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Revista eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>03</strong> (<strong>ano</strong> <strong>03</strong>, n. <strong>01</strong>) – janeiro-abril de 2004<br />

São Leopoldo – RS<br />

Periodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408<br />

http://www3.est.edu.br/nepp


Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

Coordenador Geral<br />

Prof. Dr. Oneide Bobsin<br />

Conselho Editorial<br />

Berge Furre - Universidade de Oslo<br />

Emil A. Sobottka – PUCRS<br />

Adriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de Teologia<br />

Ricardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRA<br />

Edla Eggert – Unisinos<br />

ISSN: 1678-6408<br />

Responsável por esta edição<br />

Oneide Bobsin<br />

Capa desta edição<br />

Iuri Andréas Reblin<br />

Revisão<br />

Adilson Schultz, Oneide Bobsin, Adriane Luísa Rodolpho e Iuri Andréas Reblin<br />

Editoração Eletrônica da edição em HTML<br />

Adilson Schultz<br />

Editoração Eletrônica da edição em PDF<br />

Iuri Andréas Reblin<br />

2<br />

Esta versão em PDF é uma edição revista da edição original.<br />

Link Desta Edição: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/0<strong>03</strong>/<strong>ano</strong><strong>03</strong>n1.pdf<br />

Protestantismo em Revista é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP),<br />

que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia,<br />

Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas,<br />

tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (EST) quanto de outras instituições.<br />

Protestantismo em Revista está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira de<br />

Ciências das Religiões da EST.<br />

A revista eletrônica Protestantismo em Revista é uma (jan.-abr.; mai.ago.,<br />

set.-dez.), sendo que as três edições do <strong>ano</strong> são tradicionalmente planejadas em duas edições<br />

temáticas e uma edição livre. Comumente, a equipe de redação até o do<br />

do quadrimestre e a acontece normalmente na segunda quinzena do<br />

do quadrimestre, salvo exceções. Confira a data estipulada na grade do tópico<br />

“edições anteriores” no site da revista.<br />

Os trabalhos deverão ser do Núcleo de Estudos e Pesquisa<br />

do Protestantismo: nepp_iepg@yahoo.com.br. Consulte as normas no site da revista. Demais<br />

informações e edições anteriores, acesse o site (http://www3.est.edu.br/nepp)<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

Sumário<br />

Editorial..................................................................................................................................................4<br />

Textos:<br />

A violência e o sagrado segundo René Girard..................................................................................8<br />

Por Adilson Schultz<br />

A tradição da hospitalidade, o sacrifício e a paternidade .............................................................19<br />

Por Charles Lang<br />

O Personagem Jesus Cristo: resenha crítica de MILES, Jack. Cristo: uma crise na vida de<br />

Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002................................................................................28<br />

Por Waldo César<br />

Do Bode Expiatório à Galinha Preta: contraposições entre as teorias sacrificiais de René<br />

Girard e de Marcel Mauss & Henri Hubert.....................................................................................32<br />

Por Adriane Luísa Rodolpho<br />

Girard e o aprisionamento do desejo ...............................................................................................45<br />

Por Mary Rute Gomes Esperandio<br />

Uma guerra civil no quintal: resenha crítica de CÉSAR, Waldo. Tenente Pacífico: um<br />

romance da revolução de 32. São Paulo : Record, 2002. ................................................................59<br />

Por Flávio Carneiro<br />

História e Violência: o caso da Migração para Rondônia..............................................................62<br />

Por Rogério Sávio Link<br />

¿Violencia contra Religión o Religión contra Violencia en Cuba Revolucionaria?....................68<br />

Por Nivia Ivette Núñez de la Paz<br />

A Crítica de Bernard Lauret à teoria sacrificial de Girard: Resenha sobre o texto de Lauret,<br />

Bernard. “Comment n’être pas chétien? Questions aux théses de René Girard sur le<br />

sacrifice”. In Lumière et Vie, nº 146, 1980, pp. 43-53......................................................................75<br />

Por Adriane Luísa Rodolpho<br />

Como citar esta revista.......................................................................................................................85<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 3


4<br />

Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

Editorial<br />

As análises e os estudos feitos pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa do<br />

Protestantismo – NEPP/IEPG- ao longo do segundo semestre de 20<strong>03</strong>, vêm a público<br />

na terceira edição de Protestantismo em Revista.<br />

Quando buscávamos uma temática relevante para nossos estudos e<br />

pesquisas, nos deparamos com uma antiga e nova questão - a violência. Frente a uma<br />

temática tão complexa, decidimos ler e analisar a obra de René Gerard, A Violência e o<br />

Sagrado. Desconhecida para algumas pessoas do NEPP, conhecida por outras, esta<br />

obra passou a nos ocupar e preocupar. Alguns textos que seguem foram motivados<br />

pela reflexão grupal, que deu pistas para as contribuições pessoais.<br />

Violência, religião e sacrifício são mais do que palavras chave dos textos; são,<br />

isto sim, eixos temáticos, principalmente das análises que se referem mais<br />

explicitamente à obra de René Girard. Em A Violência e o Sagrado segundo René Girard,<br />

o doutorando Adilson Schultz apresenta a obra do pensador francês, seguindo com<br />

comentários a respeito da mesma. A violência sacrificial é apaziguadora, terminal e<br />

decisiva, conforme Girard. O sacrifício é a violência que interrompe o ciclo da<br />

violência. O perdão, porém, faz cessar a violência sem a mediação da violência.<br />

Como poderemos ver, Girard se situa numa determinada leitura da tradição cristã<br />

para fazer tal afirmação, com a qual pretende distinguir o Cristianismo de outras<br />

religiões.<br />

Na mesma perspectiva de apresentação, comentários e posicionamentos<br />

pessoais, segue a análise da doutoranda Mary Rute Esperandio. Em Girard e o<br />

aprisionamento do desejo, volta a ser apresentada a tese segundo a qual desejamos o<br />

que o outro deseja, gerando, desta maneira, a violência que constitui a sociedade. O<br />

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Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

desejo mimético é gerador de conflito que pode ser apaziguado pelo sacrifício. Segue<br />

à apresentação da tese girardiana do desejo mimético uma série de perguntas feitas<br />

pela doutoranda. Ela parte da perspectiva da psicologia da religião. Por exemplo,<br />

questiona a afirmação de Girard que apresenta Cristo como única porta salvadora<br />

do desejo mimético. A Santa Inquisição e tantas outras facetas violentas da História<br />

do Cristianismo revelam que tantos sacrifícios continuaram a existir entre os<br />

seguidores de Cristo e destes em relação a outros.<br />

A partir de um capítulo de sua dissertação de mestrado, que tematizou o<br />

sacrifício na Quimbanda em Porto Alegre, a antropóloga Adriane Luisa Rodolpho<br />

contrapõe Marcel Mauss e Henri Hubert a René Girard. Em seu texto Do Bode<br />

Expiatório à Galinha Preta há, inicialmente, uma retomada dos temas sacrifício e bode<br />

expiatório em Girard. Segue com uma detalhada e rica análise de um sacrifício na<br />

Quimbanda, evidenciando que a vítima do sacrifício põe em contado os mundos<br />

prof<strong>ano</strong> e sagrado. Após a análise do sacrifício, a autora volta-se à crítica do sistema<br />

de pensamento de Girard. Apoiada em outros pensadores afirma que Girard pouco<br />

reconhece a sua dívida teórica a Henry Hubert e Marcel Mauss, a quem ele faz<br />

críticas, bem como questiona a falta de cientificidade do autor de A Violência e o<br />

Sagrado.<br />

O tema do sacrifício continua noutra perspectiva. Em A tradição de<br />

hospitalidade, o sacrifício e a paternidade, o doutor em psicologia Charles Lang se detém<br />

na análise do termo hospitalidade. Após considerar os diversos significados afins deste<br />

conceito, Charles Lang busca uma relação entre hospedeiro e sacrifício. Afirma que o<br />

hospedeiro oferece comida ao seu hóspede. Dá algo de si, isto é, sacrifica uma parte<br />

do que é seu. Também relaciona host e hóstia. Por isto, o hospedeiro se torna um host,<br />

a hóstia, a vítima, pão eucarístico (eu: bom; charis, graça, doação).Imbrica em sua<br />

discussão o termo paternidade. Para isto, utiliza-se da análise que Derida faz do texto<br />

de Gênesis 22, o sacrifício de Abraão. Por fim, os conceitos hospitalidade e paternidade<br />

são exercitados na história da substituição do filho pelo animal.<br />

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A análise do binômio violência e religião sai do enfoque teórico girardi<strong>ano</strong> com<br />

o texto do mestrando Rogério Sávio Link, que trata da história da migração de<br />

evangélico-luter<strong>ano</strong>s pomer<strong>ano</strong>s de terras capixabas para o estado de Rondônia. O<br />

mesmo grupo social que sofre a violência também a pratica. Desta forma, o texto<br />

trabalha com a violência passiva e violência ativa. Em outras palavras, Rogério analisa<br />

a violência sofrida pelos pomer<strong>ano</strong>s evangélico-luter<strong>ano</strong>s que deixaram o estado do<br />

Espírito Santo para viver no norte do Brasil, em áreas novas de colonização.<br />

Novamente a posse da terra é o fator gerador de violência. Também são destacados<br />

depoimentos de lideranças eclesiásticas luteranas que se solidarizaram com os/as<br />

oprimidas.<br />

Violência contra a religião ou religião contra a violência na Cuba<br />

Revolucionária? Este e a pergunta que permeia o texto Religión en Revolución da<br />

cubana Nivia Ivettte Núnez de la Paz, mestranda do IEPG em São Leopoldo. A<br />

autora assume uma postura que vai além da polaridade que a pergunta sugere.<br />

Analisa a relação entre Religião e Estado cub<strong>ano</strong> numa perspectiva que visa superar<br />

o dualismo. Centra sua análise no processo revolucionário e faz considerações sobre<br />

a década de noventa, sem esquecer de um processo intermediário do que chama<br />

“anquisolamento” (“enrijecimento das articulações”). A frase final de seu trabalho<br />

denota a postura da autora: Aceptemos la pluralidad, y propugnemos una unidad si,<br />

pero una unidad desde la diversidad que nos permite ser más auténticos, sinceros,<br />

libres y plenos.<br />

Resenhas de obras e texto fecham Protestantismo em Revista. Reproduzimos<br />

resenha feita pelo sociólogo e romancista Waldo César, publicada no Jornal do Brasil.<br />

Ao resenhar a obra de Jack Miles O personagem Jesus Cristo: uma crise na vida de Deus,<br />

somos colocados diante de uma interpretação pouco usual da morte expiatória de<br />

Cristo. Para Jack Miles, na morte de Cristo houve um suicídio de Deus. Ao cometer o<br />

suicídio, o Deus do povo escolhido se arrepende por não ter cumprido as promessas.<br />

Waldo César faz algumas aproximações com teólogos protestantes, como Bonhoeffer<br />

