Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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Como arte de viver e como ascese, a técnica de si implica, por conseguinte, aprendizagens, nos seguintes exercícios: meditar, escrever e reler sobre si, conforme compunha o pensamento da escrita de si na cultura filosófica antes do cristianismo (FOUCAULT, 1997, p. 132). 184 As narrativas afrofemininas, em evidência neste tópico, podem ser escritas de si/nós, como práticas discursivas, longe de uma escrita intimista, semelhante aos diários, mas histórias que indiquem autoformação, dando a conhecer a si/nós. Com um tom de discurso autobiográfico e, simultaneamente, ficcional, Mel Adún e Rita Santana, ao revisitar suas experiências, pelo exercício da memória, criam textos literários que tenham sentidos para si e para outras mulheres e, ao mesmo tempo, possam atribuir significações para o vivido e para as elaborações do presente. No conto O quarto, de Rita Santana (2004), Madalena, que é uma personagem escritora, descreve o quarto onde está encarcerada em um sanatório, devido ao seu estado de loucura. Ao longo da narrativa, ela também apresenta ao seu ex-marido, João, suas opiniões sobre a separação e a sua insanidade mental. O desejo ficou amarrado ao pé da cama, desejo de brincar com o meu mundo de significações pessoais, fazer daquele espaço um recanto de relíquias. Eu não conseguia, os quartos são adeptos da antecedência. Tudo era o vazio das paredes. Comecei a perder o pé das coisas ali, nas paredes vazias do meu quarto. As vozes daqueles dias com João me perseguem até hoje, eram vozes que viviam voando da minha boca com asas de libélulas [...] (SANTANA, 2004, p. 42) João e Madalena, em toda a narrativa, não parecem nomes próprios isentos de saberes já ditos, pois podem ter informações anteriores sobre eles postas como verdades únicas. Ao final, tal inferência parece ter pertinência, quando a escritora-personagem faz uma provocação a si mesma e a João, fazendo alusões às personagens bíblicas como João, considerado o evangelista do amor, que anuncia Jesus como aquele em que o Verbo se fez carne, o qual foi gerado pela palavra. E Madalena, que tanto poderá ser a seguidora e fiel a Jesus, quanto a outra, a pecadora. Ambas poderão ser referências para a Madalena escritora, a qual também se apresenta como uma mulher de tantos eus e tantas paisagens. Continuo grávida de Deus, por isso ainda ouso o verbo. Em João ainda encontro respostas. Quem recebe meus preceitos e os observa é quem me ama [...]
185 Meu querido, quem me ama? João, o preferido entre os preferidos, quem me ama? Quem recebe os meus preceitos e os observa é quem me ama? (SANTANA, 2004, p. 42) A loucura, no conto, também aparece tensionada por saberes, ditos e escritos. A doidice de Madalena é consequência de seu pensar sobre si e de possíveis desentendimentos com João, mas é também estratégia para (des) construir interpretações sobre si e pode ser uma das razões que justifica o autoenfrentamento. O estatuto de loucura talvez seja conferido à Madalena por ela preferir viajar com as asas de libélulas na relação com João a ficar presa às amarras convencionais da relação a dois ou a permanecer ouvindo os ecos das conversas com ele. A liberdade é outro tema tensionado no conto, pois a restrição de Madalena não indica apenas um afastamento necessário das pessoas que lhe cercam, sobretudo de João, e de grupos com os quais se relaciona. O cerceamento de seu direito de ir e vir é muito mais que um estado de reclusão e de retenção de deslocamentos. Estar enclausurada em um quarto de sanatório permite a Madalena conviver mais com João, através de lembranças e memórias, já que não foi possível permanecer com ele. Significa poder pensar mais sobre as diversas formas de tolhimento e sobre aquelas práticas que lhe mobilizam, ainda que em pensamento, de dentro do quarto, para viver livre de aprisionamentos relacionados à sua condição de mulher e à constituição de si. Estou aqui, num quarto todo limpo e luminoso. O branco grudado nas paredes sugere um ambiente de luz infinda. Todas as manhãs crepitam crepúsculos inóspitos, e o primeiro pensamento que me vem é de infelicidade. Mesmo no desespero do sempre, eu desperto e luto, luto contra esta sensação advinda de lonjuras, onde não chego nunca, em mim talvez, ou no mundo que é mais vasto e pode sediar agruras e agouros. Minhas armas são afirmações declaradas de equidade. (SANTANA, 2004, p. 42) A condição de alienação lhe permite desvendar seus mundos de significações e buscar a si mesma, pois a razão, para tal intuito, poderá ser ineficaz e inoperante. Ao que parece, a partir de seus pensamentos, estar débil lhe propicia viver em estado de liberdade, afastada de mundos que, quase em vão, ela luta desesperadamente para encontrar. Permanecer em um quarto, privada de liberdade, para Madalena, é uma oportunidade de brincar com seu mundo de significações pessoais. O estado de loucura, que lhe foi atribuído pelos ditos normais, sobretudo João, possivelmente, justifica seus desejos, inquietações, inconformismos e comportamentos, uma vez que sua deficiência mental aparece após o aprisionamento de seus desejos, ou seja, após a sua chegada ao
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Como arte de viver e como ascese, a técnica de si implica, por conseguinte,<br />
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compunha o pensamento <strong>da</strong> escrita de si na cultura filosófica antes do cristianismo<br />
(FOUCAULT, 1997, p. 132).<br />
184<br />
As narrativas afrofemininas, em evidência neste tópico, podem ser escritas de<br />
si/nós, como práticas discursivas, longe de uma escrita intimista, semelhante aos diários,<br />
mas histórias que indiquem autoformação, <strong>da</strong>ndo a conhecer a si/nós. Com um tom de<br />
discurso autobiográfico e, simultaneamente, ficcional, Mel Adún e <strong>Rita</strong> Santana, ao<br />
revisitar suas experiências, pelo exercício <strong>da</strong> memória, criam <strong>texto</strong>s literários que<br />
tenham sentidos para si e para outras mulheres e, ao mesmo tempo, possam atribuir<br />
significações para o vivido e para as elaborações do presente.<br />
No conto O quarto, de <strong>Rita</strong> Santana (2004), Ma<strong>da</strong>lena, que é uma personagem<br />
escritora, descreve o quarto onde está encarcera<strong>da</strong> em um sanatório, devido ao seu<br />
estado de loucura. Ao longo <strong>da</strong> narrativa, ela também apresenta ao seu ex-marido, João,<br />
suas opiniões sobre a separação e a sua insani<strong>da</strong>de mental.<br />
O desejo ficou amarrado ao pé <strong>da</strong> cama, desejo de brincar com o meu<br />
mundo de significações pessoais, fazer <strong>da</strong>quele espaço um recanto de<br />
relíquias. Eu não conseguia, os quartos são adeptos <strong>da</strong> antecedência. Tudo<br />
era o vazio <strong>da</strong>s paredes. Comecei a perder o pé <strong>da</strong>s coisas ali, nas paredes<br />
vazias do meu quarto. As vozes <strong>da</strong>queles dias com João me perseguem até<br />
hoje, eram vozes que viviam voando <strong>da</strong> minha boca com asas de libélulas<br />
[...] (SANTANA, 2004, p. 42)<br />
João e Ma<strong>da</strong>lena, em to<strong>da</strong> a narrativa, não parecem nomes próprios isentos de<br />
saberes já ditos, pois podem ter informações anteriores sobre eles postas como ver<strong>da</strong>des<br />
únicas. Ao final, tal inferência parece ter pertinência, quando a escritora-personagem faz<br />
uma provocação a si mesma e a João, fazendo alusões às personagens bíblicas como<br />
João, considerado o evangelista do amor, que anuncia Jesus como aquele em que o<br />
Verbo se fez carne, o qual foi gerado pela palavra. E Ma<strong>da</strong>lena, que tanto poderá ser a<br />
seguidora e fiel a Jesus, quanto a outra, a pecadora. Ambas poderão ser referências para<br />
a Ma<strong>da</strong>lena escritora, a qual também se apresenta como uma mulher de tantos eus e<br />
tantas paisagens.<br />
Continuo grávi<strong>da</strong> de Deus, por isso ain<strong>da</strong> ouso o verbo. Em João ain<strong>da</strong><br />
encontro respostas. Quem recebe meus preceitos e os observa é quem me<br />
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