Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ... Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
194 [...] As lágrimas incontroladas assaltavam o seu rosto, e o nariz inundava a boca com uma coriza insistente, as mãos de Maria Emília não tinham pressa em lavar tido aquilo, pois sabiam que seria inútil. Dissipava-se. O vestido de tecido fino azul-marinho deixava entrever pelo decote, pela tira direita que teimava em cair, o seio mole de negra – e pálido – cortado por veias verdes que nunca se mostravam [...] (SANTANA, 2004, p. 19) O deslocamento de vozes se estende em um eu, que se olha, e em uma ela, que a vê. As vozes narrativas se intercalam não somente para narrar uma história sonhada por Maria Emília, mas também para (des) tecer essa narradora personagem, que procura o mar, solitariamente, ao final da tarde, para buscar a si, conhecer-se e, igualmente, entender a outra que nela reside. [...] E agora, estou aqui, diante do mar sem respostas; diante do meu destino sem certezas; diante da minha fraqueza, querendo alguém pra dizer o caminho, a saída; diante da minha condição enferma de mulher sem fé, sem terços que amparem minha fragilidade milenar, minha existência de fêmea fraca, atemorizada diante da vida. Sou frágil, sou frágil, sim! E órfã! Como toda a gente humana. Se ao menos eu cresse... Talvez fosse menos só. Busco o mar e a solidão mais acesa; busco a mim mesma refletida nos raios mornos planos audaciosos comigo [...] (SANTANA, 2004, p. 21) Ao acordar do sonho-pesadelo, submersa por fortes movimentos de um mar revolto, Maria Emília, ainda sufocada, surpreende-se com algumas notícias de seu cotidiano que também é feito e inventado por ondas e um mar bastante bravio. [...] Aqui e ali, estou contaminada de imagens, atordoada com os astros que surgem e desaparecem como personagens de animação [...] [...] A notícia, a televisão, e eu babando; babando, como faço quando gozo. Agora, só havia a morte. Eu estava inserida violentamente para dentro do noticiário; expulsa da minha realidade; arregimentada para a virtualidade da distância das cenas. Sabia-me inteiramente viva, acesa, atingida. Era eu mais imagem a contaminar o meu universo turbulento de cenas [...] (SANTANA, 2004, p. 28-30) Pela televisão, é noticiada à narradora-personagem a tragédia – um homicídio – ocorrida com Otávio decorrente de sua traição: a personagem Raul assassina sua esposa (Adèle), na presença de seu amante: Otávio. Com a morte de sua rival, Maria Emília, além de traída, também estabelece o fim da sua relação amorosa e (re) inicia sua procura por ditos, entendimentos e leituras de si. Para tal intento, o conto termina apresentando um dinâmico deslocamento entre eu e ela, as vozes narrativas, que recorrem à filosofia de Jean Paul Sartre:
195 [...] Eu e minha atração por filosofia e minha ignorância diante de mim e de você. Meu adorável Otávio Augusto! [...] [...] [Maria Emília] Procura nas gavetas a velha revista com a entrevista de Sartre e vai recortando pedaços da memória [...] J.P.S. Eu penso que cada um poderia poder dizer, numa entrevista, o mais profundo de si. Para mim, o que vicia as relações entre as pessoas é que cada um conserva, na relação com o outro, alguma coisa de oculto, de secreto, não necessariamente para todos, mas para aquele com quem ele fala no dito momento [...] (SANTANA, 2004, p. 34-35) O sonho ficcional de Maria Emília cruza-se com fios, hipoteticamente referenciais, mas tanto quanto ficcionais, permutando entre o seu passado e o presente, entre os eu real e ficcional, evidenciando a relação do texto literário com o referente. A autora desse conto, em alguns momentos da entrevista, também se mostrou ansiosa por entender os pedaços de memórias que a constituem, tornando possível pensar sobre si. Em suas informações, ela demonstrou angústia e preocupação com rumos e alcances de suas identidades autoral e artística. Rita Santana, ao levar em conta, por exemplo, suas experiências e memórias como escritora pouco conhecida, e como atriz negra pouco valorizada, constatou que são esparsas as oportunidades de atuar profissional, regular e dignamente, com papéis que não sejam menores, subalternos e sempre relacionados à história da escravidão no Brasil. Para S. Santiago, a prática de escrita literária híbrida, que apresenta proximidades entre o real e o ficcional, dilui o distanciamento entre a autobiografia e a ficção. Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa. (SANTIAGO, 2008, p. 75). Constituir-se com a escrita e por ela se fazer conhecer, pensando e escrevendo, são ações que se tornam formas ficcionalizadas de arquivamento e de aparecimento, simultaneamente, do eu (Maria Emília), que se dá a ver, a voz narradora, e de ela, a voz supostamente ausente, e talvez também da autora de Medusas e Caravelas. Evidentemente que isto se opera sem essencializações da identificação entre Rita Santana e as narradoras, através de pedaços de memórias e fragmentados eu femininos, afugentando modos impositivos de naturalização de identidades. Se assim for, a
- Page 131 and 132: 143 [...] feita por negros ou desce
- Page 133 and 134: Que foram trancados Na trama da tra
- Page 135 and 136: portadores de saberes e culturas. R
- Page 137 and 138: A blusa e se pelou. O sinhô ficou
- Page 139 and 140: negros/as escritores/as que deixam
- Page 141 and 142: Sua coragem, sua beleza. O seu tale
- Page 143 and 144: 155 Este capítulo ainda discutiu s
- Page 145 and 146: 157 Liane Schneider, ao discutir so
- Page 147 and 148: si/nós como sujeitos que enunciam
- Page 149 and 150: 161 Sinto. Agora sinto qualquer coi
- Page 151 and 152: 163 3.2 Literatura de Escritoras Ne
- Page 153 and 154: Venho de umidades, morfos e orgias
- Page 155 and 156: Ferem-te com flechas encomendadas T
- Page 157 and 158: com as amarras da dominação e do
- Page 159 and 160: 171 A marca textual da literatura a
- Page 161 and 162: 173 Diante de tal contexto, se imp
- Page 163 and 164: 175 O Baobá, incontestavelmente, c
- Page 165 and 166: 177 O desejo de ter um Baobá, como
- Page 167 and 168: 179 Dentre os 70 poemas, em 16 dele
- Page 169 and 170: sobretudo, entre homens e mulheres
- Page 171 and 172: 183 Nessas histórias aparecem fios
- Page 173 and 174: 185 Meu querido, quem me ama? João
- Page 175 and 176: Ela escreve igualmente para descrev
- Page 177 and 178: 189 Lejeune também retoma a discus
- Page 179 and 180: suas recordações no recôndito de
- Page 181: com o já dito sobre ela para pross
- Page 185 and 186: deslocamento subjetivo e de ressign
- Page 187 and 188: personagem principal Marina, ou sej
- Page 189 and 190: 201 toda descalça, em vertigem. Ai
- Page 191 and 192: 203 carrancudo, o mundo me comia in
- Page 193 and 194: 205 ser como aquela. Nenhuma gota d
- Page 195 and 196: V CAPÍTULO MEMÓRIAS LITERÁRIAS D
- Page 197 and 198: instituem classificações, tais co
- Page 199 and 200: Perfumes e ervas para lavar Do Pai
- Page 201 and 202: 213 5.2 (Re) Significações de Mit
- Page 203 and 204: 215 Os mitos constituem, por conseg
- Page 205 and 206: 217 Ao pisar nas areias da Filha Do
- Page 207 and 208: Cajimbã, Tuaka, Trigu, Mamba, Male
- Page 209 and 210: que travam para sobreviverem e para
- Page 211 and 212: 223 Deixou-se ficar extasiado com a
- Page 213 and 214: historiador Pierre Nora (1997), em
- Page 215 and 216: Odé, bem como o instante do olhar
- Page 217 and 218: 229 [...] Arlinda penava e relembra
- Page 219 and 220: 231 Em Arlinda, presumo que divinda
- Page 221 and 222: CONSIDERAÇÕES FINAIS Preciso(amos
- Page 223 and 224: status da autoria. Mais ainda, for
- Page 225 and 226: 237 O olhar descritivo-interpretati
- Page 227 and 228: REFERÊNCIAS ADUN, Mel. Instante mu
- Page 229 and 230: BHABHA, Homi K. O local da cultura.