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– morto por Hitler – e Karl Barth. Suas críticas a Jack Miles o aproxima de José<br />

Saramago.<br />

Reproduzimos também a resenha de Flávio Carneiro, igualmente publicada<br />

no Jornal do Brasil, sobre o livro de Waldo César, Tenente Pacífico: um romance da<br />

revolução de 32. Mesmo que a narrativa não encontre mais ouvidos em nossa época,<br />

Waldo César mescla suas memórias da infância aos acontecimentos provocados pela<br />

revolução de 32. O narrador é o pastor protestante Samuel. No Romance, Waldo<br />

César articula fato e ficção, segundo Flávio Carneiro.<br />

Por fim, retornando a Girard, destacamos a resenha feita pela antropóloga<br />

Adriane L Rodolpho. Ela apresenta a posição de Lauret, teólogo, que presumo<br />

católico, a respeito da obra A Religião e a Violência. O Jesus de Girard, conforme<br />

Lauret, é um homem exemplar de uma sociedade que teria escapado à violência<br />

mimética, para se engajar em relações sociais pautadas pelo amor. A esta<br />

compreensão se contrapõe Lauret, para quem o amor evangélico não é isento de<br />

violência.<br />

Por último, reconhecemos a ausência do fundamentalismo nesta edição. Trata-<br />

se de um dos grandes temas que envolvem a questão violência e religião na<br />

atualidade. Como no primeiro semestre de 2004 ele será o tema de estudo e análise<br />

do NEPP, os leitores e as leitoras podem aguardar uma edição de Protestantismo em<br />

Revista durante 2004 com este assunto.<br />

Prof. Dr. Oneide Bobsin<br />

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A violência e o sagrado segundo René Girard<br />

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Por Adilson Schultz *<br />

RESUMO:<br />

O texto está dividido em duas partes. A primeira apresenta um resumo do sistema<br />

antropológico-fenomenológico girardi<strong>ano</strong> sobre violência e sagrado. A Segunda apresenta<br />

suas reflexões sobre a especificidade da tradição judaico cristã na articulação da violência.<br />

Embora não sendo exatamente uma resenha, a base do texto é o livro A violência e a religião.<br />

São Paulo : Paz e Terra, 1990. No entanto, o texto faz referência indireta a outras obras de<br />

Girardi, usando como fonte um primoroso trabalho de Alfredo Teixeira: Violência e cultura:<br />

explorações do teorema girardi<strong>ano</strong>. In: FARIAS, José Jacinto Ferreira et. al. Religião e violência:<br />

extremismos religiosos, violência e cultura, guerra santa, opinião de teólogos. Lisboa : Paulus, 2002.<br />

p. 37-91.<br />

Palavras-chave:<br />

violência e sagrado, religião, bode expiatório, René Girard<br />

Introdução: o bode expiatório moderno<br />

“RESGATE TUMULTUA O CENTRO DA CAPITAL<br />

A área da praça Montevidéu, no centro da capital, parou ontem por causa de um<br />

universitário, de 22 <strong>ano</strong>s, que sentou-se em uma janela no 14 o andar de um edifício,<br />

supostamente pretendendo jogar-se. O incidente começou por volta das 16h45min e durou<br />

quase uma hora, atraindo pelo menos 10 mil curiosos, que pararam no Paço municipal. O<br />

resgate envolveu soldados do Corpo de Bombeiros de Busca e Resgate (CBBR), do 9 o BPM e<br />

do Batalhão de Operações Especiais (BOE) e fez com que o trânsito fosse interditado. Dentro<br />

da sala onde o jovem estava, momentos de tensão e nervosismo eram vividos por duas<br />

psicólogas, uma médica e um policial militar à paisana, que tentavam dissuadir o jovem de<br />

* Mestre em teologia com pesquisa sobre protestantismo e Missão. Doutorando no IEPG-EST com<br />

pesquisa no campo das Ciências da Religião sobre protestantismo e imaginário religioso brasileiro.<br />

Pesquisador do NEPP – Núcleo de estudos e pesquisa do protestantismo e do NPG – Núcleo de estudos e<br />

pesquisa de gênero.


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saltar. No solo, a multidão acompanhava a ação, enquanto vendedores ambulantes<br />

aproveitavam a aglomeração para oferecer bebidas e alimentos.<br />

Às 17h40min, o policial militar que estava na sala agarrou o jovem pelo braço<br />

no mesmo instante que um bombeiro, posicionado no parapeito acima da janela onde<br />

estava o estudante, desceu por uma corda e jogou-se sobre o rapaz para dentro da<br />

sala. A rápida ação foi aplaudida pelos populares. Na saída do prédio, enquanto era<br />

conduzido à força para uma ambulância, o rapaz foi alvo de xingamentos<br />

generalizados.”<br />

Jornal Correio do Povo (Porto Alegre, RS), 17 de setembro de 20<strong>03</strong>, Polícia, p. 14.<br />

O sistema girardi<strong>ano</strong><br />

René Girard constrói um sistema antropológico-fenomenológico para<br />

explicar a origem da cultura e a estrutura de violência nas sociedades. Sua tese é que<br />

a articulação dos diversos fenômenos sociais opera através da íntima relação do<br />

sagrado com a violência. O sagrado é a ferramenta reguladora da qual as sociedades<br />

lançam mão diante da ameaça de violência generalizada. Este processo é a própria<br />

fundação da cultura. O âmbito do sagrado está pleno de violência, e a violência é<br />

sempre sacralizada.<br />

No cerne de sua tese está o processo de passagem da indiferenciação para a<br />

diferenciação social, instituinte da cultura. A indiferenciação gera a rivalidade<br />

generalizada, que ameaça o grupo social. Diante da ameaça, o grupo cria<br />

mecanismos coletivos de diferenciação. A primeira solução diante da crise é o<br />

sacrifício vitimizador, que polariza em uma única vítima a violência que envolve<br />

todas as rivalidades conflitantes que ameaçam o grupo. Ela será sacrificada em nome<br />

do grupo. Esta vítima fundadora ou bode expiatório é o cerne da diferenciação primeira<br />

das sociedades: a comunidade de um lado; a vítima do outro.<br />

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Tendo experimentado os benefícios da violência fundadora como solução<br />

para a crise que viveu, a sociedade busca meios para perpetuar esta estabilidade,<br />

passando a ritualizar freqüentemente o sacrifício. A vítima que cataliza todo o mal do<br />

grupo passa a ser fonte de todo o bem e toda a paz na comunidade. Este processo de<br />

transcendentalização da violência vitimizadora é a gênese do sagrado.<br />

Baseado em Mitologia e Literatura comparadas, Girard reivindica que este<br />

sistema é universal, regulando todas as sociedades. No livro A violência e o sagrado,<br />

ele analisa amplo material fenomenológico, desde peças literárias e mitos gregos<br />

clássicos, europeus, americ<strong>ano</strong>s e afric<strong>ano</strong>s até obras teóricas modernas. Dedica<br />

amplo espaço para os estudos de Freud sobre o complexo de Édipo e Totem e Tabu, e a<br />

Levi Strauss e seus estudos sobre parentesco. Em todos os mitos e peças literárias,<br />

Girard encontra evidências da estrutura vitimizadora, confirmando a universalidade<br />

de sua tese.<br />

A base do sistema: o desejo mimético<br />

Girard trabalha com a hipótese da triangularidade do desejo: na convencional<br />

relação dual sujeito-objeto, ele insere um mediador; toda relação é mediada por um<br />

Outro. Este outro é o nascedouro do desejo. O sujeito deseja o objeto de um outro<br />

sujeito, e não o objeto em si. Sujeito A deseja objeto X porque sujeito B deseja objeto X.<br />

Esta dinâmica ele denomina mimêsis de apropriação, imitação de apropriação. A<br />

relação dos sujeitos estabelece a rivalidade mimética. Os dois sujeitos se tornam rivais<br />

devido ao mimetismo do desejo, à disputa do mesmo objeto, enraizada não no objeto,<br />

mas na imitação do desejo do outro. Este duplo desejo nunca é simplesmente<br />

acidental, mas sempre patrocinado pelo desejo do outro. É o desejo do outro que<br />

valoriza o objeto.<br />

A violência se alicerça no caráter mimético do desejo. Sujeitos A e B<br />

estabelecem uma relação de discípulo e modelo. Essa relação é sempre assimétrica: A<br />

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quer imitar B, mas diante da impossibilidade de realizá-lo, passa a vê-lo como um<br />

rival. Por outro lado, quando B se vê imitado, reage, e vê A como um rival. Girard<br />

denomina essa assimetria de double bind, a imitação ao mesmo tempo sugerida e<br />

interditada.<br />

No desenrolar do processo, essa rivalidade se torna tão acentuada que a<br />

violência vai se incorporando no núcleo do próprio desejo. Logo a violência parece<br />

ser o próprio objeto do desejo, e o sujeito A quer dominar o objeto por meio da<br />

violência contra o sujeito B. O conjunto desse processo Girard denomina crise<br />

mimética: os dois sujeitos não desejam o objeto, mas o desejo do outro. A esta altura o<br />

objeto praticamente desapareceu por trás do desejo recíproco. Ou melhor: objeto,<br />

sujeito e desejo são uma coisa só; estão indiferenciados. Esta indiferenciação é a gênese<br />

da violência; sua mola propulsora. A estrutura do desejo é a estrutura da violência.<br />

A solução para a violência: o sacrifício do bode expiatório<br />

A cultura se funda nos processos de diferenciação. É ela que racionaliza a<br />

sociedade. A crise mimética, a indiferenciação, é uma ameaça à sociedade. Na<br />

indiferenciação, há o risco de violência generalizada, sem responsáveis identificáveis.<br />

Isso pode levar à autodestruição do grupo.<br />

É aí que surgem as soluções sociais pacificadoras, condensadas na figura do<br />

bode expiatório. Ela não vem para acabar com a estrutura do desejo mimético, que é<br />

imutável e universal, mas para regulamentar ou racionalizar a violência. Trata-se de<br />

um processo de transferência da violência generalizada para uma vítima expiatória.<br />

A ameaça coletiva é condensada numa só vítima; do ameaçador “um contra o outro”<br />

passa-se para pacificador “todos contra um”. A violência que ameaça a comunidade é<br />

transferida para uma vítima designada unanimemente: o bode expiatório.<br />

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Girard encontra esta mesma estrutura em todos os mitos e relatos literários<br />

estudados – Édipo, Caim e Abel, Paixão de Cristo, por exemplo. Todos relatam o<br />

ponto culminante do estado de crise mimética do grupo social, plastificado na<br />

violência generalizada ou nas catástrofes e epidemias, situações que põe em risco a<br />

sobrevivência do grupo. Em todos os mitos, Girard descobre a figura arquetípica do<br />

linchamento coletivo, ou bode expiatório. E ele vai além: todos os mitos,<br />

indistintamente, por mais simples e aparentemente inocentes que sejam, têm a<br />

mesma função social: passar da indiferenciação para a diferenciação e regular o<br />

fenômeno da violência, sempre através do processo bode expiatório.<br />

Todos os sacrifícios dramatizados ritualisticamente operam nesta estrutura<br />

do bode expiatório. Todos os mitos manifestam esta mesma estrutura: crise mimética –<br />

homicídio fundador – (re)constituição dos sistemas de diferenciação. Na verdade, todos os<br />

mitos narram processos de crise sacrificial e processos vitimizadores bem sucedidos.<br />

