Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ... Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

repositorio.ufba.br
from repositorio.ufba.br More from this publisher
12.05.2013 Views

230 procurou proteger-se e tomar pé da situação [...] chamou por Ogum, "agora, somos nós dois, o Senhor e eu", arriou rapidamente a sacola no chão, e quando voltou já aplicou um rabo de arraia no primeiro que avançou querendo lhe dar uns tapas, derrubou o homem; um tesoura voadora no segundo, uma meia-lua no terceiro; um a um se levantou, um a um, ele derrubou; depois, os três se levantaram e avançaram nele de uma só vez, e de uma só vez ele derrubou os três [...] graças a Deus, chegou em casa, são e salvo, ele dizia, que quem lutou não foi ele, foi Ogum, Ogum que estava em todas as suas lutas e Ogum lutou por ele. (TRINCHÃO, 2010, p. 2-3) As memórias de Arlinda se realizam no discurso porque elas se formam por lembranças e por esquecimentos daquilo que ela não quer lembrar, haja vista que a memória pressupõe processos seletivos, organizativos e de negociação. No discurso e por meio dele, decisivamente, ela forma e compartilha suas recordações e, simultaneamente, constrói suas memórias. Como lembranças, advindas dos atos de esquecer e lembrar, as memórias de Arlinda se configuram como formações discursivas de si/outro, desenhando-se como elementos de identidade individual e coletiva, posto que pelas lembranças estabelecem-se e sustentam-se as relações sociais e afetivas de Arlinda. Elas traçam instantes significativos para ela que se tornaram memórias semelhantes àquelas guardadas pelo sujeito poético criado por Manuela Margarido lembra-se de sua mãe: “[...] Mãe, tu pegavas charroco/ nas águas das ribeiras/caminho da praia./ Teus cabelos eram lembas-lembas,/ agora distantes e saudosas,/ mas teu rosto escuro desce sobre mim [...]”. (MARGARIDO, 1966). Além de Ogum, transitam divindades africanas como Iansã, Òsum, Sangò, Osalà e Osalufã como protetores/as de Arlinda, de seus pais e de seus familiares. [...] mainha era uma mulher muito doce e carinhosa, uma filha de Oxum e como filha de Oxum excelente mãe, boa esposa, [...] tinha o seu jeito doce de dizer e fazer as coisas, sem querer ferir, nem magoar, sempre prestativa [...] adorava deitar no seu colo e sentir, nos meus cabelos, mãos tão delicadas d'Oxum acompanhadas de uma canção que ela aprendera com minha vó, que aprendera com minha bisavó e daí adiante, já sabe como é essas coisas né? [...] e o meu pai Xangô, Kaô Kabessilê [...] quando eu vejo que o meu pai Xangô e a minha mãe Iansã, senhora tão guerreira, altiva e poderosa, assim como o meu pai Ogum e o pai Oxalufã, guerreiros nesta vida e na outra, só nos cabe, aprender com eles e como eles, a arte da guerra diária, na verdade uma guerra santa, vencer os obstáculos que nos são impostos, e aprender com as vitórias e derrotas [...] daqui eu vejo tudo o que se passa lá embaixo, a subida é um pouco cansativa, mas, vale o esforço, vejo boa parte da cidade; vejo as pessoas correndo pela vida e atrás do tempo; a angústia de quem fica e o alívio de quem parte; a solidão, o desespero, o desamparo; o aconchego e o abandono; o estímulo e o desprezo, os dias coloridos e os dias cinzentos [...] (TRINCHÃO, 2010, p. 4)

231 Em Arlinda, presumo que divindades africanas não integram tão somente o seu passado ancestral, mas também se presentificam em suas ações, em uma linguagem simbólica e mitológica, com proteção e estímulo para seguir firmemente as rotas de suas viagens. Efetivar realizações, sonhos e encontrando forças para enfrentar “[...] a guerra diária, que empreendemos, que apreendemos e onde aprendemos, quando o rir e o chorar é uma constante, mas, as lágrimas e as dores são lavadas sempre com as águas da paz que Oxalá, Babá Ekê, nos traz e abençoa [...]” (TRINCHÃO, 2010, p. 4), como confiantemente afirma, em um tom de depoimento, a própria Arlinda. Pelo conto, embora sejam perceptíveis marcas de individualidade de Arlinda, não é difícil encontrar traços da vida em comunidade e em sociedade. Por sua narrativa, podem-se conhecer fios culturais, ideologias, espaços, realidades socioculturais, políticas e religiosas, pessoas e eventos, arquétipos, referências identitárias etc, que integram o cotidiano, a história de vida e as memórias de Arlinda. Diante disso e por entender o conto como uma escrita de si/nós ficcionalizada, torna-se pertinente a lembrança do estudioso Luis Costa Lima, ao tratar da autobiografia: E devemos lembrar que não é apenas o eu a matéria indispensável para a autobiografia – o que a confundiria com o diário -, pois tem como seu traço absoluto o intercâmbio de um eu empírico com o mundo, Por assim dizer, a autobiografia supõe um duplo e simultâneo foco: como o eu reage ao mundo e como o mundo experimenta o eu. (LIMA, 1986, p. 255) As memórias de Arlinda são um escrever de si para si, inteseccionado pelos outros e pelos mundos que lhe circundam, uma vez que a narradora relata e reinventa suas pequenas histórias, aparentemente, sem momentos inusitados, mas de grandes referências socioculturais e de saberes. Como práticas discursivas, as memórias de Arlinda se forjam afastadas de linearidades e totalidades, mas adjacentes de fragmentações e de lembranças esparsas de si, de sua mainha, de seu papai, de suas experiências com os Orisàs, dentre outras. Suas recordações, nutridas pela vida em relação, se coadunam com àquelas vividas com pessoas encontradas pelas escadas e ladeiras, entrelaçadas por outras narrativas, lugares e eventos. Em Arlinda, o vivido é reinventado, individual e coletivamente, e construídos o presente e o porvir permeados de lembranças, banindo, como ocorrem comumente em memórias históricas e literárias, aquilo que as vozes dos contos não desejam rememorar. As memórias literárias se constituem, como narrativas esparsas do labor, da dor e alegria de forjar identidades afrofemininas. Nelas há um compartilhamento de

