Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ... Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
tempo e pelo uso de uma antiga e rústica porta, sinaliza rupturas e aproximações entre o passado e o presente. A porta e a tramela são úteis para realizar exercícios de (re) leitura das vozes narradoras e das relações consigo mesmo e com os outros. Por conseguinte, a escrita de si se configura por apropriarem-se do já dito fragmentário e aleatório que lhe constituem e da reflexão realizada sobre o tempo já vivido, pois “[...] trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com finalidade que não é nada menos que a constituição de si [...]” (FOUCAULT, 1997, p. 137). 202 A breve história é toda narrada em um parágrafo não concluído, com uma sequência de orações, separadas por vírgulas e pontos de segmentos, mas sem marca de início de períodos. A narrativa é dividida em duas partes: na primeira, uma mulher conta o retorno a sua casa, ao passar por uma porta velha, fechada por uma tramela, que estão personificadas no conto, pois acompanham não apenas a chegada da personagem protagonista, a figura feminina, sem nome, mas também suas necessidades insaciadas e seus anseios por acolhimento do homem que já chegou em casa. A porta e a tramela quiçá, simbolicamente, indiquem empecilhos que a personagem feminina enfrentará ou os caminhos pelos quais terá de passar mediante a sua decisão de partir em busca daquilo que lhe espera. A chegança era sempre assim: o pé firme abria a porta quase morta de tantos anos sem tinta, a madeira transparecendo de fora pra dentro os movimentos da mulher [...] pelas frestas da porta, a tramela imóvel parecia entender que não servia para quase nada, não trancava, não bania, era devassada em noites insólitas de suplício sem súplicas [...] [...] aqui, eu me sabendo à espera. à espera acordada de qualquer hora, sempre eu à espera. à espera de promessas que não vinham nunca, nunquinha, à espera de um homem [...] (SANTANA, 2004, p. 89-90) Na segunda parte do conto, a figura masculina, também sem nome, narra sua saída de casa por viver ameaçado por medos e angústias, contingenciado pela solidão e sem o acalento da mulher que chegava sempre à espera de um homem. Sem desfecho, a narrativa é interrompida com um homem-menino relembrando e relendo as mesmas cenas vividas pela sua mulher. [...] essa coisa de querer dela o colo nas horas de medo de nada, em que eu era menino com medo da vida, de querer com ela e dela a pele para ensopar que descia de mim em lágrima e euforia de gozo por ela e por mim, e seco eu saía comido pelas ruas de loucas gordas que sorriam do meu medo
203 carrancudo, o mundo me comia inteiro e era medo de ver que eu sentia, e seco eu chegava, e seca ela ia [...] (SANTANA, 2004, p.91-92) Em Tramela, os limites entre o passado e o presente tornam-se imperceptíveis; as marcas distintivas do tempo são diluídas, prevalecendo apenas ecos de recordações que rememoram e presentificam imagens, sentimentos e vivências advindos de eventos circunscritos por amor e medo que se entrelaçam na formação de si. Lembranças passeiam em todo o conto como indicativos de que por elas poder-se-ia compreender e buscar o/a outro/a no presente fugaz que se faz no instante e no fluido aqui e agora. Colcha de retalhos, também de Rita Santana, é uma pequena narrativa, em que uma voz negra feminina vive uma solidão silenciosa, ruminante e falante, como é peculiar às narrativas dessa autora que simultaneamente, e, em sua própria casa, procura sobreviver, reagindo aos seus sim e não e às próprias vozes e silêncios. [...] Sempre fui assim taciturna e vaga, assim dispersa, rarefeita nos pensamentos, de longos vagares, longe das pessoas, longe das vozes, longe das vestes [...] (SANTANA, 2004, p. 45) A narradora personagem, também sem