Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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ausência de signos e indumentárias peculiares a um rei não se caracterizam apenas pela<br />
sua capaci<strong>da</strong>de de subverter ou até ridicularizar figurações convencionais de rei e de um<br />
deus. Ao contrário, o que se destaca no <strong>texto</strong> artístico é a possibili<strong>da</strong>de de valorização<br />
de outro repertório cultural de uma forma carnavaliza<strong>da</strong>. A comici<strong>da</strong>de no poema ain<strong>da</strong><br />
sugere admitir, de modo explícito, a solidão de mulheres negras que vivem tão sozinhas<br />
no batalhar e uma crítica lúci<strong>da</strong> a homens que estão destituídos de ar de reinados, pois<br />
não trazem, ao lado, rainhas.<br />
Os versos abarcam uma crítica, que parece ingênua, mas tem um caráter político,<br />
social, de gênero e étnico-racial, porque deles sobressai uma rejeição <strong>da</strong> voz feminina<br />
negra de possíveis preferências de homens negros do seu tempo por mulheres brancas,<br />
considera<strong>da</strong>s fraquinhas, indicando uma recusa do presente construído e vivido,<br />
conforme afirma Souza: “[...] Estabelecendo uma agen<strong>da</strong> temática que aten<strong>da</strong> às suas<br />
deman<strong>da</strong>s e jogue com o doce e útil, a faca e flor, o riso e a raiva, a alegria e a dor, a<br />
memória e o presente, como fazem to<strong>da</strong>s as expressões artísticas [...]”, (destaque <strong>da</strong><br />
autora), (SOUZA, 2005, p. 72).<br />
O riso é um modo de indicar outras figurações de deus e de rei, para além<br />
<strong>da</strong>quelas européias, tornando-se uma marca de sua ironia militante (FRYE, 1973), ou<br />
seja, o riso constitui-se em um elemento sinalizador do compromisso <strong>da</strong> voz do poema<br />
com a afirmação de africani<strong>da</strong>des. A rejeição ao estabelecido é, em um dinamismo de<br />
construção de identi<strong>da</strong>des, uma estratégia de exclusão do deus e do rei que a voz poética<br />
não deseja encontrar. É nessa dimensão que O rei sem coroa pode dialogar com<br />
Escravocratas, de Cruz e Souza, pois em ambos o riso está revestido não de consenso<br />
social, mas de ironia e de dissenso, inscrevendo-se como uma negação do já legitimado.<br />
Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio<br />
Manhosos, agachados -- bem como um crocodilo,<br />
Viveis sensualmente à luz dum privilégio<br />
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.<br />
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas<br />
Ardentes do olhar -- formando uma vergasta<br />
Dos raios mil do sol, <strong>da</strong>s iras dos poetas,<br />
E vibro-vos a espinha -- enquanto o grande basta<br />
O basta gigantesco, imenso, extraordinário --<br />
Da branca consciência -- o rútilo sacrário<br />
No tímpano do ouvido -- au<strong>da</strong>z me não soar.<br />
Eu quero em rude verso altivo a<strong>da</strong>mastórico,<br />
Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,<br />
Castrar-vos como um touro -- ouvindo-vos urrar! (SOUZA, 1995)<br />
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