231<br />

Em Arlin<strong>da</strong>, presumo que divin<strong>da</strong>des africanas não integram tão somente o seu<br />

passado ancestral, mas também se presentificam em suas ações, em uma linguagem<br />

simbólica e mitológica, com proteção e estímulo para seguir firmemente as rotas de suas<br />

viagens. Efetivar realizações, sonhos e encontrando forças para enfrentar “[...] a guerra<br />

diária, que empreendemos, que apreendemos e onde aprendemos, quando o rir e o<br />

chorar é uma constante, mas, as lágrimas e as dores são lava<strong>da</strong>s sempre com as águas <strong>da</strong><br />

paz que Oxalá, Babá Ekê, nos traz e abençoa [...]” (T<strong>RI</strong>NCHÃO, 2010, p. 4), como<br />

confiantemente afirma, em um tom de depoimento, a própria Arlin<strong>da</strong>.<br />

Pelo conto, embora sejam perceptíveis marcas de individuali<strong>da</strong>de de Arlin<strong>da</strong>,<br />

não é difícil encontrar traços <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em comuni<strong>da</strong>de e em socie<strong>da</strong>de. Por sua narrativa,<br />

podem-se conhecer fios culturais, ideologias, espaços, reali<strong>da</strong>des socioculturais,<br />

políticas e religiosas, pessoas e eventos, arquétipos, referências identitárias etc, que<br />

integram o cotidiano, a história de vi<strong>da</strong> e as memórias de Arlin<strong>da</strong>. Diante disso e por<br />

entender o conto como uma escrita de si/nós ficcionaliza<strong>da</strong>, torna-se pertinente a<br />

lembrança do estudioso Luis Costa Lima, ao tratar <strong>da</strong> autobiografia:<br />

E devemos lembrar que não é apenas o eu a matéria indispensável para a<br />

autobiografia – o que a confundiria com o diário -, pois tem como seu traço<br />

absoluto o intercâmbio de um eu empírico com o mundo, Por assim dizer, a<br />

autobiografia supõe um duplo e simultâneo foco: como o eu reage ao mundo<br />

e como o mundo experimenta o eu. (LIMA, 1986, p. 255)<br />

As memórias de Arlin<strong>da</strong> são um escrever de si para si, inteseccionado pelos<br />

outros e pelos mundos que lhe circun<strong>da</strong>m, uma vez que a narradora relata e reinventa<br />

suas pequenas histórias, aparentemente, sem momentos inusitados, mas de grandes<br />

referências socioculturais e de saberes. Como práticas discursivas, as memórias de<br />

Arlin<strong>da</strong> se forjam afasta<strong>da</strong>s de lineari<strong>da</strong>des e totali<strong>da</strong>des, mas adjacentes de<br />

fragmentações e de lembranças esparsas de si, de sua mainha, de seu papai, de suas<br />

experiências com os Orisàs, dentre outras. Suas recor<strong>da</strong>ções, nutri<strong>da</strong>s pela vi<strong>da</strong> em<br />

relação, se coadunam com àquelas vivi<strong>da</strong>s com pessoas encontra<strong>da</strong>s pelas esca<strong>da</strong>s e<br />

ladeiras, entrelaça<strong>da</strong>s por outras narrativas, lugares e eventos.<br />

Em Arlin<strong>da</strong>, o vivido é reinventado, individual e coletivamente, e construídos o<br />

presente e o porvir permeados de lembranças, banindo, como ocorrem comumente em<br />

memórias históricas e literárias, aquilo que as vozes dos contos não desejam rememorar.<br />

As memórias literárias se constituem, como narrativas esparsas do labor, <strong>da</strong> dor e<br />

alegria de forjar identi<strong>da</strong>des afrofemininas. Nelas há um compartilhamento de

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!