Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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iconográfica sobre feições femininas como corpos sem mente, conforme apontado por bell hooks (1995), ou seja, desqualificadas e tendentes a uma libido exacerbada. Esses estereótipos reforçam a naturalização de papéis sociais que lhes são conferidos. O corpo de mulheres negras é exaltado na tradição literária brasileira como uma presença feminina altamente dotada de sexo que se justapõe às representações sociais e literárias brasileiras, ao descrever as imagens de mulheres afro-americanas que perpassam tais relações. Assim, para as escritoras negras baianas, há uma função emergente, à qual poderá se associar outra: criação de uma escrita com personagens negras longe desses predicados e de experiências de sujeição e próximas de papéis sociais e laços culturais envolvidos por protagonismos. Em Parcimônia, Rita Santana utiliza-se de palavras obscenas para demonstrar transgressões e liberações da sexualidade feminina. Parcimônia, Prometo ter diante dos ossos escassos Que arrebentam menos tecidos. Sobriedades e poucos goivos hei de dar, Caso venha o gozo, e o espirro dele acordar ímpetos velhos. Armazeno gerúndios em tomates vermelhos. Um dia, desisto de ser sóbria E viro fera doida a comer carnes e peles estragadas ao sol. Um dia, deixo de ser quieta e faço um escândalo de amor. Temperança, Para cativar teu gosto amoroso e calmo, A fibra da minha pele é áspera e minhas bocas são apertadas, E bem abertas [...]. Quando amo! Amo um homem que toca o gemido que dormia tanto, Entorta a minha cara, e me faz beata, santa, Calcutá. Coito é auscultar meu coração, Mas prometo não latir nunca. Eu, cadela dele, afeita aos intelectos prazeres Da carne. Eu, puta assanhada dele, e senhora das palavras. Eu mulata de bunda e versos, negra de protestos políticos, Avessa ao vulgar dos palavrórios vulgares, Ordeno olhares para os meus versos, E reconhecimento. Deles faço proezas de fêmea certa e obstinada. Sóbria, calculo silêncios, truísmos, Sussurros cágados. Porque prometo cerimônias solenes de existência. Porque se meu afeto é afetado, eu finjo-me de santa E rezo terços, acendo velas, calo, espio. Aceito, compadeço-se, apiedo-me, lambo-me. E oferto-me apascentada ao deus do meu desejo, De joelhos, tácita. Arrebanhada nas cercas do cio. (SANTANA, 2006, p. 87-88) 58
A voz poética do poema, ao se apresentar como uma puta assanhada; mulata de bunda e versos, negra de protestos políticos, de modo algum quer reforçar estereótipos tais quais os tensionados por bell hooks e por Rita Santana em suas declarações. Ao contrário, quer salientar a sua liberdade para buscar seus desejos, afetos e amores sem preocupações com aquilo que lhe designam. As imagens que lhe conferem pouco importam: puta ou santa, ela quer sim, decidida e livremente, realizar seus desejos, viver o prazer e ser senhora das palavras. Nos versos aparecem fios de suas identidades de gênero e étnico-raciais entrelaçados de exercícios de poder, demonstrando resistências relacionadas com aquilo que Foucault chamou de “[...] insurreição de saberes dominados, que são os conteúdos históricos e os saberes ingênuos [...]” (FOUCAULT, 1982, p. 170). Para ele, “[...] os saberes dominados são estes blocos de saber histórico que estavam presentes e mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer reaparecer, evidentemente através do instrumento de erudição [...]” (FOUCAULT, 1982, p. 170). Decerto, os versos de Parcimônia se insurgem contra imagens presentes na historiografia literária quando a figura feminina negra aparece descrita com traços subservientes e de objeto sexual ou apenas pelos seus aspectos físicos e pelos serviços domésticos. Para tanto, a voz poética é caracterizada por palavras que sugerem devassidão e voluptuosidade para afirmar-se como negra e senhora das palavras, dona de sua escrita, e de seu prazer. De acordo com Foucault, “[...] trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores [...]” (FOUCAULT, 1982, p. 171). Por esse poema e pelas declarações de Rita Santana, ainda que de forma implícita, voltam, mais uma vez, à tona as indagações: Que é e qual a importância da literatura? Apesar de ela não considerar o fazer literário como um exercício de militância, em Parcimônia, existem significantes que podem desconstruir estigmas 13 e 13 Estigma aqui é compreendido, de acordo com E. Goffman (1982), não como um atributo pessoal, mas como uma forma de designação social e análise da sua relação com a identidade social de cada um, por isso é motivo de exclusão social, olhares desconfiados e fala às escondidas. Esse estudioso faz uma apologia aos indivíduos estigmatizados, chamados por ele de desacreditados, pois sofrem preconceitos por parte da sociedade na qual vivem. Segundo ele, há três tipos de estigmas: por deformidades físicas; por moralidades e por linhagem de raça, nação e religião. 59
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A voz poética do poema, ao se apresentar como uma puta assanha<strong>da</strong>; mulata de<br />
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tais quais os tensionados por bell hooks e por <strong>Rita</strong> Santana em suas declarações. Ao<br />
contrário, quer salientar a sua liber<strong>da</strong>de para buscar seus desejos, afetos e amores sem<br />
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Nos versos aparecem fios de suas identi<strong>da</strong>des de gênero e étnico-raciais<br />
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saberes dominados são estes blocos de saber histórico que estavam presentes e<br />
mascarados no interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer<br />
reaparecer, evidentemente através do instrumento de erudição [...]” (FOUCAULT,<br />
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Decerto, os versos de Parcimônia se insurgem contra imagens presentes na<br />
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subservientes e de objeto sexual ou apenas pelos seus aspectos físicos e pelos serviços<br />
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saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas<br />
de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores<br />
[...]” (FOUCAULT, 1982, p. 171).<br />
Por esse poema e pelas declarações de <strong>Rita</strong> Santana, ain<strong>da</strong> que de forma<br />
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como uma forma de designação social e análise <strong>da</strong> sua relação com a identi<strong>da</strong>de social de ca<strong>da</strong> um, por<br />
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