nome, aparece como aquela figura feminina que se mostra sem grandes feitos e com poucas relações, mas profundamente ciente de si, a ponto de perceber que se constituiu na solidão. Além disso, ela vive intensamente seu tempo pessoal em cada época de sua vida, persistindo sozinha em compreender-se e em se reconstituir. Luta persistente, onde me desgasto, me renovo e fortifico. E, com a casa, presente na pele, na mente e presentificada sempre, lá ou cá, na minha paz de amor por ele. Só me sentia ausente, na ausência em que o outro não cabia em mim, em meu tempo pessoal, indivisível, interior, impartilhável, onde a natureza da gente destitui-se por completo do outro e silencia-se em si mesma, onde o estado de solidão inerente se manifesta, em meio à festa dos rituais do só [...] (SANTANA, 2004, p. 45) Apesar de dispersa e distante, ela se sente plena, em sua solidão, mas percebendo-se presente e ausente do outro. Ao pensar sobre si, ela se dá conta de que o tempo vivido foi uma colcha formada por vários retalhos de tempos e de silêncios. Amadurecera o tempo. Sentia-me pronta para restituir-me em minha história com os cacos guardados, acordá-los do hibernar profundo de historicidade arquivada, reativar as vidas da minha vida no mosaico dos trapos, dos farrapos, na convalescência dos mundos imersos em mim [...] (SANTANA, 2004, p. 45)
- Page 139 and 140: negros/as escritores/as que deixam
- Page 141 and 142: Sua coragem, sua beleza. O seu tale
- Page 143 and 144: 155 Este capítulo ainda discutiu s
- Page 145 and 146: 157 Liane Schneider, ao discutir so
- Page 147 and 148: si/nós como sujeitos que enunciam
- Page 149 and 150: 161 Sinto. Agora sinto qualquer coi
- Page 151 and 152: 163 3.2 Literatura de Escritoras Ne
- Page 153 and 154: Venho de umidades, morfos e orgias
- Page 155 and 156: Ferem-te com flechas encomendadas T
- Page 157 and 158: com as amarras da dominação e do
- Page 159 and 160: 171 A marca textual da literatura a
- Page 161 and 162: 173 Diante de tal contexto, se imp
- Page 163 and 164: 175 O Baobá, incontestavelmente, c
- Page 165 and 166: 177 O desejo de ter um Baobá, como
- Page 167 and 168: 179 Dentre os 70 poemas, em 16 dele
- Page 169 and 170: sobretudo, entre homens e mulheres
- Page 171 and 172: 183 Nessas histórias aparecem fios
- Page 173 and 174: 185 Meu querido, quem me ama? João
- Page 175 and 176: Ela escreve igualmente para descrev
- Page 177 and 178: 189 Lejeune também retoma a discus
- Page 179 and 180: suas recordações no recôndito de
- Page 181 and 182: com o já dito sobre ela para pross
- Page 183 and 184: 195 [...] Eu e minha atração por
- Page 185 and 186: deslocamento subjetivo e de ressign
- Page 187 and 188: personagem principal Marina, ou sej
- Page 189: 201 toda descalça, em vertigem. Ai
- Page 193 and 194: 205 ser como aquela. Nenhuma gota d
- Page 195 and 196: V CAPÍTULO MEMÓRIAS LITERÁRIAS D
- Page 197 and 198: instituem classificações, tais co
- Page 199 and 200: Perfumes e ervas para lavar Do Pai
- Page 201 and 202: 213 5.2 (Re) Significações de Mit
- Page 203 and 204: 215 Os mitos constituem, por conseg
- Page 205 and 206: 217 Ao pisar nas areias da Filha Do
- Page 207 and 208: Cajimbã, Tuaka, Trigu, Mamba, Male
- Page 209 and 210: que travam para sobreviverem e para
- Page 211 and 212: 223 Deixou-se ficar extasiado com a
- Page 213 and 214: historiador Pierre Nora (1997), em
- Page 215 and 216: Odé, bem como o instante do olhar
- Page 217 and 218: 229 [...] Arlinda penava e relembra
- Page 219 and 220: 231 Em Arlinda, presumo que divinda
- Page 221 and 222: CONSIDERAÇÕES FINAIS Preciso(amos
- Page 223 and 224: status da autoria. Mais ainda, for
- Page 225 and 226: 237 O olhar descritivo-interpretati
- Page 227 and 228: REFERÊNCIAS ADUN, Mel. Instante mu
- Page 229 and 230: BHABHA, Homi K. O local da cultura.