Vale a ressalva de que todos os mitos narram a história do ponto de vista dos<br />

perseguidores, e não das vítimas<br />

Por isso a violência sacrificial e os mitos que a relatam não são violentos em<br />

si, mas estão sempre orientados para a paz. A violência sacrificial é apaziguadora,<br />

reconciliadora, terminal, decisiva. O sacrifício tem sua eficácia enquanto processo<br />

preventivo, coibindo uma violência recíproca desenfreada na comunidade. Para que<br />

cumpra seu papel enquanto última palavra da violência, o sacrifício precisa de uma<br />

vítima que não possa reagir. A vítima sacrificial não pode devolver a violência; não<br />

pode vingar-se. Por isso, a vítima é sempre alguém à margem da sociedade (animal,<br />

criança, rei, estrangeiro, escravo, prisioneiro, bruxa, messias, ...). O sacrifício é uma<br />

violência sem possibilidade de vingança.<br />

O sacrifício opera sempre uma dupla transferência: a) a violência acumulada<br />

na sociedade é transferida para o ódio homicida contra a vítima, e assim o grupo<br />

camufla, dissimula sua própria violência, e designa a vítima como uma causa da<br />

crise. Esse processo é temporário, e sempre renovável ritualisticamente; b) estando<br />

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toda a violência social concentrada na vítima, agora ela sobrevive na memória<br />

coletiva como fonte de paz, sendo transferido para ela um espectro de<br />

transcendência.<br />

Violência e sagrado<br />

A palavra sacri-fício significa fazer sagrado. O sacrifício é um mecanismo social<br />

produtor de sagrado. Uma morte produz a vida! Um ser de fora é o culpado das<br />

mazelas do grupo e, ao mesmo tempo, será a fonte de salvação depois de sacrificado.<br />

A violência do sacrifício não apenas produz o sagrado, mas também sacraliza<br />

a violência. Expulsa da sociedade por causa de seus efeitos maléficos, a violência<br />

fundadora é ao mesmo tempo venerada pela sua virtude benéfica. A vítima transita<br />

numa esfera ambígua entre o bem e o mal. Ela nasce da indiferenciação e produz a<br />

diferenciação; funda a cultura. Ela tem poder maléfico por condensar a maldade<br />

social enquanto bode expiatório, mas tem poder redentor ao libertar os<br />

perseguidores de suas recriminações recíprocas e, ao mesmo tempo, trazer benefícios<br />

sociais 1 .<br />

O cristianismo e o Deus das vítimas 2<br />

Ao ler os mitos judaico-cristãos na Bíblia, Girardi diz que a paz obtida por<br />

meio da violência vitimizadora é ilusória. Desde os primeiros relatos do 1 o<br />

Testamento até a história de Jesus Cristo, instaura-se na Bíblia um processo<br />

1 Há que se discutir em que medida o sistema judicial moderno ocupa o lugar da estrutura sacrificial<br />

arcaica. Certamente a execução legal, seja com condenação à morte ou penas de encarceramento,<br />

pode ser vista como a ritualização de uma violência social. Em certa medida, o sistema judicial<br />

mantém todos os elementos do sacrifício: inibe o círculo vicioso da violência; não permite<br />

vingança; é a última palavra; conserva o elemento transcendente/teológico, com a verdade<br />

inquestionável da justiça; não acaba com a crise mimética, mas exorciza o perigo da rivalidade<br />

generalizada; os condenados são bodes expiatórios. A questão a averiguar é se os conceitos<br />

modernos de justiça e culpa individual não significam um retrocesso em relação aos conceitos<br />

coletivos de vingança e responsabilidade. E ainda: em que medida, vingança e justiça são realmente<br />

coisas distintas? De qualquer forma, a idéia de perdão está completamente afastada também nesse<br />

sistema. A regra é o sacrifício do culpado.<br />

2 Girard não escreve sobre isso em A violência e o sagrado. Deste ponto em diante a referência é a<br />

outras obras do autor, colhidas em Alfredo TEIXEIRA, op. Cit.<br />

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diferenciado: ao invés da figura do bode expiatório para coibir a vingança e a<br />

rivalidade generalizada, a bíblia propõe o perdão e a dignidade da vítima.<br />

14<br />

A história de Caim e Abel revela o perigo de uma sociedade fundada na<br />

violência: na primeira parte o mito apresenta resquícios do sistema da violência<br />

fundadora – Abel precisa morrer para ser fundada a cultura, um povo. O gesto<br />

homicida de Caim é apresentado como conseqüência de uma crise mimética, no qual<br />

a inveja ocupa o lugar do desejo. Caim é o culpado; aquele que precisa morrer ou ser<br />

castigado ou vingado. Na segunda parte, no entanto, se dá a crítica ao sistema<br />

vitimizador – o Caim culpado, o bode expiatório, não vai morrer. Javé colocou um<br />

sinal sobre Caim. Ninguém pode vingar Abel. Aí cria-se um sistema diferenciado de<br />

regulamentação da rivalidade mimética, inaugurando-se, ao mesmo tempo, um<br />

processo de reabilitação da vítima e o apelo por um juízo ético. Javé apresenta-se<br />

como o Deus das vítimas. Surpreendentemente, no entanto, Caim não é absolvido ou<br />

perdoado, mas condenado. A frase de Javé “Onde está teu irmão, Abel”, implica na<br />

responsabilização do assassino, mas não no seu sacrifício.<br />

A história do apedrejamento da mulher adúltera (Jo 8) tem toda a estrutura<br />

da crise mimética: o grupo está em crise, afetado por uma epidemia; a solução<br />

vitimizadora propõe uma vítima; a vítima é marginal; ela é desfigurada; o perigo do<br />

contágio que leva à violência de todos contra a vítima já desumanizada; ambivalência<br />

divino-demoníaco no sacrifício da mulher; a distância da vítima no ato de<br />

apedrejar/sacrificar; o lugar marginal onde ocorre; a unanimidade do grupo.<br />

Acontece que, frente à condenação da vítima à violência, Jesus propõe o perdão. Só o<br />

perdão pode terminar a violência sem mediação da violência.<br />

O evangelho é o exemplo maior de des-ocultação da estrutura vitimizadora.<br />

Jesus é o Deus sem intermediários sacrificiais. Não são mais necessários sacrifícios ou<br />

bodes expiatórios para conseguir a paz. É desta forma que Jesus precisa ser<br />

entendido enquanto revelação de Deus: uma proposta de<br />

reconciliação/apaziguamento sem mediação sacrificial. O cerne da mensagem de<br />

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Jesus é a reconciliação dos irmãos inimigos e destes com Deus. Ele quer pôr fim à<br />

crise mimética sem lançar mão da violência. Sua grande missão é desvelar a estrutura<br />

sacrificial da sociedade fundada na violência. Jesus mostra que o mal começa na<br />

esfera do desejo (Mt 5.27ss); dirige-se contra o princípio mimético (olho por olho – Mt<br />

5.38) e convida seus seguidores a renunciarem a violência (Mt 5.39ss). Jesus não<br />

acaba com a estrutura mimética, mas propõe ferramentas para sair do círculo vicioso<br />

da violência, através do perdão, desmitologizando os elementos da engrenagem<br />

vitimizadora. João Batista e Jesus seriam o protótipo do novo par mimético, sem<br />

rivalidade, sem inveja.<br />

A paixão de Jesus revela a mesma estrutura da história de Caim e Abel, com<br />

todas as características da crise mimética: uma grande crise transforma Jesus numa<br />

vítima expiatória – não se fala em bode, mas em cordeiro; a designação/seleção<br />

cuidadosa da vítima (Jesus ou Barrabás?); a unanimidade da multidão; a<br />

marginalidade da vítima; o sacrifício no fim de uma festa; vítima transgressora (come<br />

com public<strong>ano</strong>s); a ambivalência da vítima (honrado com palmeiras e coroado com<br />

espinhos); a exibição pública da vítima; a violência coletiva contra ela; a<br />

unanimidade fundadora. Mas também aí há algo diferente: a vítima é declarada<br />

inocente, em contraste com a unanimidade sacrificial. Jesus recusa as acusações<br />

estereotipadas em frases como: “odiaram-se sem motivo” (Sl 35.19 citado em Jo<br />

15.25); a pedra rejeitada é a pedra angular (Lc 20.17 no Sl 118.22); ou “Pai, perdoa-os.<br />

Eles não sabem o que fazem.”<br />

O apedrejamento de Estevão em Atos 7.51-60 tem os mesmos elementos: ele<br />

implora para que Deus não leve em conta o pecado de seus algozes. Não há mais<br />

vingança de Deus. Estevão, assim como Jesus, coloca em evidência a violência<br />

fundadora da cultura que o sacrifica.<br />

Assim, o valor das narrativas bíblicas não está em acabar com a<br />

universalidade do mecanismo fundador da violência, que, segundo Girardi, é<br />

incontestavelmente onipresente, mas contribuir para um saber alternativo à violência<br />

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fundadora da cultura. O grande valor de Jesus seria revelar aos seres hum<strong>ano</strong>s a<br />

violência que os habita. Sua morte na cruz seria a des-ocultação da matriz de<br />

violência. Sua morte, aliás, é conseqüência dessa revelação e demonstração plástica<br />

dela. Se, por um lado, os responsáveis pela morte de Jesus perpetuam o mecanismo<br />

vitimizador achando que a vítima trará paz ao reino, por outro, Deus contraria a<br />

lógica e não se vinga; não expulsa mais ninguém do paraíso, mas ele mesmo é<br />

vitimado; expulso pelo ser hum<strong>ano</strong>. Por isso Jesus é o novo Adão, onde não cabe lugar<br />

para a rivalidade mimética. O Sermão da Montanha é o centro dessa nova<br />

mensagem. Por isso, a cruz jamais pode ser obra de Deus; ela não é parte de uma<br />

engrenagem vitimizadora. Ela é a revelação da única possibilidade de superação de<br />

violência, renúncia a ela.<br />

16<br />

Os limites do cristianismo<br />

O cristianismo realmente consegue acabar com a estrutura de violência que<br />

funda a cultura? Certamente não. Ele é e foi, inclusive, grande promotor da estrutura<br />

de violência. Certamente há que considerar os limites do cristianismo enquanto<br />

gênese. Os processos históricos têm um peso tão grande na violência social e religiosa<br />

promovida pelo cristianismo quanto a mensagem de paz de sua fundação. O mito de<br />

origem não é capaz, por si só, de instaurar uma nova ordem.<br />

Não obstante, a tradição judaico-cristã instaura uma nova dimensão no<br />

relacionamento hum<strong>ano</strong>, inserindo o imperativo ético no lugar da vingança. Deus é o<br />

deus das vítimas. A Bíblia toda pode ser lida como o relato das vítimas. No lugar da<br />

culpa da vítima, fala-se em perdão.<br />

Três conseqüências práticas desse imperativo ético: a) o cuidado das vítimas,<br />

certamente uma das maiores contribuições bíblicas para o mundo. A vítima é hoje o<br />

derradeiro absoluto das sociedades (vítima de guerra, de aborto, de fome; o<br />

estrangeiro, as crianças pobres, etc.); b) a supervalorização do ser hum<strong>ano</strong>,<br />