- Page 231 and 232: DELEUZE, Gilles. Foucault. São Pau
194<br />
[...] As lágrimas incontrola<strong>da</strong>s assaltavam o seu rosto, e o nariz inun<strong>da</strong>va a<br />
boca com uma coriza insistente, as mãos de Maria Emília não tinham pressa<br />
em lavar tido aquilo, pois sabiam que seria inútil. Dissipava-se. O vestido de<br />
tecido fino azul-marinho deixava entrever pelo decote, pela tira direita que<br />
teimava em cair, o seio mole de negra – e pálido – cortado por veias verdes<br />
que nunca se mostravam [...] (SANTANA, 2004, p. 19)<br />
O deslocamento de vozes se estende em um eu, que se olha, e em uma ela, que a<br />
vê. As vozes narrativas se intercalam não somente para narrar uma história sonha<strong>da</strong> por<br />
Maria Emília, mas também para (des) tecer essa narradora personagem, que procura o<br />
mar, solitariamente, ao final <strong>da</strong> tarde, para buscar a si, conhecer-se e, igualmente,<br />
entender a outra que nela reside.<br />
[...] E agora, estou aqui, diante do mar sem respostas; diante do meu destino<br />
sem certezas; diante <strong>da</strong> minha fraqueza, querendo alguém pra dizer o<br />
caminho, a saí<strong>da</strong>; diante <strong>da</strong> minha condição enferma de mulher sem fé, sem<br />
terços que amparem minha fragili<strong>da</strong>de milenar, minha existência de fêmea<br />
fraca, atemoriza<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Sou frágil, sou frágil, sim! E órfã! Como<br />
to<strong>da</strong> a gente humana. Se ao menos eu cresse... Talvez fosse menos só. Busco<br />
o mar e a solidão mais acesa; busco a mim mesma refleti<strong>da</strong> nos raios mornos<br />
planos au<strong>da</strong>ciosos comigo [...] (SANTANA, 2004, p. 21)<br />
Ao acor<strong>da</strong>r do sonho-pesadelo, submersa por fortes movimentos de um mar<br />
revolto, Maria Emília, ain<strong>da</strong> sufoca<strong>da</strong>, surpreende-se com algumas notícias de seu<br />
cotidiano que também é feito e inventado por on<strong>da</strong>s e um mar bastante bravio.<br />
[...] Aqui e ali, estou contamina<strong>da</strong> de imagens, atordoa<strong>da</strong> com os astros que<br />
surgem e desaparecem como personagens de animação [...]<br />
[...] A notícia, a televisão, e eu babando; babando, como faço quando gozo.<br />
Agora, só havia a morte. Eu estava inseri<strong>da</strong> violentamente para dentro do<br />
noticiário; expulsa <strong>da</strong> minha reali<strong>da</strong>de; arregimenta<strong>da</strong> para a virtuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
distância <strong>da</strong>s cenas. Sabia-me inteiramente viva, acesa, atingi<strong>da</strong>. Era eu mais<br />
imagem a contaminar o meu universo turbulento de cenas [...] (SANTANA,<br />
2004, p. 28-30)<br />
Pela televisão, é noticia<strong>da</strong> à narradora-personagem a tragédia – um homicídio –<br />
ocorri<strong>da</strong> com Otávio decorrente de sua traição: a personagem Raul assassina sua esposa<br />
(Adèle), na presença de seu amante: Otávio. Com a morte de sua rival, Maria Emília,<br />
além de traí<strong>da</strong>, também estabelece o fim <strong>da</strong> sua relação amorosa e (re) inicia sua procura<br />
por ditos, entendimentos e leituras de si. Para tal intento, o conto termina apresentando<br />
um dinâmico deslocamento entre eu e ela, as vozes narrativas, que recorrem à filosofia<br />
de Jean Paul Sartre: