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6Sou, então, pintura.pdf - Repositório da Universidade Federal ...

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* (Ibid.: 122-3)<br />

136<br />

metamorfosearam nos ciclistas (cf. a série Ciclistas no Parque<br />

<strong>da</strong> Redenção, do fim dos anos 1980, início dos anos 1990)<br />

como representação do deslocamento. No despojamento do<br />

entorno de No vento e na terra I, que acolhe apenas o mínimo<br />

de elementos capazes de transformar em imagens as referências<br />

<strong>da</strong> memória – a vastidão do espaço, a bicicleta –, o descampado<br />

volta a acolher o homem em que<strong>da</strong>, no tempo de<br />

espera <strong>da</strong> <strong>pintura</strong> menos empasta<strong>da</strong>, menos brusca. A memória<br />

toma o pincel: “[...] como se eu mergulhasse as mãos<br />

na terra, como se eu quisesse reencontrar os meus brinquedos,<br />

os meus carretéis que estavam sepultados em meu pátio<br />

de terra bati<strong>da</strong>” * . O movimento <strong>da</strong> mão no pincel se acelera,<br />

hesita, percorre to<strong>da</strong>s as direções para envolver também a<br />

mim no torvelinho. O cansaço abate a todos, caímos. Desaceleram-se<br />

todos os movimentos. Tempo de espera, tempo que<br />

precede o gesto, expectativa <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça. Meu olhar de espectador<br />

é a forma de reter e retar<strong>da</strong>r a espera, para compreender<br />

que essa paixão constituí<strong>da</strong> de semas <strong>da</strong> negação é<br />

a forma mesma de resistir à destituição de si. Apegando-se à<br />

matéria <strong>da</strong> <strong>pintura</strong> como único solo possível, o gesto de se<br />

deitar não é mais a que<strong>da</strong>, a desistência, mas o acolhimento<br />

do sujeito na cor, na luz, na superfície macia do linho.<br />

Dessa espera acolhedora saem, <strong>então</strong>, as figuras espectrais<br />

de Solidão, que clareiam a paleta, tornam mais rala a tinta e<br />

evanescente o fundo. Não há mais céu nem terra, há o espaço<br />

<strong>da</strong> tela tomado por formas fugidias de cores indefini<strong>da</strong>s que<br />

passam, levanta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> espera, do chão, do descampado. Vão<br />

para onde? Movem-se <strong>da</strong> direita para a esquer<strong>da</strong> e vão ganhando<br />

olhos – encobertos, embaçados, logo descobertos –<br />

que me encaram e me convi<strong>da</strong>m a entrar. Pois a vi<strong>da</strong> só existe<br />

na tela, na <strong>pintura</strong>, e somos <strong>então</strong> todos os homens que<br />

passamos agora. Esse auto-retrato sem nome é também meu,<br />

é do pintor, é <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de inteira. É de Rembrandt e é de<br />

Iberê: tudo o que pinto são auto-retratos, “sou, <strong>então</strong>, <strong>pintura</strong>” 3 .<br />

3 A citação é do depoimento de Iberê Camargo a Lisette Lagnado: “Como<br />

modelo me transmuto em forma. Sou, <strong>então</strong>, <strong>pintura</strong>. Ao me retratar, gravo<br />

minha imagem no vão desejo de permanecer, de fugir ao tempo que apaga os<br />

rastros. O auto-retrato é uma introspecção, um olhar sobre si mesmo”. Cf. Lagnado,<br />

Lisette. Conversações com Iberê Camargo. São Paulo: Iluminuras, 1994: 31.<br />

ALEA VOLUME 7 NÚMERO 1 JANEIRO – JUNHO 2005

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