Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

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222 Guardião da floresta fez-se pássaro, então as folhas, flores e frutos, árvores, caules, arbustos, todos os acolheram fraternalmente; [...] (TRINCHÃO, 2009, p. 53-54) Apesar do prazer e das sensações de paz e frescor vividos, o protagonista experimentou a sofreguidão e a fadiga inerentes as suas inexperiências naquela viagem ecológica. Cansado, resolveu descansar um pouco antes de retornar a sua rotina; adormecido, em sonho, rememorou as vezes em que, ainda menino, foi socorrido pelas folhas e plantas para ser curado de mal-estar e gripes. Lembrou-se de chás, banhos de folhas e infusões que compunham os cuidados tomados com sua saúde pelas suas avós, mãe e tias. [...] Viu fumegar em seus sonhos os pratos bem dispostos na mesa preparada com tanto afinco. Lambeu os beiços, estralou a língua, manjar dos deuses. E como cheiravam uma daquelas cozinhas [...] as folhas faziam milagres, as folhas devolviam a vida. E todos ou quase todos afiançavam o poder curativo das folhas. Kò si èwè kò si Òrisà. (TRINCHÃO, 2009, p. 57) Ao acordar, alegrou-se por ter se lembrado, sonhando momentos importantes de sua infância, surpreendendo-se novamente com a encantadora paisagem que desfila a sua frente. [...] flores e aves multicores, um rio caudaloso, uma cachoeira de águas intensas e volumosas espumas, arco-íris que paira de um lado a outro, peixes saltitantes em pro fusão, árvores, flores, folhas, e de todos os tamanhos, de todas as espécies, dos mais variados matizes e formatos. Ah! As folhas. As folhas que curam, as folhas que perfumam, as folhas que fortificam, as folhas que energizam. Kò si èwè kò si Òrisà. (TRINCHÃO, 2009, p. 57) O conto se encerra com a volta do caminheiro, regozijado e energizado, ao seu cotidiano, acompanhado de bem-te-vis e a guardar na memória essas paisagens. O casal de bem-te-vis levou-o até a beira da estrada, foram seus condutores e companhia durante aquela permanência. Em momento algum se sentira sozinho ou perdido, era só olhar para o alto e lá estavam eles, pairando sobre sua cabeça, seus braços e ombros, como a mostrar-lhe os encantos do lugar e o caminho a seguir. Não sei se ele percebera, mas todo o tempo a guiá-lo, guardião da floresta, nobre amigo feito aves: kò si èwè kò si Òrisà. (TRINCHÃO, 2009, p. 57) A natureza, com toda exuberância e beleza, exibe-se, no conto, não simplesmente como adorno e ambiente, mas também como personagem da narrativa. Ela se apresenta bela e em diálogo com o andante peregrino, proporcionando-lhe sensações de equilíbrio e serenidade.

223 Deixou-se ficar extasiado com aquela beleza, e percebeu que tudo era uma só canção: o canto dos pássaros, o zunir da ir das abelhas, o coaxar dos sapos, a voz do vento, o fretenir da cigarra, o rastejar dos insetos, o voo altaneiro da águia... Tudo é música, tudo é vida, tudo é melodia, tudo e todos são instrumentos que trazem em si a genialidade do artista [...] (TRINCHÃO, 2009, p. 57) A natureza, neste conto, além de ser personagem e ambiente da narrativa, remete a significados que lhe são atribuídos pelas comunidades de tradições religiosas que cultuam a divindade Ossanha, personagem guia desse homem da narrativa, ávido por experiências de harmonia. A associação da natureza com os orisàs é uma premissa imprescindível para essas comunidades. É da natureza que, entre outras explicações, elas justificam os arquétipos das divindades e sustentam as relações entre o Aiyê e o Òrum. É com a natureza que elas reconfiguram estratégias para superação dos males do corpo e da cabeça. A presença de divindades como Ossanha, em Salve as folhas Kò Si Èwè Kò Si Òrisá e em outras narrativas aqui analisadas, procede, entre outras razões, pela necessidade de que toda sociedade tem de um saber coletivizado, através do qual grupos preservam e mobilizam identidades e, simultaneamente, controlam práticas de organização e de permanências. Mitos africanos, ressignificados pelas narrativas afrofemininas, em destaque neste tópico, se evidenciam por advirem de coletividades e de legados culturais e religiosos, com uma nítida função de compreender as próprias inquietações e cursos de histórias individuais e coletivas. Eles não são estáticos, por isso são continuamente modificados pela própria dinâmica de recriações e de sentidos produzidos pelos/as leitores/as. Com divindades e mitos africanos e afrobrasileiros Fátima Trinchão e Aline França constroem sentidos para a vida e elaboram respostas para os eventos que se apresentem, entendendo cenas e vicissitudes que despontam no cotidiano, ameacem a alteridade e anulem ou recalquem memórias ancestrais coletivas. Suas narrativas afrofemininas retratam reveses e alegrias da vida, através de relatos sobre seres humanos e deuses/as, visto que elas têm um caráter sagrado e humano, exemplar e significativo, exercendo uma função dentro da estrutura social, aproximando-se e distanciando-se, simultaneamente, do sentido maravilhoso, fantástico e inusitado a elas adotados.

