Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...

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12.05.2013 Views

narrativa, como uma ficção de si/nós, tem a escritora do conto como referente. Para Diana Irene Klinger, 196 [...] mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construído discursivamente. Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os seus modos de representação (KLINGER, 2007, p. 61) Ocorrem, inclusive, em Medusas e caravelas, formações de si que subvertem a autobiografia clássica confessional, ainda que, por vezes, a ela recorra, pois aparece uma escrita de si relacional comprometida com a ficcionalização e tensionamento das diferenças e das relações, atuando como práticas de liberdade em reinvenções de si. Os possíveis traços autobiográficos, presentes no conto, colidem com modos paradoxais e ambivalentes em que as vozes narradoras constroem a história, visto que eles não oferecem informações precisas e lineares da vida da autora do conto, mas fragmentos, que se entrelaçam com elementos e dados ficcionais, resultando na invenção do texto artístico. Ao discutir sobre o campo literário, o lugar do/a escritor/a e as relações entre o real e o ficcional, Dominique Maingueneau 35 assegura que “[...] o escritor alimenta sua obra com o caráter problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à sociedade [...]” (MAINGUENEAU, 2001, p. 27). Para ele, o texto literário advém de uma inscrição do autor na obra, que acontece “entre o lugar e o não- lugar” (MAINGUENEAU, 2001, p. 28). Alguns vestígios da experiência pessoal da autora, em Medusas e caravelas, podem servir de apoio para a leitura dessa narrativa que se quer ficcional, mas que se apresenta no entrelugar, ou seja, no trânsito entre o vivido pela autora e vivenciado e narrado pelas vozes de Maria Emília e da outra narradora, ausente da trama e sem nome. A narrativa compromete-se, de tal modo, com uma escrita literária que se quer ficcional, referencial e diferenciadora. Ademais, fazer constituir a si e a escrita de si, com esses traços, é um exercício de poder porque incide em tornar público não apenas a si como também o que escreve e o que deseja de si, pois cria possibilidades de ações de 35 Para esse autor, “[...] A pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar, mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria impossibilidade de se estabilizar. Essa localidade paradoxal, vamos chamá-la paratopia [...]” (MAINGUENEAU, 2001, p. 28).

deslocamento subjetivo e de ressignificação do vivido com e para além das relações com o outro. 197 A relação amorosa é a referência temática mais recorrente nos contos O quarto, Medusas e caravelas e Yeyelodê. Contudo, são enfoques nessas narrativas as implicações e o desfecho da separação e, acima de tudo, os momentos de retomada da vida e da autoconstituição das personagens femininas negras presentes nos contos. Não aparecem, por exemplo, o antes e o presente da relação amorosa, mas o pretensamente vivido e relembrado. É possível que tal ocorrência decorra do propósito de suas autoras de darem ênfase às vozes femininas negras ávidas por liberdade ou à solidão, que se torna quase inevitável para figuras negras, quando se tornam donas de si e se assenhoram de seus percursos, inclusive das relações amorosas. Diferentemente da escrita espiritual cristã, a qual se estabeleceu como um modo de defesa dos pensamentos reconhecidos como maus, pois pela escrita poder-se-ia obter o autocontrole, o disciplinamento dos corpos e das mentes e defender-se das ações do demônio (FOUCAULT, 1997), a escrita de si/nós, presente em O quarto, Medusas e caravelas e Yeyelodê, se elabora como uma estética da existência ficcionalizada e se corporifica como uma escrita que possibilita o autoconhecimento e o desenvolvimento da autonomia dos eus referencial e autoral. Ademais, essas narrativas afrofemininas, como exercícios de escrita e de ficção de si/nós, derivam de aprendizagens, de releituras de escritas feitas anteriormente e de reflexão sobre elas e sobre o já escrito e dito de si/nós, isto é, de pensar e escrever sobre si/nós. Esses contos constituem discursos de ficcionalização como práticas de invenções e (re) escritas de si/nós que podem afetar outras escritas e produzir ressonâncias sobre as vivências tanto de quem escreve quanto de quem lê. (Re) escrevendo-se, Madalena, Maria Emília (e até Yeyê) podem tecer possibilidades de estratégias entre as relações de saber, de poder e de resistência, na proporção em que a narrativa não se esbarra tão somente em fios inventados de recordações e memórias. Ao contrário, em O quarto, Yeyelodê e em Medusas e caravelas, desponta uma escrita imaginativa com traços referenciais individuais e coletivos e da vida em relação, circulando em tramas, temas e questões que abarcam a voz narradora em suas vicissitudes, tais como loucura, identidades, conflitos e limites humanos, liberdade etc. Aparece, nas narrativas, uma escrita de si criativa das autoras dos contos que não está vinculada às marcas lineares de temporalidades da existência, posto que ficcionalizam fatos e eventos esporádicos de suas vidas.

