Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ... Ana Rita Santigo da Silva - texto.pdf - RI UFBA - Universidade ...
Naquelas 4 horas tapo o buraco. Com o nascer do dia volto a ser vazia, mas em paz. Esperando de unhas bem feitas o próximo... Não quero ser taxada de santa nem biscate. Quero ser somente o que sou agora. Amanhã sentirei saudades Como senti ontem de mim mesma quando morri. Aprendi a saborear todas as vezes que morro. Morro em cada cama que deito, Mas sou cristo todas as manhãs seguintes. (ADÚN, 2006, p. 186) 114 Nesses versos, um eu poético feminino, caracterizado pela ousadia e autonomia, escolhe sentir, e não só ser dona de si, tornando-se senhora de seu querer e de seu prazer. Nada mais pretende senão nascer, igualmente a cristo e ao novo dia, após cada morte, isto é, depois do gozo. Livre para ser e vivenciar os múltiplos e breves instantes de satisfação sexual, o eu segue certo de que, ao morrer e diante de jogos das relações e afetividades, oportuniza-se a viver com alteridade e a elaborar várias significações de si. Novamente aparece na poesia de Mel Adún o riso como igualmente se apresenta em O rei sem coroa. Nesse poema, o riso se define como uma postura de reação da voz poética, ao se encontrar com um homem/deus africano, que exibe sua majestade, honradez e imponência. Já, em Instante mulher, o riso expressa o contentamento dos breves e fugazes momentos de prazer vividos pela voz feminina, mostrando-se livre e “descomprometida” com os desejos sexuais do seu parceiro e, quiçá, com relações afetivas duradouras. Sem compromisso com o depois, com verdades, atitudes sérias e sempre disponível ao instante, ela segue com o encontro consigo mesma à procura e à espera de outras boas risadas e trepadas, piadas e falsos euteamos. A ausência do sorriso da Negra bonita, de Solano Trindade, é expressão de tristeza e de abandono. As risadas da mulher, que vive intensa e alegremente seus instantes de amor, indicam, no entanto, decisão por viver sozinha e livremente e, ao mesmo tempo, pelos encontros amorosos ocasionais. Sem preocupações com imagens que cristalizem seu perfil de santa ou biscate, ela prossegue em busca de si mesma e do próximo que lhe fará sorrir, preparando-se para morrer em cada cama que deita e, assim, assemelhar-se a cristo. Essas figurações de Negra bonita e de Instante mulher apontam outras faces de personagens negras femininas que desestabilizam aquelas de Gregório de Matos, re- atualizadas, como assegurou David Brookshaw (1983), por José de Alencar, Bernardo Guimarães, Aluísio de Azevedo, Jorge Amado e por outros escritores. Em Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida, por exemplo, o narrador, ao
descrever a personagem negra, restringe a sua descrição aos atributos e aos elogios físicos. Embora não a censure, não a isenta de amoralismo e irresponsabilidade. 115 [...] Vidinha era uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce, afinada [...] Com uma risada prolongada e sonora, e com um certo caído de cabeça para trás, talvez graciosos se não tivesse muito afetado. Naquela família, havia três primos e três primas, e se agora acrescentarmos que moravam todos juntos, (o leitor) deve ter cismado alguma cousa a respeito. Três primos e três primas, morando na mesma casa, todos moços... não há nada mais natural: um primo para cada prima, e está tudo arranjado. [...] O amigo de Leonardo tomara conta de uma das primas, isto é, o excesso de um primo [...] Saiba-se que havia dois primos pretendentes e uma só prima e essa era Vidinha, a mais bonita de todas; sabia-se mais que era um atendido e outro desprezado [...] Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e leve. [...] (ALMEIDA, 1980, p. 73) Mais uma vez se destaca um perfil físico, que mais serve para caracterizar a personagem com os estereótipos de uma mulatinha, tendo em vista seu poder de sedução do que para descrevê-la em suas várias dimensões humanas e psicossociais. Além dos traços físicos exuberantes, os comportamentos, que lhe são conferidos, pouco lhe qualificam. Ela é volúvel, por isso seria talvez capaz de ficar amorosamente com seus dois primos. A mulatinha era a mais bonita das três primas, afirmou o narrador, mas moralmente não era tão confiável, pois ele insinua que a referida rapariga tivesse atitudes e procedimentos propensos à fugacidade, advindos de alguns de seus traços psicológicos: ser movediça e leve. Vidinha tinha uma fala descansada e uma risada longa e escancarada a ponto do narrador ponderar que esse exagero ameaça o seu jeito gracioso, porque era afetado, ou seja, indicador de desequilíbrio. Seu riso não sugere ironia ou satisfação e liberdade, como em O rei sem coroa e em Instante mulher, ao contrário, aponta uma postura exagerada, lascívia e vulgaridade. O narrador apresenta a mulatinha destituída de repertórios culturais de suas referências étnico-raciais, embora seus fenótipos, descritos por ele, sugiram afrodescendências. Neste sentido, tal descrição diferencia-se terminantemente daquelas que Luis Gama, escritor negro do século XIX, faz de suas musas. Esse autor, no livro Primeiras trovas burlescas de Getulino [1859], também poeta satírico, tal qual Gregório de Matos, conduz o leitor ao encontro de uma voz negra que ironiza aqueles que se pretendiam brancos e procura criar para si uma identidade local com feições africanas – Orfeu de carapinha –, que troca a lira pela marimba e pela cabaça de urucungo e é o
- Page 51 and 52: Fotografia de Ana Rita Santiago da
- Page 53 and 54: 65 [...] minha mãe sempre tentou m
- Page 55 and 56: 67 Felisberto. Foi ótimo! Mas que
- Page 57 and 58: ausência de signos e indumentária
- Page 59 and 60: outras autoras em evidência neste
- Page 61 and 62: Do contato, de reflexões sobre ra
- Page 63 and 64: De onde vinham.... Vinham de longe,
- Page 65 and 66: 1.1.5 Urânia Munzanzu: Uma escrito
- Page 67 and 68: de “verdades” moralizantes, rec
- Page 69 and 70: A voz de mulher preta não tem iden
- Page 71 and 72: Essa preocupação de Urânia Munza
- Page 73 and 74: Lita Passos, como é conhecida, enq
- Page 75 and 76: Nesse poema, o sujeito poético gar
- Page 77 and 78: leitor e difundir suas produções
- Page 79 and 80: Capa do livro Poemas de Verão de F
- Page 81 and 82: na luta incessante, na chama a crep
- Page 83 and 84: Iansã, além de curá-la, acolhe-a
- Page 85 and 86: Prontas para dar seu bote (agarro s
- Page 87 and 88: Mikhail Bakhtin (1993, p. 401), ess
- Page 89 and 90: 101 ao planeta Ignum. Cantem! Arran
- Page 91 and 92: pretendem desestabilizar discursos
- Page 93 and 94: marido, ficando “[...] quieta, se
- Page 95 and 96: embora haja uma intensa fascinaçã
- Page 97 and 98: ambientes e segmentos literários,
- Page 99 and 100: Também a violeta é flor [...], Qu
- Page 101: Logo se encontra com Você uma negr
- Page 105 and 106: será festejada em meios a danças,
- Page 107 and 108: Brilhavam raios de amor. Ledo o ros
- Page 109 and 110: passiva de Isaura. Remetem aos acon
- Page 111 and 112: Posição de sentido, verdade! Bran
- Page 113 and 114: Quando não mais houver Quem fale?
