Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
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aparentemente, a Negra Fulô apenas cumpre as ordens recebidas de sua senhora. Sua voz aparece só como contadora de parlendas. 134 Além de subserviente, Fulô foge aos padrões morais da Casa Grande de seus senhores: é uma ladra. Ela rouba os pertences da sua senhora e, mais ainda, o próprio senhor, prevalecendo uma estereotipia negativa. Maria Nazareth S. Fonseca, ao discutir sobre os paradoxos da poesia modernista brasileira, que se quer nacional, analisa esse poema no que se referem às características psicossociais de faces negras. Para ela, essa palavra poética não se afasta de marcas estigmatizadas e de um lugar determinado ideologicamente. No poema de Jorge de Lima, o deslocamento pretendido não permite que sejam ultrapassados os clichês corriqueiros, a estereotipia que inscreve no corpo do negro as representações de um imaginário racista [...] No silenciamento da voz negra que transita nos versos do poema apenas como objeto sensual, Fulô é citada num discurso que inibe o seu dizer, ou melhor, que só permite que ele se mostre em um horizonte em que as coisas estão sempre num mesmo lugar. Não é de se admirar, portanto, que o poema de Jorge de Lima, querendo tirar o negro de um espaço cultural que o vê enquanto “excrescência” ou deformação, ainda fortalece estereótipos que o paralisam na cor de sua pele, em traços que fazem dele objeto, sempre objeto exótico e erótico para o deleite do senhor branco. (FONSECA, 2002, p. 195) A obra de Jorge Amado também não está isenta dessa apropriação de estereótipos que geram preconceitos contra personagens femininas negras, porque também se apresentam como objetos exóticos e sedutores, por meio de discursos de baianidades e projetos de turismo. Suas novelas inclusive se nutrem de tipos imóveis baseados em imaginários racistas e em traços de relações étnico-raciais e de gênero pouco positivados. Em Jubiabá (1935), por exemplo, há representações de luta de classes e de suposta conscientização racial. Embora parte da crítica da época tenha considerado que essa obra inaugurara um novo lugar para o personagem negro, longe de estereótipos negativos, Antonio Balduíno, protagonista, está repleto de traços estigmatizados do negro urbanizado e à margem da sociedade: pobre, morador de morro, malandro, órfão de pai e mãe etc. Rosenda Rosedá, personagem negra, par de Balduíno, é muito sensual, o que lhe confere o atributo de ser uma descendente legítima de Rita Baiana. Ela se sente fortemente atraída por homens brancos. É vaidosa: alisa o cabelo e clareia a pele com pó compacto. É ambiciosa: utiliza sua sexualidade para conquistar a ascensão social. Ao final da história, torna-se uma prostituta.
135 Já a infantilizada e instintiva personagem Gabriela, de Gabriela, cravo e canela (1958), é uma mulher bastante sedutora, mas não é ambiciosa. É a mulata tradicional: irreverente e volúvel. Ela chega a Ilhéus como cozinheira e amante do árabe Nacib. Ela tem relações sexuais com diferentes homens; não tem limites e é insaciável em sua libido. Tem relações casuais, sem compromissos matrimoniais, por isso é figurada como símbolo do amor livre. Em Tenda dos milagres (1969), retratam-se as relações raciais, a partir dos ideais de branqueamento, de democracia racial e de mestiçagem, postulados por Gilberto Freire (1933). Ana Mercedes, personagem secundária, é negra. Ser fugaz é o seu atributo, a partir disso desfila na trama narrada. Ela é assim descrita pelo narrador: [...] a mini-saia a exibir-lhe as colunas morenas das coxas, o olhar noturno, o sorriso de lábios semi-abertos, um tanto grossos, os dentes ávidos e o umbigo à mostra, toda ela de oiro [...] [...] andar tão de dança, corpo assim flexível, rosto de inocência e malícia branca negra mulata [...] [...] mulata de [...] ouro puro da cabeça aos pés, carne perfumada de alecrim, riso de cristal, construção de dengue e de requebro [...] (AMADO, 1986 p. 56-57) Ana Mercedes é a mestiça, projetada por Gilberto Freire (1933), de quem o autor do romance segue mais uma vez as abordagens, embora os traços de sua pretidão predominem. Como se constata, a representação do corpo-espetáculo, explicada por M. Mafesoli (1996), até agora retratada nas obras analisadas, permanece inalterável. Seu corpo, que mais se parece