiano, Ilê Nassô Oká, Ketu, de origem nagô, foi<br />

fun<strong>da</strong>do por três mulheres libertas filia<strong>da</strong>s à Irman<strong>da</strong>de do Bom Jesus dos Martírios, cujos nomes rituais<br />

são Iyá Adetá, Iyá Akalá e Iyá Nassô, em um terreno situado nos fundos <strong>da</strong> Igreja de Nossa Senhora <strong>da</strong><br />

Pie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Barroquinha, em Salvador-BA, na antiga ladeira do Berquó, hoje Visconde de Itaparica. Essas<br />

três mulheres, influencia<strong>da</strong>s pelo estatuto <strong>da</strong>s mulheres responsáveis pelo culto de Sangó, no palácio de<br />

Oyó, na África, foram responsáveis por recriar em terras brasileiras uma organização religiosa de cunho<br />

político, que reuniu diversas etnias.<br />

22 Luísa Mahin foi uma africana escraviza<strong>da</strong>, mãe do escritor brasileiro Luis Gama. Pertenceu à<br />

civilização Mahin, <strong>da</strong> nação nagô, praticante <strong>da</strong> religião islâmica, conheci<strong>da</strong> no Brasil como Malês. Luísa<br />

Mahin envolveu-se com a articulação de revoltas e levantes do escravizados na Província Portuguesa <strong>da</strong><br />

Bahia nas primeiras déca<strong>da</strong>s do século XIX.

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