- Page 231 and 232: DELEUZE, Gilles. Foucault. São Pau
- Page 233 and 234: ___________, Michel. Arqueologia do
- Page 235 and 236: 247 KLINGER, Diana Irene. Escritas
- Page 237 and 238: Dourado Barbosa (Trad). 2 ed. Rio d
- Page 239 and 240: ___________, Rita. O brejo. In: Mã
tempo e pelo uso de uma antiga e rústica porta, sinaliza rupturas e aproximações entre o<br />
passado e o presente. A porta e a tramela são úteis para realizar exercícios de (re)<br />
leitura <strong>da</strong>s vozes narradoras e <strong>da</strong>s relações consigo mesmo e com os outros. Por<br />
conseguinte, a escrita de si se configura por apropriarem-se do já dito fragmentário e<br />
aleatório que lhe constituem e <strong>da</strong> reflexão realiza<strong>da</strong> sobre o tempo já vivido, pois “[...]<br />
trata-se, não de perseguir o indizível, não de revelar o que está oculto, mas, pelo<br />
contrário, de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com<br />
finali<strong>da</strong>de que não é na<strong>da</strong> menos que a constituição de si [...]” (FOUCAULT, 1997, p.<br />
137).<br />
202<br />
A breve história é to<strong>da</strong> narra<strong>da</strong> em um parágrafo não concluído, com uma<br />
sequência de orações, separa<strong>da</strong>s por vírgulas e pontos de segmentos, mas sem marca de<br />
início de períodos. A narrativa é dividi<strong>da</strong> em duas partes: na primeira, uma mulher conta<br />
o retorno a sua casa, ao passar por uma porta velha, fecha<strong>da</strong> por uma tramela, que estão<br />
personifica<strong>da</strong>s no conto, pois acompanham não apenas a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> personagem<br />
protagonista, a figura feminina, sem nome, mas também suas necessi<strong>da</strong>des insacia<strong>da</strong>s e<br />
seus anseios por acolhimento do homem que já chegou em casa. A porta e a tramela<br />
quiçá, simbolicamente, indiquem empecilhos que a personagem feminina enfrentará ou<br />
os caminhos pelos quais terá de passar mediante a sua decisão de partir em busca<br />
<strong>da</strong>quilo que lhe espera.<br />
A chegança era sempre assim: o pé firme abria a porta quase morta de tantos<br />
anos sem tinta, a madeira transparecendo de fora pra dentro os movimentos<br />
<strong>da</strong> mulher [...] pelas frestas <strong>da</strong> porta, a tramela imóvel parecia entender que<br />
não servia para quase na<strong>da</strong>, não trancava, não bania, era devassa<strong>da</strong> em noites<br />
insólitas de suplício sem súplicas [...]<br />
[...] aqui, eu me sabendo à espera. à espera acor<strong>da</strong><strong>da</strong> de qualquer hora,<br />
sempre eu à espera. à espera de promessas que não vinham nunca,<br />
nunquinha, à espera de um homem [...] (SANTANA, 2004, p. 89-90)<br />
Na segun<strong>da</strong> parte do conto, a figura masculina, também sem nome, narra sua<br />
saí<strong>da</strong> de casa por viver ameaçado por medos e angústias, contingenciado pela solidão e<br />
sem o acalento <strong>da</strong> mulher que chegava sempre à espera de um homem. Sem desfecho, a<br />
narrativa é interrompi<strong>da</strong> com um homem-menino relembrando e relendo as mesmas<br />
cenas vivi<strong>da</strong>s pela sua mulher.<br />
[...] essa coisa de querer dela o colo nas horas de medo de na<strong>da</strong>, em que eu<br />
era menino com medo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, de querer com ela e dela a pele para ensopar<br />
que descia de mim em lágrima e euforia de gozo por ela e por mim, e seco eu<br />
saía comido pelas ruas de loucas gor<strong>da</strong>s que sorriam do meu medo