- Page 115 and 116: 127 toda, como se fosse afundando n
- Page 117 and 118: poética que insiste em afirmar a t
- Page 119 and 120: marcas de referencialidades afrobra
- Page 121 and 122: sua senhora, entretanto é inapta a
- Page 123 and 124: 135 Já a infantilizada e instintiv
- Page 125 and 126: personagens aparecem somente como u
- Page 127 and 128: em entrevista, no início da pesqui
- Page 129 and 130: 141 A conformação teórica da lit
- Page 131 and 132: 143 [...] feita por negros ou desce
- Page 133 and 134: Que foram trancados Na trama da tra
- Page 135 and 136: portadores de saberes e culturas. R
- Page 137 and 138: A blusa e se pelou. O sinhô ficou
- Page 139 and 140: negros/as escritores/as que deixam
- Page 141 and 142: Sua coragem, sua beleza. O seu tale
- Page 143 and 144: 155 Este capítulo ainda discutiu s
- Page 145 and 146: 157 Liane Schneider, ao discutir so
- Page 147 and 148: si/nós como sujeitos que enunciam
- Page 149 and 150: 161 Sinto. Agora sinto qualquer coi
- Page 151 and 152: 163 3.2 Literatura de Escritoras Ne
Naquelas 4 horas tapo o buraco.<br />
Com o nascer do dia volto a ser vazia, mas em paz.<br />
Esperando de unhas bem feitas o próximo...<br />
Não quero ser taxa<strong>da</strong> de santa nem biscate.<br />
Quero ser somente o que sou agora.<br />
Amanhã sentirei sau<strong>da</strong>des<br />
Como senti ontem de mim mesma quando morri.<br />
Aprendi a saborear to<strong>da</strong>s as vezes que morro.<br />
Morro em ca<strong>da</strong> cama que deito,<br />
Mas sou cristo to<strong>da</strong>s as manhãs seguintes. (ADÚN, 2006, p. 186)<br />
114<br />
Nesses versos, um eu poético feminino, caracterizado pela ousadia e autonomia,<br />
escolhe sentir, e não só ser dona de si, tornando-se senhora de seu querer e de seu<br />
prazer. Na<strong>da</strong> mais pretende senão nascer, igualmente a cristo e ao novo dia, após ca<strong>da</strong><br />
morte, isto é, depois do gozo. Livre para ser e vivenciar os múltiplos e breves instantes<br />
de satisfação sexual, o eu segue certo de que, ao morrer e diante de jogos <strong>da</strong>s relações e<br />
afetivi<strong>da</strong>des, oportuniza-se a viver com alteri<strong>da</strong>de e a elaborar várias significações de si.<br />
Novamente aparece na poesia de Mel Adún o riso como igualmente se apresenta<br />
em O rei sem coroa. Nesse poema, o riso se define como uma postura de reação <strong>da</strong> voz<br />
poética, ao se encontrar com um homem/deus africano, que exibe sua majestade,<br />
honradez e imponência. Já, em Instante mulher, o riso expressa o contentamento dos<br />
breves e fugazes momentos de prazer vividos pela voz feminina, mostrando-se livre e<br />
“descomprometi<strong>da</strong>” com os desejos sexuais do seu parceiro e, quiçá, com relações<br />
afetivas duradouras. Sem compromisso com o depois, com ver<strong>da</strong>des, atitudes sérias e<br />
sempre disponível ao instante, ela segue com o encontro consigo mesma à procura e à<br />
espera de outras boas risa<strong>da</strong>s e trepa<strong>da</strong>s, pia<strong>da</strong>s e falsos euteamos.<br />
A ausência do sorriso <strong>da</strong> Negra bonita, de Solano Trin<strong>da</strong>de, é expressão de<br />
tristeza e de abandono. As risa<strong>da</strong>s <strong>da</strong> mulher, que vive intensa e alegremente seus<br />
instantes de amor, indicam, no entanto, decisão por viver sozinha e livremente e, ao<br />
mesmo tempo, pelos encontros amorosos ocasionais. Sem preocupações com imagens<br />
que cristalizem seu perfil de santa ou biscate, ela prossegue em busca de si mesma e do<br />
próximo que lhe fará sorrir, preparando-se para morrer em ca<strong>da</strong> cama que deita e,<br />
assim, assemelhar-se a cristo.<br />
Essas figurações de Negra bonita e de Instante mulher apontam outras faces de<br />
personagens negras femininas que desestabilizam aquelas de Gregório de Matos, re-<br />
atualiza<strong>da</strong>s, como assegurou David Brookshaw (1983), por José de Alencar, Bernardo<br />
Guimarães, Aluísio de Azevedo, Jorge Amado e por outros escritores. Em Memórias de<br />
um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almei<strong>da</strong>, por exemplo, o narrador, ao