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independentemente de sua posição cultural; c) a auto-responsabilização individual<br />

pela violência, sem recorrer a disfarces como demônios, possessões, monstros ou<br />

bodes expiatórios.<br />

Ao contrário do que se poderia supor, portanto, a estrutura vitimizadora está<br />

tão viva como sempre esteve. O sacrifício não é coisa do passado; das religiões<br />

primitivas. Logicamente, quase não há mais sangue nos templos e nos altares, mas<br />

não há como negar a massificação leiga do sacrifício, que gera milhões de vítimas<br />

inocentes. As vítimas de hoje têm todas as características das vítimas dos sacrifícios<br />

ancestrais.<br />

Conclusão: esquema do sistema girardi<strong>ano</strong><br />

1 A fase: CRISE MIMÉTICA<br />

Triangularidade do desejo: sujeito A deseja objeto X, porque X é desejado por<br />

sujeito B.<br />

Mimêsis de apropriação: imitação do desejo do outro.<br />

Double bind: discípulo e modelo vivem situação de incentivo e interdito à<br />

imitação.<br />

Rivalidade mimética: não devido ao desejo pelo mesmo objeto, mas imitação<br />

do desejo do outro.<br />

Indiferenciação objeto e sujeito: decalque do objeto.<br />

Crise mimética: desejo, objeto e violência se confundem. O núcleo do desejo<br />

não é mais o objeto, mas a violência contra o outro.<br />

Violência generalizada: crise social/epidemia.<br />

Risco de autodestruição: a diferenciação básica objeto-sujeito que funda a<br />

civilização está ameaçada.<br />

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18<br />

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2 A fase: SACRIFÍCIO APAZIGUADOR<br />

Sacrifício vitimizador: para apaziguar a crise; para prevenir a violência<br />

generalizada.<br />

Do “Todos contra todos (indiferenciação)” para “todos contra um”<br />

(diferenciação).<br />

Seleção do Bode expiatório ou linchamento coletivo.<br />

Características da vítima: unanimidade, marginalidade, não vingativa,<br />

transgressora, ambigüidade demoníaca-sagrada.<br />

Dupla transferência: da violência grupal para a violência contra uma vítima;<br />

vítima diabólica para vítima fonte de paz.<br />

3 A fase: (RE)CONSTITUIÇÃO DOS SISTEMAS DE DIFERENCIAÇÃO<br />

A repetição ritual do sacrifício garante a estabilidade da sociedade.<br />

Sacralização da violência: Sacri-fício = fazer/instituir o sagrado.<br />

Transcendentalização da violência: a salvação vem de fora, e é ela, a<br />

violência, que agencia sua irrupção.<br />

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A tradição da hospitalidade, o sacrifício e a paternidade<br />

Por Charles Lang *<br />

Resumo:<br />

O presente toma como pretexto e ponto de partido para a constituição de determinados<br />

referenciais que permitam pensar a paternidade e suas imbricações com a hospitalidade e o<br />

sacrifício. A etimologia de alguns termos, ou seja, o uso continuado de certas palavras, no<br />

decorrer dos séculos, e marcam as linhas invisíveis de uma tradição que se mantém viva na<br />

atualidade, e que pode nos revelar de que modo a paternidade tem se perpetuado e o que<br />

dela está sob o risco de desaparecer.<br />

Palavras-chave:<br />

paternidade - hospitalidade - sacrifício.<br />

“Hospitalidade” provém do latino hospitalitate, para designar o ato de<br />

hospedar; hospedagem; a qualidade de hospitaleiro e, por extensão, o acolhimento<br />

afetuoso. Antigamente, a palavra hóspede tinha o duplo sentido de quem hospeda e<br />

de quem é hospedado. Hoje só significa a pessoa hospedada, aquela que recebe<br />

hospitalidade, que é recebida na casa de alguém, acolhida. Hóspede provém do latino<br />

hospes e era a pessoa que se aloja temporariamente em casa alheia, visitante; hospite<br />

era o senhor do estrangeiro, do hospitem, do propriamente estrangeiro, da pessoa<br />

que vem de outra terra. Hospitalidade, como derivando do latino hospitalitas é o ato<br />

de hospedar, de acolher afetuosamente, e de hospitatem, a qualidade, a disposição<br />

acolhedora de quem oferece hospedagem, de quem bem recebe hóspede.<br />

Logo encontramos host, o hospedeiro, o generoso distribuidor da<br />

hospitalidade e o guest, o hóspede, que remontam à mesma raiz: ghos-ti: estranho,<br />

hóspede; também anfitrião (em particular alguém com quem se mantêm obrigações<br />

recíprocas de hospitalidade). Host, no inglês moderno, refere-se também ao servidor<br />

* Doutor em Psicologia (PUCSP), psicanalista (Membro da APPOA), professor no Curso de<br />

Psicologia da UNISINOS.<br />

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de computadores, e vem de (h)oste (inglês medieval, do antigo francês (anfitrião,<br />

convidado) e do latim hospes (raiz hospit-), convidado, anfitrião, estranho.<br />

20<br />

Encontramos em hospitalidade a raiz per ou pit (tanto nas palavras latinas<br />

como nas inglesas e portuguesas modernas) – tais em hospital e hospitality – que<br />

provém de pot, que significa “senhor”, “mestre” (pot é também potência, força, e está<br />

na raiz de pater, dieu pater, jupiter). Ghos-Pot, raiz composta, significa “senhor dos<br />

convidados, aquele que simboliza o relacionamento de hospitalidade recíproca<br />

(como no gospodi eslavo: amo, senhor, mestre. Guest (hóspede) vem de gest (inglês<br />

medieval, do antigo escandinavo gestr, de ghos-ti, que vem da mesma raiz de host).<br />

Um hospedeiro é um hóspede, e um hóspede é um hospedeiro. Um<br />

hospedeiro é também uma hóstia – que primeiramente era a vítima oferecida em<br />

sacrifício, depois o pão consagrado, o corpo do Cristo na eucaristia – um pão. A<br />

relação entre o senhor da casa que oferece a hospitalidade a um hóspede, e o<br />

hóspede, que a recebe (do hospedeiro e do parasita no sentido original de<br />

companheiro convidado), já está incluída na palavra Host (hospedeiro). O Host, o<br />

hospedeiro é, ao mesmo tempo, aquele que alimenta como aquele que serve de<br />

alimento. Host, hospedeiro, hóstia, está também na raiz de hoste, de inimigo. No<br />

interior de host há esse sentido antitético do familiar e íntimo e do estranho e<br />

estrangeiro. O hospedeiro oferece comida ao seu hóspede, dá-lhe algo de si, sacrifica<br />

uma parte de seu patrimônio. Mas ele só o pode fazer por ter essa potência, por ter se<br />

autogerado. O que ele oferece não é o que recebeu ou o que sobrou e nem o deve a<br />

ninguém.<br />

Ora, isso que é oferecido pode ser algo benigno ou algo maligno, tanto<br />

quanto o hóspede pode ser um amigo ou um inimigo (ou um parasita).<br />

Parasita evoca o seu oposto aparente, não significando na ausência da<br />

contraparte. Não há parasita sem hospedeiro, ao mesmo tempo em que tanto parasita<br />

como hospedeiro se subdividem, revelam-se fendidos dentro de si, cada uma revela-<br />

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se – como a palavra Unheimlich – ela própria Unheimlich. Para (para-sita) é ao longo<br />

de, ao lado de ou próximo a, além de (incorretamente) semelhante a ou parecido com.<br />

Nos compostos gregos, para indica junto a, ao lado de, ao longo, além de, injustamente,<br />

nocivamente, desfavoravelmente e dentre muitos.<br />

Para é um prefixo antitético duplo que significa, ao mesmo tempo,<br />

proximidade e distância, similaridade e dissimilaridade, interioridade e<br />

exterioridade, algo que está dentro de uma economia doméstica ao mesmo tempo em<br />

que fora dela; é também o próprio limite, a tela que é uma membrana permeável,<br />

conectando um dentro com um fora, confundindo um com o outro, permitindo que o<br />

fora passe para dentro, fazendo o dentro passar para fora, separando-os e juntando-<br />

os: uma coisa em para forma uma transição ambígua entre um e outro. Parasita, pois,<br />

vem do grego parasitos, ao lado do grão, do trigo, do alimento. Sitos está em sitologia,<br />

a ciência dos alimentos, da nutrição e da dieta. Um parasita era algo positivo, um<br />

amigo convidado, alguém que partilhava de sua comida, que se encontrava ao lado à<br />

mesa. Mais tarde, o termo parasita passou a significar um convidado profissional,<br />

um especialista em “filar” convites para jantar, aos quais jamais retribui.<br />

parasita:<br />

Daí é que surgiram dois principais significados modernos para o termo<br />

1. social: pessoa que habitualmente se aproveita da generosidade das outras,<br />

sem oferecer qualquer retorno (útil);<br />

2. biológico: qualquer organismo que cresce, alimenta-se e se abriga num<br />

organismo diferente sem contribuir em nada para a sobrevivência daquele que o<br />

hospeda.<br />

Assim percebemos esse curioso sistema de pensamento, linguagem e<br />

organização social implícito na palavra parasita. Parasita e hospedeiro são<br />

companheiros que compartilham a comida, por um lado; por outro, o próprio<br />

hospedeiro é a comida; sua substância, sua potência, seu poder são consumidos sem<br />

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recompensa. O hospedeiro pode, então, se tornar um host, a hóstia, a vítima, o pão<br />

consagrado na eucaristia (eu: bom; charis, graça, dom).<br />

22<br />

Carestia (do itali<strong>ano</strong> carestia.] é a qualidade do que é caro, superior ao valor<br />

real, mas é também a escassez, a falta, a carência. Por isso o sacrifício. Só há sacrifício<br />