narrativa, como uma ficção de si/nós, tem a escritora do conto como referente. Para<br />

Diana Irene Klinger,<br />

196<br />

[...] mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem<br />

construído discursivamente. Personagem que se exibe “ao vivo” no momento<br />

mesmo de construção do discurso, ao mesmo tempo in<strong>da</strong>gando sobre a<br />

subjetivi<strong>da</strong>de e posicionando-se de forma crítica perante os seus modos de<br />

representação (KLINGER, 2007, p. 61)<br />

Ocorrem, inclusive, em Medusas e caravelas, formações de si que subvertem a<br />

autobiografia clássica confessional, ain<strong>da</strong> que, por vezes, a ela recorra, pois aparece<br />

uma escrita de si relacional comprometi<strong>da</strong> com a ficcionalização e tensionamento <strong>da</strong>s<br />

diferenças e <strong>da</strong>s relações, atuando como práticas de liber<strong>da</strong>de em reinvenções de si. Os<br />

possíveis traços autobiográficos, presentes no conto, colidem com modos paradoxais e<br />

ambivalentes em que as vozes narradoras constroem a história, visto que eles não<br />

oferecem informações precisas e lineares <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> autora do conto, mas fragmentos,<br />

que se entrelaçam com elementos e <strong>da</strong>dos ficcionais, resultando na invenção do <strong>texto</strong><br />

artístico.<br />

Ao discutir sobre o campo literário, o lugar do/a escritor/a e as relações entre o<br />

real e o ficcional, Dominique Maingueneau 35 assegura que “[...] o escritor alimenta sua<br />

obra com o caráter problemático de sua própria pertinência ao campo literário e à<br />

socie<strong>da</strong>de [...]” (MAINGUENEAU, 2001, p. 27). Para ele, o <strong>texto</strong> literário advém de<br />

uma inscrição do autor na obra, que acontece “entre o lugar e o não- lugar”<br />

(MAINGUENEAU, 2001, p. 28).<br />

Alguns vestígios <strong>da</strong> experiência pessoal <strong>da</strong> autora, em Medusas e caravelas,<br />

podem servir de apoio para a leitura dessa narrativa que se quer ficcional, mas que se<br />

apresenta no entrelugar, ou seja, no trânsito entre o vivido pela autora e vivenciado e<br />

narrado pelas vozes de Maria Emília e <strong>da</strong> outra narradora, ausente <strong>da</strong> trama e sem nome.<br />

A narrativa compromete-se, de tal modo, com uma escrita literária que se quer ficcional,<br />

referencial e diferenciadora. Ademais, fazer constituir a si e a escrita de si, com esses<br />

traços, é um exercício de poder porque incide em tornar público não apenas a si como<br />

também o que escreve e o que deseja de si, pois cria possibili<strong>da</strong>des de ações de<br />

35 Para esse autor, “[...] A pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar,<br />

mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive <strong>da</strong><br />

própria impossibili<strong>da</strong>de de se estabilizar. Essa locali<strong>da</strong>de paradoxal, vamos chamá-la paratopia [...]”<br />

(MAINGUENEAU, 2001, p. 28).

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