Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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226 Sou nós porque já não é e nunca foi uma opção. Naquele momento não era certo ou errado, propício, de agrado... Éramos origem, raízes, antepassados. Tudo ali misturado, evocado. Nos gestos precisos de Fekém e nos olhares atentos das abiãs ao chão. Em cada dobrada dos atabaques. Nós. Você [...] (ADÚN, 2007, p. 161) Entre o estranhamento mediante os pensamentos e sentimentos que se sucedem e o embevecimento do olhar, a narradora descreve rapidamente o ambiente místico (e mítico) e profundamente humano onde tudo acontece, através de um profundo entrecruzamento de olhares. Ela guarda recordações daquele instante que, com a sua narrativa, se comporão memórias ficionalizadas daquele breve momento. Ela conta também sobre seu contentamento ao olhar o seu amor Odé e se certificar da união ancestral, durante uma festa 37 de candomblé, em um momento e local de memórias coletivas, considerados surpreendentes e até subversivos diante dos templos religiosos hegemônicos: em um barracão de um Terreiro de Candomblé. Não viu o meu olhar? Através dele falei tudo que a limitação da palavra não me permite lhe dizer. Resumindo, eu disse que amo você. Ali, sentada sob aquele barracão. Hipnotizada pela dança daquele que resultou na nossa união ancestral [...] (ADÚN, 2007, p. 161) A narradora desnuda para o seu amado o seu olhar falante, lembrando quando e onde despontou a certeza de amá-lo. O espaço de memórias não aparece como um lugar solitário, mas se configura e desemboca no convívio com os outros: em um Barracão. É um lugar de memória pessoal, onde a personagem vivencia instantes de amor. É também um lugar de memórias coletivas, pois é um dos espaços comunitários de práticas religiosas de matriz africana, onde as celebrações acontecem e ancestrais dançam e se relacionam com a comunidade. Além do local, destacam-se, na composição das memórias da personagem narradora, os sentimentos vividos, envolvidos por diversas simbologias, na comunidade, juntamente com as Abiãs 38 , Odé e as divindades africanas presentes no momento da troca de olhares. Naquele momento, passado e presente se diluíram em um só tempo, o individual se tornara coletivo, e o olhar vivido deixou recordações e lembranças que se forjaram no conto em memórias. É ainda onde se rompe a distância entre os mundos natural e sobrenatural, uma vez que Abiãs e Oyá se misturam e presenciam o encontro entre a narradora e o seu 37 Festa é uma das denominações de cultos e celebrações em comunidades de asè. 38 O termo Abiãs refere-se às pessoas que estão na comunidade de religiões de matriz africanas, mas ainda não passaram pelo processo iniciático.
Odé, bem como o instante do olhar falante, tornando o momento também um traço de memória. 227 Nem a Oyá se atirando em seus braços me fez recuar, ou mudar, ou parar de sentir tanta certeza. Tanta verdade inquestionável. Meu Odé é caçador e caça e sabe que é senhor de mim. Assim como sou sua senhora, dona, aurora, o pôr e o nascer do sol sem fim. (ADÚN, 2007, p. 161) Além de Oyá, a deusa dos ventos, tão presente em contos e poemas de algumas autoras participantes da pesquisa, aparece, na breve narrativa, o orisà Odé, o caçador, aquele que também aparece em outras narrativas de Mel Adún aqui apresentadas. É mais um nome do rei de azul e de Inlé, respectivamente, personagens dos contos Lembranças das águas e Yeyelodê dessa autora. Ele é uma divindade africana, senhor das matas, da terra e da caça, muito conhecida e cultuada no Brasil como Ossòssi. Por esses atributos, é considerado provedor das necessidades de sobrevivência dos seres humanos. Este conto reúne características dos dois modos de memorialismos abordados por Alba Olmi (2006), ao tratar sobre memórias literárias: o biográfico – que tem como marcas discursivas a ficcionalização e constituição do Outro ao discorrer sobre Odé ─ e o autobiográfico – construção de vidas particulares, quando a narradora personagem escreve e diz de si enquanto vê Odé. Na narrativa, não se trata apenas de recordar o que ela viu, mas também de compreender aquilo que viu, os desdobramentos do instante narrado e os processos de organização, de funcionamento e de constituição das memórias que ela conta. Com a presença de divindades e pelo cenário mítico em que ocorre a história de Terreiro da gente, a ancestralidade afrobrasileira torna-se, pois, um lugar proeminente de memórias. Nele, a narradora descose fiapos de memórias que ameaçam a alteridade e costura, em um espaço sagrado e identitário, linhas e fios de outras vozes altivas que agenciam memórias afirmativas de divindades com feições africanas e de experiências e ações significativas. Na sequência dessa análise sobre memórias literárias, situo o conto Arlinda, de Fátima Trinchão. Por ele, traços culturais negros, heróis e deuses/as, personagens e vozes narradoras criam memórias sobre modestos ou exuberantes eventos do cotidiano e da história, bem como sobre formas de resistências e conquistas históricas e igualmente contemporâneas que dão continuidade às lutas das populações negras. Além disso, ainda
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atentos <strong>da</strong>s abiãs ao chão. Em ca<strong>da</strong> dobra<strong>da</strong> dos atabaques. Nós. Você [...]<br />
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Entre o estranhamento mediante os pensamentos e sentimentos que se sucedem e<br />
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Ela conta também sobre seu contentamento ao olhar o seu amor Odé e se<br />
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Não viu o meu olhar? Através dele falei tudo que a limitação <strong>da</strong> palavra não<br />
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A narradora desnu<strong>da</strong> para o seu amado o seu olhar falante, lembrando quando e<br />
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individual se tornara coletivo, e o olhar vivido deixou recor<strong>da</strong>ções e lembranças que se<br />
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É ain<strong>da</strong> onde se rompe a distância entre os mundos natural e sobrenatural, uma<br />
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37 Festa é uma <strong>da</strong>s denominações de cultos e celebrações em comuni<strong>da</strong>des de asè.<br />
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