Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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estabelecimento de relações consigo mesmo e, talvez, com João. Tais procedimentos,<br />
certamente questionam o estado de doidice que lhe conferiram, pois, ao invés de<br />
alienação mediante os mundos que vê pela janela do quarto, ela, “conscientemente”,<br />
revolve os fatos, enfrentando-os (se).<br />
188<br />
Após recor<strong>da</strong>r diversos instantes dispersos de conversas com o ex-marido, a<br />
história finaliza quando Ma<strong>da</strong>lena volta a pensar sobre si e sobre aquilo que a deixou<br />
débil: a sua existência em interação e em tensão com o mundo e com os outros.<br />
E o quarto? Quem recebe, entre as mãos, os meus peitos é quem me ama?<br />
Quem observa os meus defeitos e os recebe é quem me ama? Lave os pratos,<br />
Ma<strong>da</strong>lena, vá rezar. E o meu quarto? Por isso tão doí<strong>da</strong> e tão doi<strong>da</strong>. Por isso<br />
tão doi<strong>da</strong>. Eu, Ma<strong>da</strong>lena, doi<strong>da</strong>. Eu quis ser em demasia. Quis existir<br />
demais.<br />
O amanhecer aqui... (SANTANA, 2004, p. 42)<br />
Ao configurar o ato de narrar-se, Ma<strong>da</strong>lena, em suas ações e, quiçá a autora do<br />
conto, indicam, na busca de relação consigo mesma, a compreensão <strong>da</strong> escrita como um<br />
exercício político. Assim, a narrativa, como escrita de si, pode aju<strong>da</strong>r a construir a<br />
cultura de si (FOUCAULT, 1985), como prática de autorreflexão e de autoconstituição,<br />
visto que Ma<strong>da</strong>lena pensa sobre o que faz e já realizou e, em especial, sobre o que faz<br />
consigo mesma e sobre o que permitiu que João fizesse com ela.<br />
Sem o intuito preciso de cumprir com o pacto referencial, defendido por Phillipe<br />
Lejeune (2006), mas sem se afastar de <strong>da</strong>dos autobiográficos, a voz narradora-<br />
personagem conta sobre noites e amanheceres vividos e vistos, deixando ao leitor o<br />
papel de operar a construção de sentidos e interpretações, conjecturas do verossímil e do<br />
fictício presentes em suas narrativas. Talvez, no que tange às inquietações e<br />
inconformismo de Ma<strong>da</strong>lena, em alguma medi<strong>da</strong>, seja possível associar à voz <strong>da</strong><br />
escritora-personagem, a voz autoral de quem assina o conto, permitindo compreender a<br />
sua tessitura entrelaça<strong>da</strong> por fios autobiográficos e ficcionais. Silviano Santiago, em<br />
Meditação sobre o ato de criar, caracteriza a marca dessa escrita como <strong>texto</strong> híbrido,<br />
porque, segundo ele,<br />
Com a exclusão <strong>da</strong> matéria que constitui o meramente confessional, o <strong>texto</strong><br />
híbrido, constituído pela contaminação <strong>da</strong> autobiografia pela ficção – e <strong>da</strong><br />
ficção pela autobiografia –, marca a inserção do tosco e requintado material<br />
subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta<br />
de seu anárquico potencial criativo. (SANTIAGO, 2008, p. 174)