com carne perfumada, exibe alegria, sensualidade, facerice, a aparência de uma sedutora irresistível – o olhar noturno – e seu gingado. Ela é jornalista com nível superior. Com o perfil de profissionalização e formação intelectual, Ana Mercedes difere de Rita Baiana, Isaura, Vidinha e da Negra Fulô, contudo isso pouco vale para a conquista de seus objetivos. Para alcançá-los ela tem que tirar proveito de seu físico e de sua sensualidade. O narrador declara que ela trabalha no Jornal da cidade e que lá: [...] dos donos aos porteiros, passando pela redação, pela administração e pelas oficinas, enquanto ela ali trafegou, saveiro em navegação de mar revolto, nenhum daqueles pulhas teve outro pensamento, outro desejo senão naufragá-la num dos macios sofás da sala da diretoria [...] nas vacilantes mesas da redação e da gerência, em cima da velhíssima impressora, das resmas de papel ou de sórdido piso de graça e porcaria; se Ana Mercedes estendesse seu corpo sobre o solo de imundície, em leito de rosas o transformaria, chão bendito [...] (AMADO, 1986, p. 57)
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Já a infantiliza<strong>da</strong> e instintiva personagem Gabriela, de Gabriela, cravo e canela<br />
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irreverente e volúvel. Ela chega a Ilhéus como cozinheira e amante do árabe Nacib. Ela<br />
tem relações sexuais com diferentes homens; não tem limites e é insaciável em sua<br />
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símbolo do amor livre.<br />
Em Ten<strong>da</strong> dos milagres (1969), retratam-se as relações raciais, a partir dos<br />
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Gilberto Freire (1933). <strong>Ana</strong> Mercedes, personagem secundária, é negra. Ser fugaz é o<br />
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[...] a mini-saia a exibir-lhe as colunas morenas <strong>da</strong>s coxas, o olhar noturno, o<br />
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umbigo à mostra, to<strong>da</strong> ela de oiro [...]<br />
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branca negra mulata [...]<br />
[...] mulata de [...] ouro puro <strong>da</strong> cabeça aos pés, carne perfuma<strong>da</strong> de alecrim,<br />
riso de cristal, construção de dengue e de requebro [...] (AMADO, 1986 p.<br />
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<strong>Ana</strong> Mercedes é a mestiça, projeta<strong>da</strong> por Gilberto Freire (1933), de quem o autor<br />
do romance segue mais uma vez as abor<strong>da</strong>gens, embora os traços de sua pretidão<br />
predominem. Como se constata, a representação do corpo-espetáculo, explica<strong>da</strong> por M.<br />
Mafesoli (1996), até agora retrata<strong>da</strong> nas obras analisa<strong>da</strong>s, permanece inalterável. Seu<br />
corpo, que mais se parece com carne perfuma<strong>da</strong>, exibe alegria, sensuali<strong>da</strong>de, facerice, a<br />
aparência de uma sedutora irresistível – o olhar noturno – e seu gingado. Ela é<br />
jornalista com nível superior. Com o perfil de profissionalização e formação intelectual,<br />
<strong>Ana</strong> Mercedes difere de <strong>Rita</strong> Baiana, Isaura, Vidinha e <strong>da</strong> Negra Fulô, contudo isso<br />
pouco vale para a conquista de seus objetivos. Para alcançá-los ela tem que tirar<br />
proveito de seu físico e de sua sensuali<strong>da</strong>de. O narrador declara que ela trabalha no<br />
Jornal <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e que lá:<br />
[...] dos donos aos porteiros, passando pela re<strong>da</strong>ção, pela administração e<br />
pelas oficinas, enquanto ela ali trafegou, saveiro em navegação de mar<br />
revolto, nenhum <strong>da</strong>queles pulhas teve outro pensamento, outro desejo senão<br />
naufragá-la num dos macios sofás <strong>da</strong> sala <strong>da</strong> diretoria [...] nas vacilantes<br />
mesas <strong>da</strong> re<strong>da</strong>ção e <strong>da</strong> gerência, em cima <strong>da</strong> velhíssima impressora, <strong>da</strong>s<br />
resmas de papel ou de sórdido piso de graça e porcaria; se <strong>Ana</strong> Mercedes<br />
estendesse seu corpo sobre o solo de imundície, em leito de rosas o<br />
transformaria, chão bendito [...] (AMADO, 1986, p. 57)