Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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narradora faz um árduo trabalho de entendê-los. Não é uma tarefa fácil pois, como um ato filosófico, a personagem feminina negra consagra um intenso e permanente labor do pensamento, que favorece o autoconhecimento e as conquistas de mudanças necessárias para compreender melhor a si mesma, as suas ações e a relação com Augusto. Ela empodera a si mesma, exercendo poder, permitindo-lhe altivez, autonomia e, acima de tudo, tornar-se dona de si e sujeito da própria existência e de seus atos de liberdade. Com tais ações, ela se torna apta e suscetível a interpretar-se. 200 Augusto buscava a mortalidade possível. Por isso Marina e suas entranhas de estranhezas. Infindável descoberta de ossos que se insinuavam urgentes no raso da madeira oculta entre lençóis, espumas, molas, quem dera a palha para apaziguar as tentativas de fuga. Ossos de Marina entranhados que nem lasca fincada na unha, sangrando a dor do lascão. De não ser amado sempre soube e amor não queria [...] (SANTANA, 2004, p.83) A personagem principal do conto é apresentada pela narradora ausente sempre disposta a reagir contra toda e qualquer forma de negação de si que a estrada e os encontros lhe preconizarem. Ela entra em cena novamente, na trama, com a atitude de olhar-se, vendo (imaginando) Augusto e desejando outros encontros com ele. [...] Ainda tenho a estrada, mas os nomes me escapam, estou ficando sem os nomes. E o homem amado que não vem para salvar-me dessa felicidade absurda, absoluta. Augusto era o gosto da permanência, o medo de não precisar mais das palavras, e tantas já se foram. Daí os encontros com ele que nunca vinha [...] Eram os desatinos mais sóbrios dos fragmentos de mim que sobraram [...] Estou morrendo, estive sempre a morrer. Mesmo antes de respirar o ar de sua vinda, eu já me sabia morta, mas hei de, mesmo morta, violentar meu túmulo, roubar de lá a vida que me ficou presa, só para ouvir o som da sua chegada. [...] (SANTANA, 2004, p.83-84) O conto, em seu desfecho, apresenta ao/a leitor/a o desafio de atribuir-lhe sentido, não com o propósito de reconstituir o vivido por Marina, mas de (des) tecê-lo para coser uma escrita, desprovida de papéis socioculturais etnocêntricos e misóginos e comprometida com ações que promovam a Marina a oportunidade de um pensar sobre si e incidam em autoconhecimento e autogovernabilidade, os quais, neste texto, são entendidos como exercícios de cuidado de si. No primeiro dia do ano não chorei, perdi o caminho condutor de lágrimas. A solidão habitual atingia a maturidade dos anos. Não chorei. Me sinto tranqüila. Que me venha o ano novo com todas as surpresas do porvir ou mesmo a ausência delas. Estarei sempre ali, naquela estrada, testemunhando o aterro progressivo do manguezal. Sempre em fuga. A felicidade sempre me levará àquelas terras de lá, antes de eu chegar até aqui. Ainda me sinto nua,
201 toda descalça, em vertigem. Ai, essa minha limitação pulmonar diante da vida... às vezes esqueço de respirar e transpiro nos instantes seguintes todo o esquecimento voluntário[...] (SANTANA, 2004, p.86) Marina, sem choros, no primeiro dia de um novo ano, toma nas mãos o tecer da própria existência, decidindo-se, de fato, pela separação de Augusto, seguindo a sua estrada. Mas sua partida será nutrida por movimentos de idas e voltas, de cuidar-se e deixar-se conhecer, mas também de afagos, beijos, singelezas, intimidades, desejos, prazer e gozo. [...] Volto e sempre digo para Augusto: nunca deixe de beijar as bordas das minhas ancas, sim Augusto, bem aí onde só você sabe ir tateando com a língua, na trilha onde repousa uma asa do meu gozo. Vai Augusto, vai beijando do meu corpo as bocas que hão de beijar seus beijos, a boca Augusto. Beije minha boca [...] (SANTANA, 2004, p.86) Ao assumir a sua trajetória, observada pela voz narradora, Marina destina um lugar de destaque a Augusto, na formação discursiva sobre si, atribuindo-lhe uma indiscutível relevância, sem que isso remeta à subserviência, isto é, reconhecer a importância dele em sua vida não basta para permanecer com ele vivendo dilemas e conflitos da vida amorosa. Indubitavelmente, decidir-se pela partida significa, a qualquer tempo, para Marina, permitir-se ir, (re) significar o vivido e, acima de tudo, tomar para si o rumo, os fios para costurar a própria vida. [...] Augusto ficou ali, me olhando de cócoras em meio à plantação de malmequer que se espalhava pelo quintal sem fundo daquela casa. Suas mãos caladas viam. Eu debrucei