(a hóstia ou a vítima) onde há falta, carência. Se o hospedeiro é aquele que alimenta e<br />

que serve o/de alimento, ele também contém em si a relação antitética dupla de<br />

hospedeiro e hóspede, ao que se soma o duplo sentido de host (como presença amiga<br />

ou como invasor, o inimigo).<br />

Se nos detivermos um pouco mais na acepção social do termo parasita,<br />

podemos perceber que, em nossas sociedades, há indivíduos que são, pela definição,<br />

parasitas. Pensemos nos presidiários, nos loucos asilados 1 , etc. Mas não são, tão-<br />

somente, parasitas (no sentido biológico ou social) que poderiam ser simplesmente e<br />

justificadamente eliminados. Eles têm um outro sentido e utilidade 2.<br />

Aquele que hospeda oferece sua hospitalidade, sua casa, seu corpo ao outro,<br />

ao estranho, o estrangeiro. Por sua palavra ele transforma esse outro/estranho<br />

visitante num outro/familiar convidado. Acolhe-o, serve o/de alimento. Esse outro<br />

pode tornar-se um convidado, viver em comum, comungar, partilhar junto o pão,<br />

compartilhar. Mas esse outro pode querer nunca se tornar convidado e querer<br />

permanecer visitante ou hoste, inimigo, parasita.<br />

1 Temos a palavra hospício (do latino hospitiu.) que pode ser a casa onde se hospedam e/ou tratam<br />

pessoas pobres ou doentes, sem retribuição, gratuitamente, portanto, como o asilo de loucos, com<br />

retribuição ou sem ela. Um outro sentido para hospício é o de lugar onde se recolhem e tratam<br />

animais abandonados.<br />

2 No seminário que vem conduzindo (cfe anunciou no workshop realizado no mês de julho de 20<strong>01</strong>,<br />

no Rio de Janeiro) Derrida tem se dedicado ao tema da pena de morte, para mostrar justamente<br />

essa outra dimensão do parasita. Não mais como o inútil, como o aproveitador, mas o parasita<br />

como hóstia, como vítima, como sacrifício. Privamos homens de um valor incalculável – a vida (no<br />

caso da pena de morte) ou a liberdade (no caso do encarceramento), oferecemos vítimas em<br />

sacrifício para que nossas culpas e nossas des-razões sejam expiadas e uma certa ordem e harmonia<br />

seja restabelecida. Assim, com o sacrifício hum<strong>ano</strong> e através do sacrifício, podemos nos<br />

autojustificar, separarmo-nos de nossa crueldade pois ela está bem contida, separada, segregada na<br />

prisão ou no manicômio. Aquele que cometeu uma crueldade recebe uma outra crueldade. Não<br />

somos menos cruéis que aqueles que foram cruéis.<br />

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Hostis é a igualdade por compensação, aquele que compensa um dom por<br />

um contra-dom. Host está também na raiz de hostil (do latim hostil), o contrário, o<br />

adverso, o inimigo; também o agressivo, provocante. Hostilidade parece ser o exato<br />

oposto de hospitalidade, na medida em que hostilizar é tratar como a um inimigo, ter<br />

sentimento hostil contra, mover guerra contra, causar d<strong>ano</strong> a, prejudicar. Mas o<br />

termo hostilidade guarda essa mesma relação interna que hospitalidade, ao opor-se-<br />

lhe: hostilizar é combater-se, agredir-se mutuamente. O hospedeiro não mais se<br />

oferece ao outro, mas volta-se contra si mesmo.<br />

Host ainda nos reserva uma surpresa. A hóstia, o pão consagrado é antes a<br />

vítima, o sacrifício oferecido à divindade, ao Outro absoluto. Aquele que hospeda<br />

sacrifica algo, dá algo de si sem esperar retribuição. Por isso, o dom. Esperar algo em<br />

troca anula o dom. De acordo com a religiosidade judaico-cristã, o mundo foi criado<br />

perfeito (“viu Deus que tudo era bom”), encantador: o mundo tinha graça (charis), o<br />

mundo era carismático. Mas pelo pecado, pela transgressão, pela culpa dos primeiros<br />

homens, o mundo caiu em desgraça, perdeu a graça, e a vida tornou-se um caminho<br />

de dores e de trabalhos em direção à morte, o preço pelo pecado, pela transgressão.<br />

Mas a divindade, em sua infinita sabedoria, enviou seu filho, seu único filho (um<br />

filho que ele engendrou no interior de si) para que ele fosse sacrificado, se tornasse a<br />

vítima no sacrifício, para que a graça fosse restabelecida. O pai entrega o filho à<br />

morte, em sacrifício e, ao entregá-lo, entrega a si mesmo.<br />

Charis é a graça, a graciosidade, a amabilidade, o favor; o charisma, o presente<br />

oferecido de boa vontade. Encontramos, ainda no grego, a palavra charizomaí, o<br />

mostrar favor ou bondade, dar como favor, ser gracioso para com alguém. Não é<br />

difícil perceber a intimidade entre a graça, o dom e a hospitalidade. Como se todas<br />

essas palavras fossem re-apresentações de um Mesmo, de uma certa disposição, de<br />

uma certa relação com o outro e com o Outro. Com o próximo, com o semelhante<br />

(com o familiar), mas também com o Absoluto, com o inominável, com o<br />

incontornável, com o destino (com o estranho).<br />

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A eu-carestia é o ato ritual em que se repete esse sacrifício, no qual a graça,<br />

mas também a carestia, possa repetir-se. O sacrifício guarda essa relação com a graça<br />

e com a carestia. Ele é o preço da graça, mas um preço muito caro, elevado,<br />

incalculável; um preço fora de qualquer economia possível. É isso que contém a<br />

palavra carestia. A noção de algo muito caro, ao mesmo tempo em que a falta, a<br />

carência, a ausência de um valor. Aquilo que é sacrificado só o pode ser (sacrificado)<br />

por não ter valor. No entanto, dizer que não tem valor já é calcular um valor, mesmo<br />

que nulo. Aquilo que é sacrificado, a hóstia, a vítima é incalculável, não pode ser<br />

pago por preço algum, não pode ser trocado por nada, escapa de todo cálculo. Por<br />

isso o dom. A hóstia, a vítima do sacrifício é oferecida como dom, em seu valor<br />

incalculável, sem esperar isso ou aquilo em troca – o que anularia o sacrifício.<br />

As palavras que se formam da raiz grega char- indicam coisas que produzem<br />

bem-estar e, também, pertencem à família indo-européia de palavras que inclui o<br />

Alto Alemão ger (gula) e Geier (abutre); no inglês encontramos greddy (guloso).<br />

Assim, em charis encontramos também o excesso no qual o alimento, o sacrifício, o<br />

pão, a hóstia torna-se hoste, inimigo, hostil. Em que o bem-estar transforma-se em<br />

mal-estar, a hospitalidade transforma-se em hostilidade.<br />

Em Abraão, o sacrifício dá-se com o filho, Isaque. Depois de tanto ter<br />

esperado, nasce seu filho. Mas eis que a divindade retorna, não ao meio-dia (a hora<br />

do sol escaldante e das miragens no deserto, a hora em que há menos sombras,<br />

espectros), mas à noite, durante o sono (como num sonho), e chama Abraão. Este<br />

responde: “eis-me aqui”. Esse é o pacto. Quando um chama, o outro responde.<br />

A aliança entre o pai de Isaque e a divindade, materializada numa marca<br />

física (a circuncisão) precisa agora ser confirmada através de um sacrifício. A<br />

divindade pede a Abraão que tome o filho e caminhe por três dias até Moriá e lá<br />

entregue o filho, o único filho, o melhor de si, em sacrifício. Abraão levanta, pela<br />

manhã, e caminha com o herdeiro até o destino. O texto bíblico é lacônico sobre o que<br />

se passou na mente do pai durante os três dias. Não há profusão de detalhes, não há<br />

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descrição de estados da alma, não há uma voz interior discutindo consigo mesma.<br />

Abraão caminha em silêncio.<br />

Na montanha, Abraão inicia os gestos finais, no que é impedido por um anjo<br />

(um mensageiro). Tradicionalmente, essa seria a prova de Abraão. Ele confiou em<br />

Deus, mostrou até que ponto poderia ir com Deus, o que faria junto com Deus, por<br />

Deus; nisso se consolida a aliança. Só se pode ir até o fim com quem nos acompanha<br />

até o fim, com quem não desiste, na metade do caminho, sob argumentos ou<br />

desculpas, ou sob a pressão de outros caminhos. Abraão não discute, não pede<br />

razões. Confia e caminha. Ele anda com Deus, agora Deus pode andar com ele. Ele<br />

foi até o limite, e Deus agora poderá acompanhá-lo, sempre que ele quiser ir além<br />

dos limites.<br />

Deus assina, Abraão endossa, contra-assina. E vice-versa. Pai e Deus são<br />

cúmplices, aliados.<br />

Derrida nos propõe uma outra leitura, no que o seguimos. A prova de<br />

Abraão não é o sacrifício, o dom, a entrega de um bem incalculável, de um valor<br />

inestimável. A prova não é hospedar o estranho, entregar o bem mais precioso,<br />

entregar o melhor de si, entregar a garantia de seu futuro na medida em que o filho é<br />

garantia de sua continuidade, de sua descendência. A prova não é abrir mão do<br />

futuro. Também o é tudo isso, mas tudo isso só é possível a partir do segredo, do<br />

secreto, do oculto, do separado, isolado, segregado. De um segredo sem conteúdo,<br />

sem sigilo, mas do segredo do segredo do pedido de segredo. Deus não precisa pedir<br />

segredo de suas visitas, de suas conversas, de seus acordos, de seus pl<strong>ano</strong>s (como o<br />

de destruir Sodoma e Gomorra), de seus pedidos. Deus chega como visitante e<br />

Abraão o recebe como convidado. Isso é pacífico. Mas disso Abrão não partilha, não<br />

com-partilha, não divide com ninguém, não conta a ninguém. Sua relação com Deus<br />