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Guardião <strong>da</strong> floresta fez-se pássaro, então as folhas, flores e frutos, árvores,<br />

caules, arbustos, todos os acolheram fraternalmente; [...] (T<strong>RI</strong>NCHÃO, 2009,<br />

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Apesar do prazer e <strong>da</strong>s sensações de paz e frescor vividos, o protagonista<br />

experimentou a sofreguidão e a fadiga inerentes as suas inexperiências naquela viagem<br />

ecológica. Cansado, resolveu descansar um pouco antes de retornar a sua rotina;<br />

adormecido, em sonho, rememorou as vezes em que, ain<strong>da</strong> menino, foi socorrido pelas<br />

folhas e plantas para ser curado de mal-estar e gripes. Lembrou-se de chás, banhos de<br />

folhas e infusões que compunham os cui<strong>da</strong>dos tomados com sua saúde pelas suas avós,<br />

mãe e tias.<br />

[...] Viu fumegar em seus sonhos os pratos bem dispostos na mesa prepara<strong>da</strong><br />

com tanto afinco. Lambeu os beiços, estralou a língua, manjar dos deuses. E<br />

como cheiravam uma <strong>da</strong>quelas cozinhas [...] as folhas faziam milagres, as<br />

folhas devolviam a vi<strong>da</strong>. E todos ou quase todos afiançavam o poder curativo<br />

<strong>da</strong>s folhas. Kò si èwè kò si Òrisà. (T<strong>RI</strong>NCHÃO, 2009, p. 57)<br />

Ao acor<strong>da</strong>r, alegrou-se por ter se lembrado, sonhando momentos importantes de<br />

sua infância, surpreendendo-se novamente com a encantadora paisagem que desfila a<br />

sua frente.<br />

[...] flores e aves multicores, um rio cau<strong>da</strong>loso, uma cachoeira de águas<br />

intensas e volumosas espumas, arco-íris que paira de um lado a outro, peixes<br />

saltitantes em pro fusão, árvores, flores, folhas, e de todos os tamanhos, de<br />

to<strong>da</strong>s as espécies, dos mais variados matizes e formatos. Ah! As folhas. As<br />

folhas que curam, as folhas que perfumam, as folhas que fortificam, as folhas<br />

que energizam. Kò si èwè kò si Òrisà. (T<strong>RI</strong>NCHÃO, 2009, p. 57)<br />

O conto se encerra com a volta do caminheiro, regozijado e energizado, ao seu<br />

cotidiano, acompanhado de bem-te-vis e a guar<strong>da</strong>r na memória essas paisagens.<br />

O casal de bem-te-vis levou-o até a beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, foram seus condutores e<br />

companhia durante aquela permanência. Em momento algum se sentira<br />

sozinho ou perdido, era só olhar para o alto e lá estavam eles, pairando sobre<br />

sua cabeça, seus braços e ombros, como a mostrar-lhe os encantos do lugar e<br />

o caminho a seguir.<br />

Não sei se ele percebera, mas todo o tempo a guiá-lo, guardião <strong>da</strong> floresta,<br />

nobre amigo feito aves: kò si èwè kò si Òrisà. (T<strong>RI</strong>NCHÃO, 2009, p. 57)<br />

A natureza, com to<strong>da</strong> exuberância e beleza, exibe-se, no conto, não<br />

simplesmente como adorno e ambiente, mas também como personagem <strong>da</strong> narrativa.<br />

Ela se apresenta bela e em diálogo com o an<strong>da</strong>nte peregrino, proporcionando-lhe<br />

sensações de equilíbrio e sereni<strong>da</strong>de.

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