sobre aquele olhar a decisão de que partiria. Mais cedo ou mais tarde eu partiria em busca do que estava reservado a mim para ser vivido, minha feitura de vida. (SANTANA, 2004, p.87) Há ainda de se considerar nessa atitude de Marina um olhar sobre si, que não se configura neutro e isento de outros olhares. Decidir pela partida em busca de sua feitura de vida pode significar práticas de autoponderação e de autoexplicação, porque aparecem associadas aos traços discursivos comprometidos com releituras e positivação de sua voz que enuncia proposições de autoconstituição, de conquista de autonomia e de cuidado de si. No conto Tramela, de Rita Santana (2004), há também duas vozes negras, uma feminina e outra masculina, que contam, analogamente a Marina, suas insistentes buscas do/a outro/a e de entendimento de si mesmas. Nele, uma tramela, desgastada pelo
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narradora faz um árduo trabalho de entendê-los. Não é uma tarefa fácil pois, como um<br />
ato filosófico, a personagem feminina negra consagra um intenso e permanente labor do<br />
pensamento, que favorece o autoconhecimento e as conquistas de mu<strong>da</strong>nças necessárias<br />
para compreender melhor a si mesma, as suas ações e a relação com Augusto. Ela<br />
empodera a si mesma, exercendo poder, permitindo-lhe altivez, autonomia e, acima de<br />
tudo, tornar-se dona de si e sujeito <strong>da</strong> própria existência e de seus atos de liber<strong>da</strong>de.<br />
Com tais ações, ela se torna apta e suscetível a interpretar-se.<br />
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Augusto buscava a mortali<strong>da</strong>de possível. Por isso Marina e suas entranhas de<br />
estranhezas. Infindável descoberta de ossos que se insinuavam urgentes no<br />
raso <strong>da</strong> madeira oculta entre lençóis, espumas, molas, quem dera a palha para<br />
apaziguar as tentativas de fuga. Ossos de Marina entranhados que nem lasca<br />
finca<strong>da</strong> na unha, sangrando a dor do lascão. De não ser amado sempre soube<br />
e amor não queria [...] (SANTANA, 2004, p.83)<br />
A personagem principal do conto é apresenta<strong>da</strong> pela narradora ausente sempre<br />
disposta a reagir contra to<strong>da</strong> e qualquer forma de negação de si que a estra<strong>da</strong> e os<br />
encontros lhe preconizarem. Ela entra em cena novamente, na trama, com a atitude de<br />
olhar-se, vendo (imaginando) Augusto e desejando outros encontros com ele.<br />
[...] Ain<strong>da</strong> tenho a estra<strong>da</strong>, mas os nomes me escapam, estou ficando sem os<br />
nomes. E o homem amado que não vem para salvar-me dessa felici<strong>da</strong>de<br />
absur<strong>da</strong>, absoluta. Augusto era o gosto <strong>da</strong> permanência, o medo de não<br />
precisar mais <strong>da</strong>s palavras, e tantas já se foram. Daí os encontros com ele que<br />
nunca vinha [...]<br />
Eram os desatinos mais sóbrios dos fragmentos de mim que sobraram [...]<br />
Estou morrendo, estive sempre a morrer. Mesmo antes de respirar o ar de sua<br />
vin<strong>da</strong>, eu já me sabia morta, mas hei de, mesmo morta, violentar meu túmulo,<br />
roubar de lá a vi<strong>da</strong> que me ficou presa, só para ouvir o som <strong>da</strong> sua chega<strong>da</strong>.<br />
[...] (SANTANA, 2004, p.83-84)<br />
O conto, em seu desfecho, apresenta ao/a leitor/a o desafio de atribuir-lhe<br />
sentido, não com o propósito de reconstituir o vivido por Marina, mas de (des) tecê-lo<br />
para coser uma escrita, desprovi<strong>da</strong> de papéis socioculturais etnocêntricos e misóginos e<br />
comprometi<strong>da</strong> com ações que promovam a Marina a oportuni<strong>da</strong>de de um pensar sobre<br />
si e inci<strong>da</strong>m em autoconhecimento e autogovernabili<strong>da</strong>de, os quais, neste <strong>texto</strong>, são<br />
entendidos como exercícios de cui<strong>da</strong>do de si.<br />
No primeiro dia do ano não chorei, perdi o caminho condutor de lágrimas. A<br />
solidão habitual atingia a maturi<strong>da</strong>de dos anos. Não chorei. Me sinto<br />
tranqüila. Que me venha o ano novo com to<strong>da</strong>s as surpresas do porvir ou<br />
mesmo a ausência delas. Estarei sempre ali, naquela estra<strong>da</strong>, testemunhando<br />
o aterro progressivo do manguezal. Sempre em fuga. A felici<strong>da</strong>de sempre me<br />
levará àquelas terras de lá, antes de eu chegar até aqui. Ain<strong>da</strong> me sinto nua,