é silenciosa, secreta, segregada, separada do mundo, e dos outros. Só há, nesse<br />

espaço oculto e isolado, Deus e Abraão, um homem e seu Deus. No que Deus e<br />

Abraão se tornam o Outro para os seus, o estranho para os familiares.<br />

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Somente é preciso pedir segredo quando não há mais segredo, ou quando o<br />

secreto já está ameaçado de divisão, de partilha. Aquele que confia algo a outro e lhe<br />

pede “não conte a ninguém, pois é um segredo”, está partilhando o secreto,<br />

dividindo-o, ao mesmo tempo em que está pedindo ao outro que não repita o seu<br />

gesto, que não conte, como ele contou, que não faça o que ele fez. Se fosse um<br />

segredo, não deveria, não poderia ter sido contado. Pedir segredo ao outro é já não<br />

mais estar nesse espaço do secreto. É dividir e transferir (para outro) algo que não<br />

conseguimos carregar e fazer com que, doravante, o outro o carregue em sua solidão,<br />

que ele mantenha unificado, isolado e oculto aquilo que já despedaçamos e<br />

dividimos partilhando. Abraão, após ouvir o estranho pedido do Outro, o pedido de<br />

um sacrifício, não divide com ninguém, não consulta ninguém, nem mesmo a velha<br />

senhora mãe do menino. E nem explica para o menino, justificando-se, o horror que<br />

está para cometer. O secreto é justamente isso: que não haja um terceiro entre nós<br />

dois.<br />

Assim a hospitalidade, segredo, dom e confiança se articulam. Hospedeiros<br />

que se alimentam e se servem mutuamente, num segredo em que nada é preciso<br />

pedir e no interior, no íntimo do qual não há hoste ou inimigo que possa adentrar,<br />

cada qual dando ao outro aquilo que é de valor incalculável: um afiança o outro, um<br />

garante, segura, assegura ao outro (a confiança). Deus não seria Deus se não tivesse<br />

criado o homem. Só, Deus não seria Deus, mas um solitário des-graçado, sem<br />

alimento para dar e sem alimento a receber. Daí sua necessidade do homem, de<br />

encantar o homem (encanto (carmen), de onde provém charme, tem a mesma raiz:<br />

charis), engraçá-lo, fazer com que este o adore, admire, ame.<br />

Do mesmo modo, reduplica-se a relação do Deus com o homem na relação<br />

do pai com o filho. O que são Deus e o homem assim também o devem ser pai e filho:<br />

hospitalidade, segredo, dom e confiança 3 .<br />

3 Sem nos esquecermos que o pt, em hospitalidade, é a raiz: poder, potência, força. E que está<br />

também na raiz de pater, pai, e de paternidade.<br />

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A paternidade, nesse sentido, não deixa de ser um dos primeiros nomes para<br />

isso que é inaugurado por Abraão, uma tradição da hospitalidade 4.<br />

Referências:<br />

BENVENISTE, É. (1969): Le vocabulaire des institutions indo-européennes:1. économie, parente,<br />

societé. Paris: Minuit.<br />

DERRIDA, J.(2000): Dar la muerte. Buenos Aires, Paidós.<br />

4 Conceder hospitalidade é um dever, reconhecido tanto no Antigo como no Novo Testamento. Era<br />

uma virtude patriarcal (Gn 18.3); estava prescrita na Lei (Lv 19.33,34); implicava responsabilidade<br />

pela segurança do hóspede (Gn 19.6 a 8); e a sua violação tinha mais importância que um caso<br />

meramente pessoal (Jz 19 e 20). Ser hospitaleiro é considerado um dever cristão (Rm 12.13; Hb 13.2;<br />

1 Pe 4.9), mais especialmente no caso de um bispo ou um superintendente (1 Tm 3.2). As<br />

circunstâncias em que se achava a Igreja Primitiva tornavam os cristãos particularmente<br />

dependentes de tal auxílio.<br />

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O Personagem Jesus Cristo: resenha crítica de MILES, Jack.<br />

Cristo: uma crise na vida de Deus. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 2002. *<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp<br />

Por Waldo César **<br />

O subtítulo do novo livro de Jack Miles: Uma crise na vida de Deus, revela de<br />

imediato a sua perspectiva sobre o Cristo que ele descreve num alentado volume,<br />

destaque nos balcões das livrarias - a cruz vazia de um preto carregado encimando<br />

uma capa de alvíssima brancura. No livro anterior, Deus: uma biografia (Prêmio<br />

Pulitzer 1996, já traduzido para 15 idiomas), tão polêmico quanto este, o subtítulo<br />

também expressa, ou quase, a substância da visão do autor.<br />

Com base no Tanach (a Bíblia hebraica) e no Novo Testamento, insiste em que<br />

não pretendia fazer relatos históricos, mas apenas interpretação literária, como se<br />

contemplasse o grande vitral de uma igreja, para o qual se deve olhar como obra de<br />

arte e não através, 'na tentativa de discernir os eventos históricos que estão por trás<br />

dele '. Com essa analogia, justifica o seu olhar não através da Bíblia, mas para o texto<br />

sagrado, na busca do significado do relato segundo sua lógica interna.<br />

O autor, nascido em Chicago, em 1942, tem títulos de sobra para obras de tal<br />

envergadura: ex-jesuíta, editor literário, doutor em Línguas do Oriente Médio pela<br />

Universidade de Harvard, presidente do Círculo Nacional de Críticos Literários.<br />

O resultado dos dois livros, no entanto (difícil separar um do outro, e o<br />

próprio Miles faz constantes referências ao primeiro, sobre Deus), lado a lado à sua<br />

* Originalmente publicado em Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 2002. Caderno<br />

Idéias, p. 6.<br />

** Sociólogo, jornalista e romancista, autor de 'TENENTE PACÍFICO'.


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riqueza documental e imaginativa, é freqüentemente ambíguo, por vezes<br />

contraditório e nem sempre original.<br />

A dificuldade parece reconhecida quando, por exemplo, se refere ao gênero<br />

misto dos Evangelhos, cuja leitura meramente literária, diz ele, 'significa defini-los<br />

como um gênero que combina história, ficção e conto de fadas ', a história entendida<br />

como base para a ficção e o conto de fadas.<br />

Neste sentido, convém lembrar que a Bíblia, como fonte literária, tem sido<br />

objeto de inúmeros outros trabalhos de natureza artística e ficcional, base para<br />

romances, filmes ou peças musicais, nos quais a força de sua natureza histórica torna-<br />

se um componente problemático, talvez inevitável. Creio que Robert Alter, em The<br />

art of biblical narrative (1981), aliás citado por Miles, nos oferece uma chave para a<br />

compreensão e uso estético e literário do texto sagrado. E o próprio autor afirma,<br />

curiosamente, que a decisão para escrever o Cristo muito deve a Bach e suas cantatas.<br />

Mesmo deixando de lado conceitos da Bíblia como livro revelado, sua narrativa, com<br />

muitos autores, distantes em séculos e diferentes contextos geográficos e culturais, se<br />

expressa como obra literária, na qual o conceito de divindade vai assumindo<br />

diferentes interpretações através dos discursos proféticos, não poucas vezes poéticos,<br />

mas sempre em contextos históricos definidos.<br />

Embora Miles não desconheça tal expressão da linguagem bíblica, com<br />

freqüência cai na tentação de certo literalismo ao citar integralmente numerosos<br />

textos bíblicos e tirar deles conclusões conforme a letra, na busca de uma 'lógica<br />

interna ' que despreza o lado simbólico, a 'reserva de sentido ' da qual falam os<br />

hermeneutas, daquilo que ultrapassa o texto em si. Além de, por vezes, usar de ironia<br />

talvez fácil, como no primeiro capítulo ( 'O Messias, ironicamente '); ou de possível<br />

contradição, ao reconhecer, na referência à 'assexualidade do Pai e a sexualidade do<br />

Filho ', que as comparações bíblicas entre noiva e noivo, marido e esposa expressam<br />

'relacionamentos metafóricos '.<br />

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Mas no final do mesmo capítulo, Miles deixa de lado a alegoria, para<br />

perguntar (literalmente): 'Que estranho casamento espera um noivo que é também<br />

um cordeiro? ' Assim como levanta perguntas irrelevantes ao criticar a 'extrema<br />

economia narrativa ' do texto sagrado, justamente uma das notáveis características do<br />

estilo bíblico, quando descreve o encontro de Jesus com Nicodemos: Onde está Jesus<br />

hospedado quando Nicodemos vai vê-lo? Como se parece esse lugar? Conversam em<br />

pé ou sentados? Que roupa usam? Etc.<br />

Estas e outras questões, válidas num contexto romanesco, permeiam vários<br />

trechos de Cristo: uma crise na vida de Deus. Que crise é essa? Diz Miles que o Deus<br />

encarnado 'começou seu trabalho com um ato de arrependimento público ', e tudo<br />

quanto se segue está sob o signo desse arrependimento.<br />

Tese no mínimo polêmica: Especialista sugere que Deus teria tentado, com<br />

morte e ressurreição, absolver-se de derrota<br />

Ao perguntar quem é Deus, ou qual o caráter do Deus do Antigo<br />

Testamento, Jack Miles afirma que não tendo Ele alcançado seus propósitos quanto<br />

às promessas para o povo escolhido, decide tornar-se judeu; e com sua própria morte<br />

e ressurreição não apenas tenta absolver-se de uma derrota histórica, como oferece a<br />

promessa de uma vitória cósmica ao comprometer-se a 'enxugar cada lágrima ' de<br />

toda a humanidade. Então, quando Cristo aceita ser batizado por João, é Deus quem<br />

se arrepende - termo, é bom lembrar, que faz parte da literatura bíblica, expressando<br />

a interpretação e a linguagem possíveis aos escritores de então. Porém, Miles vai<br />

além, dizendo que como ninguém pode matar Deus, a crucificação se torna um<br />

suicídio divino.<br />

Aqui também, embora radicalizando a interpretação da 'morte expiatória ', o<br />

autor não escapa de uma perspectiva teológica e se aproxima dos teólogos que<br />

proclamam o aniquilamento do Deus cristão que se crucifica em relação ao mundo.<br />

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Dietrich Bonhoeffer, o teólogo luter<strong>ano</strong> alemão enforcado por Hitler aos 39 <strong>ano</strong>s de<br />

idade, escreveu: 'Deus deixa-se desalojar do mundo e pregar numa cruz. Deus é<br />

impotente e fraco no mundo, e só assim nos ajuda e está conosco. ' Tentando basear-<br />

se apenas no Jesus histórico, Miles, até onde chega a sua imaginação, proclama um<br />

Cristo não como origem e fruto de um dogma religioso, mas simplesmente premissa<br />

de uma obra de arte - o Novo Testamento. Mas ao utilizar principalmente o nome<br />

Cristo, de certa forma reconhece a herança profética que permeia a vida de seu<br />

personagem - o Xristos do grego, ou seja, 'o ungido ', o que indica não um<br />

sobrenome, mas uma função especial, messiânica.<br />

A tarefa é penosa, beira o paradoxo da relação entre tempo e eternidade,<br />

história e fé, não im porta se o tratamento é histórico, teológico ou literário. Difícil<br />

escapar das falácias humanas sobre o transcendente, do 'mysterium terrible et<br />

fascinans'' assinalado por Rudolph Otto. Ouso dizer que em matéria de ficção, prefiro<br />

O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, ateu declarado, mas cuja<br />

qualidade literária e fértil imaginação nos apresentam um Jesus plenamente hum<strong>ano</strong>,<br />

porém onde o sobrenatural, com seus milagres, ocupa um espaço inevitável - e de<br />

beleza comovente.<br />

De toda maneira, como obra extremamente bem documentada, excelente<br />

tradução, o novo livro de Jack Miles é de grande importância no conjunto atual de<br />

numerosas publicações do gênero - e desse espantoso renascimento universal da<br />

religiosidade. Mais uma oportuna provocação para teólogos e estudiosos das<br />

religiões e da espiritualidade. Para Deus, pouco importa. E isto já insinuava Otto<br />

Maria Carpeaux num brilhante ensaio sobre a teologia dialética de Karl Barth: 'O que<br />

o mundo diz sobre, em favor de, ou contra Deus não tem importância alguma. '<br />

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Do Bode Expiatório à Galinha Preta:<br />

contraposições entre as teorias sacrificiais de René Girard e de<br />

Marcel Mauss & Henri Hubert<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp<br />

Por Adriane Luísa Rodolpho *<br />

Resumo:<br />

Este artigo retoma um dos capítulos da minha dissertação de mestrado 1, onde são<br />

problematizadas duas posturas analíticas referentes ao tema do sacrifício. A dissertação teve<br />

por objeto de análise o rito sacrificial de animais no contexto de uma das religiões afrobrasileiras,<br />

a Quimbanda ou Umbanda Cruzada. Atenho-me a duas referências, que<br />

considero fundamentais: René Girard e Marcel Mauss & Henri Hubert. René Girard é um<br />

antropólogo e crítico literário contemporâneo. Sua obra propõe uma análise sobre o sacrifício<br />

que, polêmica, merece a referência. Mauss e Hubert são meus mapas de navegação para a<br />

compreensão do fenômeno. É a partir de suas análises que reflito sobre o sacrifício na<br />

Quimbanda, partindo daí para águas mais profundas. Uma breve apresentação, portanto, de<br />

duas linhas teóricas diferentes na apreciação do tema.<br />

Observei atentamente o vôo das aves de garras aduncas, revelando as que são<br />

por natureza faustas ou infaustas; como revelei o sustento que nutre cada<br />

uma, os amores, as convivências, as inimizades existentes entre elas. E qual<br />

macieza e cor devem ter as suas vísceras para que se tornem agradáveis aos<br />

deuses. E o multiforme aspecto favorável da bílis e do fígado. Iniciei os<br />

homens na arte difícil de queimar os adiposos membros e o osso sacro das<br />

vítimas. Tornei claros aos seus olhos os signos do fogo, que antes lhe estavam<br />

encobertos e obscuros.<br />

A Teoria Sacrificial de René Girard<br />

ÉSQUILO, Prometeu Agrilhoado<br />

Este diálogo inicia com a apresentação da teoria expressa por René Girard.<br />

Polêmico, este autor propõe uma leitura sobre o sacrifício que se pretende definitiva.<br />

A generalidade das concepções expressas pelo autor é remarcável.<br />

* Bolsista Prodoc/Capes junto à Escola Superior de Teologia. Doutora em Antropologia Social e<br />

Etnologia pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS-Paris) e Mestre em<br />

Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS).<br />

1 “Entre a Hóstia e o Almoço: Um estudo sobre o sacrifício na Quimbanda”. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS,<br />

1994.


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Girard, basicamente, propõe a construção de uma Antropologia Geral na<br />

qual vai se delinear não apenas a manifesta teoria definitiva sobre o sacrifício mas<br />

ainda, o desvelamento de uma teoria sobre o religioso, em sua totalidade. A palavra<br />

reflete bem o posicionamento deste autor: para ele, o óbvio é "revelado", os<br />

fenômenos sobre os quais muitos se debruçaram ganham agora, graças à sua teoria, a<br />

explicação "verdadeira". A pretensão deste autor poderia render muitas páginas de<br />

comentários, mas passo diretamente à exposição de seus argumentos. Antes, cabe<br />

ressaltar, o próprio autor alerta para o fato de que suas hipóteses não possuem uma<br />

verificabilidade imediata. Como um "ato de fé", Girard propõe que aceitemos, ou<br />

não, a (sua) "revelação". Discutindo e criticando todos aqueles que não perceberam a<br />

obviedade dos fatos que corroboram sua teoria, este autor discorrerá sobre<br />

etnografia, psicanálise e literatura, arregimentando recortes precisos que se encaixam<br />

num grande "patchwork" (recuso-me a usar o termo "bricolage" consagrado por Levi-<br />

Strauss a fim de manter a exata distância das argumentações teóricas).<br />

Concebendo as sociedades como eminentemente violentas, Girard afirma<br />

que o grande esforço hum<strong>ano</strong> sempre foi dirigido para a expulsão deste componente.<br />

Sobre a violência, fundadora, organiza-se a cultura. Termos tão gerais, soltos em<br />

frases vagas e pretensiosas, abundam no texto de Girard; entretanto, a minúcia com a<br />

qual o autor se joga em sua defesa coloca-nos em um grande círculo, tautológico, que<br />

merece ser observado de perto.<br />

Para o autor, o conceito de mimésis é fundamental: eu não desejo nada até o<br />

momento em que um outro o faça. O desejo não se volta, aqui, para o sujeito ou para<br />

o objeto: um terceiro termo deve ser acrescentado, o rival ou o modelo. A partir do<br />

desejo deste rival, eu possuo um modelo de desejo. Por uma argumentação que trilha<br />

frases como:<br />

o homem deseja intensamente, mas ele não sabe exatamente o quê,<br />

pois é o ser que ele deseja, um ser do qual se sente privado e do qual<br />

algum outro lhe parece ser dotado (...) Se o modelo, aparentemente já<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 33


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dotado de um ser superior, deseja algo, só pode se tratar de um<br />

objeto capaz de conferir uma plenitude de ser ainda mais total 2<br />

O autor chega ao ponto: desta mimésis constitutiva do ser hum<strong>ano</strong>, o<br />

resultado é o conflito, a violência. Esta é o instrumento, o objeto e o sujeito de todos<br />

os desejos. Ora, a partir deste momento, os homens estão expostos à sua ação, e é<br />

necessário que algo ocorra para impedir a escalada, apocalíptica, da violência.<br />

Estamos no que o autor denomina enquanto crise sacrificial. É o momento da<br />

violência, da perda das diferenças, momento em que toda a ordem cultural encontra-<br />

se abalada. Por uma espécie de contágio, esta violência impura se alastra e os homens<br />

correm o risco de matarem-se uns aos outros, destruindo a sociedade.<br />

A possibilidade de existência da humanidade vem com a resolução da crise<br />

sacrificial. Através do mecanismo de unanimidade da violência, esta é canalizada<br />

sobre uma vítima, sacrificável e não vingável que, como um imã, atrairá para si todos<br />

os elementos nocivos daquela violência recíproca e desenfreada. A comunidade, una,<br />

renasce no ódio à vítima expiatória. As diferenças perdidas na crise sacrificial<br />

transformam-se em identidade, coletiva, frente ao mal que deve ser expulso. A partir<br />

desta transferência coletiva, desta unanimidade violenta, funda-se o religioso. A<br />

vítima expiatória é o que permite que a ordem e a estabilidade voltem a reinar na<br />

sociedade, uma vez que a violência maléfica e contagiosa foi transformada em<br />

violência "benéfica": a vítima é sacralizada. Segundo Girard,<br />

algo diferente e ainda mais essencial está em jogo se a produção do<br />

próprio sagrado e a transcendência que o caracteriza provêm da<br />

unanimidade violenta, da unidade social feita e refeita através da<br />

"expulsão" da vítima expiatória. Se é isto que ocorre, o que está em<br />

causa aqui não são somente os mitos, mas os rituais e o religioso em<br />

sua totalidade. (op.cit., p. 113)<br />

A vítima expiatória é "fundadora" da ordem cultural no momento em que<br />

interrompe o processo de destruição (acabando com o círculo vicioso da violência<br />

2 Girard, R. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra/Umesp, 1990: 180.<br />

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recíproca e desenfreada) e possibilitadora da origem de uma nova estruturação, a da<br />

violência restrita ao rito sacrificial.<br />

É necessário que esta vítima, sobre a qual recairão todos os males do social,<br />

encontre-se nas categorias de "sacrificável" e "não-vingável". O assassinato da vítima<br />

não deve ser reclamado por ninguém pois, de outro modo, a unanimidade não se<br />

estabelece lançando a sociedade num processo infinito de represálias, "vendettas" e<br />

vinganças intermináveis. A função do ritual, então, encontra-se na purificação desta<br />

violência, no desvio desta para as vítimas. A distinção entre a violência maléfica e<br />

benéfica torna-se essencial: os homens recorrem a segunda com o intuito de livrarem-<br />

se da primeira. Realmente, tenho que concordar com Girard quando este coloca que<br />

não temos mais guia nem modelo; não participamos de nenhuma<br />

atividade cultural passível de definição. Não podemos invocar a<br />

autoridade de nenhuma disciplina reconhecida. O que pretendemos<br />

fazer é tão estranho à tragédia ou à crítica literária quanto à etnologia<br />

ou à psicanálise. (op.cit., p.98)<br />

A Teoria Sacrificial de Mauss & Hubert<br />

Passemos às contribuições de dois outros autores fundamentais para a teoria<br />

do sacrifício: Marcel Mauss e Henri Hubert. Bastante menos pretensiosos que Girard,<br />

estes autores, num texto datado de 1899, analisam de forma brilhante a<br />

complexidade da qual se reveste uma instituição como o sacrifício: a variabilidade de<br />

suas manifestações e a grande unidade de sua estrutura são apresentados de forma<br />

lapidar neste "Ensaio sobre a Natureza e a Função do Sacrifício" 3.<br />

Após realizar uma rápida análise das contribuições da Escola Inglesa (Tylor,<br />

Smith e Frazer) 4, os autores se propõem a analisar o sacrifício a partir de duas<br />

religiões - uma monoteísta e outra politeísta - e seus textos sagrados: o ritual védico e<br />

3 In Œuvres. Les fonctions sociales du sacré. Paris: Les éditions de Minuit, 1968.<br />

4 Mauss & Hubert criticam, especialmente, o fato de estes autores analisarem o sacrifício em<br />

sociedades totêmicas, tomando-as como pressuposto universal.<br />

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o sacrifício bíblico. A partir de casos típicos, os autores buscam algumas conclusões<br />

de cunho mais geral. Acredito que, para tanto, foram eles bem sucedidos. A teoria<br />

sacrificial de Hubert & Mauss impressiona tanto por sua clareza e humildade, num<br />

certo sentido (em sua falta de pretensão), quanto pela profundidade de seus<br />

resultados.<br />

36<br />

De início, os autores chamam a atenção para o fato de que a grande<br />

variabilidade entre as práticas sacrificiais podem levar-nos a acreditar que se tratam,<br />

por vezes, de fatos díspares e opostos. Entretanto, todas estas práticas possuem um<br />

cerne comum, uma unidade, e é através do esquema do sacrifício que os autores<br />

pretendem demonstrá-la. Este esquema, basicamente, analisa três momentos do rito:<br />

1) uma entrada; 2) o acontecimento em si, no qual são analisados o sacrificante, o<br />

sacrificador, o lugar e os instrumentos; e 3) uma saída. Antes, porém, de observar<br />

estes momentos com mais vagar, sigo os autores em sua primeira definição de<br />

sacrifício: “o sacrifício é um ato religioso que, pela consagração de uma vítima,<br />

modifica o estado da pessoa moral que o executa ou de alguns objetos aos quais ela<br />

diz respeito." (op.cit., p. 205)<br />

O fundamental a reter nesta fórmula é a idéia de consagração. Um sacrifício<br />

sempre implica numa consagração, que modifica o estado das coisas: passa-se do<br />

domínio do prof<strong>ano</strong> para o do sagrado. O inverso também ocorre; basicamente, o<br />

sacrifício é um processo de sacralização e dessacralização de algo. Entretanto, esta<br />

consagração pode ser de vários tipos (como a consagração de um rei, por exemplo,<br />

que não interfere em nada além da pessoa do rei) sendo que o sacrifício é de um tipo<br />

muito particular: seu traço distintivo é que a consagração ultrapassa a coisa<br />

consagrada. Neste sentido, este algo consagrado intermedia a relação sacrificante X<br />

divindade. A vítima do sacrifício possibilita o contato entre estes dois mundos, o<br />

sagrado e o prof<strong>ano</strong>. É fundamental que esta vítima seja destruída pela consagração,<br />

o que confere um caráter sacrificial mesmo aos rituais "não-sangrantes" como o caso<br />

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das oferendas vegetais, libações de vinho ou leite. O objeto assim destruído é a<br />

vítima sacrificial.<br />

Mauss & Hubert propõem uma primeira classificação para os sacrifícios: os<br />

pessoais e os objetivos. Nos primeiros, a personalidade do sacrificador é diretamente<br />

atingida; nestes outros, a ação sacrificial recai sobre os objetos que se quer atingir.<br />

Segundo os autores, esta definição "supõe, em efeito, a unidade genérica dos<br />

sacrifícios" apesar do fato que "as ocasiões de sacrificar são inumeráveis, os efeitos<br />

desejados muito diferentes e a multiplicidade de fins implica aquela dos meios".<br />

(op.cit., p.206). Voltando ao esquema do sacrifício, vemos que este possui suficiente<br />

flexibilidade em perceber a unidade do sistema sacrificial.<br />

Não há rito sacrificial sem uma "entrada": é necessário que o estado natural<br />

dos envolvidos no sacrifício seja alterado. Antes deste, nem sacrificante, sacrificador,<br />

vítima ou os objetos envolvidos no ritual estão em um grau específico para o contato<br />

com o sagrado. Este estado deve ser alterado, transformado religiosamente. O<br />

prof<strong>ano</strong> é abolido na entrada do sacrifício: todos os ritos de entrada têm esta função.<br />

Com relação ao sacrificante, temos que este pode ser um indivíduo ou o<br />

grupo, a coletividade que assiste à cerimônia. A partir do ritual do diksâ (preparação<br />

do sacrificante ao sacrifício do soma, da literatura védica), os autores partem para<br />

uma uniformidade de elementos comuns a esta etapa: a sacralização do sacrificante é<br />

feita através de restrições (não cortar cabelos, unhas, etc..) e regressões ("volta-se" a<br />

um estado inicial, de feto, que irá "renascer" ou transformar-se): "tudo o que toca aos<br />

deuses deve ser divino;o sacrificante é obrigado a tornar-se deus ele próprio para<br />

estar em estado de agir sobre eles". (op.cit., p. 212. Grifo meu)<br />

Uma série de purificações, consagrações e outros ritos preparam o<br />

sacrificante, prof<strong>ano</strong>, a executar seu papel no espaço sagrado do sacrifício. Com<br />

relação ao sacrificador, a princípio este não deve ser motivo de muitos rituais iniciais:<br />

alguns cuidados são suficientes, uma vez que o sacrificador é geralmente algum<br />

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sacerdote, o que já lhe confere uma proximidade bem maior ao sagrado. Apenas,<br />

pelos ritos, aumentando sua santidade, ele facilita e sobrecarrega seu potencial de<br />

relação com o sagrado. Isto é necessário para que ele cumpra, por vezes, o papel de<br />

intermediário, de substituto da pessoa ou da sociedade em nome da qual ele agirá.<br />

Neste sentido, seu papel é o de um bode expiatório, carregando consigo as mazelas<br />

do indivíduo ou do grupo.<br />

38<br />

Com relação aos locais e aos instrumentos, Mauss & Hubert nos falam da<br />

imposição de que o sacrifício não ocorra fora de um local, de um cenário<br />

"sacralizado": de outra forma, tudo deve ocorrer para um diferenciamento do<br />

assassinato. Não se "mata" uma vítima, a morte está fora deste esquema de<br />

pensamento. A vítima é sacrificada, e como tal, envolta num ritual coletivo<br />

impregnado pelo sagrado: “o local da cena deve ser sagrado; fora de um local santo,<br />

a imolação não é senão um assassinato". (op.cit., p. 221)<br />

A construção de locais sagrados, ela mesma, é realizada a partir de uma série<br />

de sacrifícios, sejam diários (para sua manutenção) ou expiatórios (para garantir sua<br />

pureza, eliminando consecutivas "poluições" que a vítima levaria consigo). A<br />

construção, simbólica, dos terreiros que descrevo na dissertação assim o comprova:<br />

os locais são definidos enquanto sagrados a partir do momento em que os ritos assim<br />

os oficializam.<br />

A vítima, para Mauss & Hubert, é também um espaço sagrado, sua<br />

corporificação uma vez que, em torno dela, a irradiação do sagrado é intensa,<br />

baixando de grau à medida que desta se distancia. Os cuidados com a vítima são<br />

também anteriores ao rito propriamente dito: ela deve ser sadia, ter tal ou qual cor,<br />

deve possuir as características necessárias relativas ao fim que se deseja 5 .<br />

5 A etnografia da pesquisa descreve a especificidade dos animais a serem sacrificados, segundo<br />

critérios de cor, espécie, sexo. Os animais são designados diferentemente em relação às entidades<br />

as quais o sacrifício se dirige.<br />

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O animal deve ainda passar por uma série de procedimentos a fim de se<br />

tornar uma vítima propícia ao sacrifício: alguns ornamentos, embebedamento,<br />

banhos, apelações de consentimentos aos deuses etc. Todos estes procedimentos<br />

rituais, combinados das mais diversas formas, têm por função qualificar a vítima<br />

enquanto sagrada e acentuar o caráter de voluntariedade do sacrifício (sempre<br />

lembrar que o sacrifício não é uma morte). O objetivo: liberar algo da vítima que o<br />

sacrifício tem por finalidade mesma liberar (sua "alma", seu espírito).<br />

Entretanto, a vítima não pode ser sacralizada a ponto de não reter mais<br />

relações com o prof<strong>ano</strong>. Este fim é adquirido com uma maior proximidade com o<br />

sacrificante, ou seja, a partir de procedimentos que remetam a princípios de magia<br />

simpática (o toque das mãos na vítima, por exemplo). A vítima representa, assim,<br />

não só os deuses, mas igualmente o sacrificante (e/ou o grupo que ele representa), e<br />

seu destino - ou o desenrolar do sacrifício - terá resultados diretos nestes.<br />

É chegado o momento do sacrifício, todos os elementos já estão configurados<br />

de maneira adequada para que o ritual tenha início. No exemplo hindu fornecido<br />

pelos autores, a vítima deve ser lamentada, e o perdão a ela e seus semelhantes deve<br />

ser solicitado por aqueles que executam o ato sacrificial. Rituais de libações e<br />

expiações são, portanto, imprescindíveis neste momento. É necessário que a vítima<br />

não seja vingável, que o ato sacrílego que se anuncia não traga conseqüências<br />

funestas aos participantes. O autor da morte deve ser punido (no exemplo grego e no<br />

hindu; op.cit., p. 234) e rituais de expiação e purificação devem ser realizados.<br />

No momento em que a vítima é sacrificada, seu espírito parte. É o momento<br />

solene do rito. Como uma força, ela é ambígua, pode ser benéfica ou d<strong>ano</strong>sa. É<br />

necessário, portanto, em todos os ritos de morte limitar, canalizar esta força, dirigi-la:<br />

"é para isso que servem os ritos" (op.cit., p. 235). Os autores nos chamam a atenção<br />

para o fato de que as vítimas animais são geralmente degoladas. O ato sacrificial<br />

deve ser exato, preciso, rápido; não pode haver indecisões ou fraquezas: é necessário<br />

que as más influências não tenham tempo de aí se imiscuir.<br />

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Na seqüência, os cuidados com o sangue que escorre da vítima e com seu<br />

corpo são bastante variados. Essencialmente, ambos foram sacralizados, e como tal,<br />

não podem entrar em contato impuro com o prof<strong>ano</strong>. Nas diversas sociedades, a<br />

vítima pode ser despedaçada, consumida, queimada; de qualquer forma, aos seus<br />

restos são rendidas homenagens. Basicamente, como o espírito já pertence totalmente<br />

ao mundo sagrado, é com relação aos restos da vítima que os efeitos úteis do<br />

sacrifício se desenvolverão: "por esta destruição, o ato essencial do sacrifício está<br />

executado. A vítima está separada definitivamente do mundo prof<strong>ano</strong>; ela está<br />

consagrada, ela está sacrificada". (op.cit., p. 236)<br />

A vítima serve ao consumo, tanto divino quanto hum<strong>ano</strong>, seja inteira, em<br />

partes ou dividida entre ambos. No caso de não ser inteiramente oferecida aos<br />

deuses, ocorre a ingestão pelos participantes (os restos servem para comunicar seja<br />

ao sacrificante, seja aos objetos do sacrifício, as virtudes religiosas suscitadas pela<br />

consagração ritual). É um momento de contrafluxo: tanto o sacrificante,<br />

anteriormente, passou de si algo para a vítima pelo contato de suas mãos quanto,<br />

agora, pela ingestão da mesma, reterá dela este algo (que pode ser entendido<br />

enquanto as "qualidades" novas adquiridas pelo sacrifício). Este basicamente, é o<br />

sentido do consumo.<br />

Com relação aos deuses, também estes ingerem da vítima a sua parte, seja<br />

apenas a fumaça (como nos rituais gregos) seja assada:<br />

Logo que o deus interveio no sacrifício, ele está obrigado a comer<br />

realmente e substancialmente a carne sacrificada; é a "sua carne" (...)<br />

A carne cozida, reservada ao deus, lhe é apresentada e está colocada à<br />

frente dele. Ele deve consumi-la. (...) (op.cit., p. 239) (grifo meu)<br />

Cuidados ainda são necessários com o que sobra destes restos sacrificiais,<br />

uma vez que não podem ser jogados fora, ao azar. Uma série de interdições e<br />

procedimentos devem ser respeitados, depositando este material (seja a cinza do<br />

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animal queimado, sejam os restos não consumidos por deuses e homens) em um<br />

local igualmente consagrado ou, pelo menos, entendido enquanto religioso 6.<br />

Os autores chamam a atenção para as analogias entre as atribuições aos<br />

deuses e aos homens: aspersão de sangue, contato com o corpo da vítima, comunhão<br />

alimentar, simbólica ou concreta. Todos estes ritos são semelhantes uma vez que<br />

perseguem o mesmo fim, a comunicação entre os mundos sagrado e prof<strong>ano</strong>; mais,<br />

além do contato, um entrosamento, "un mélange". A vítima faz a mediação entre as<br />

duas instâncias:<br />

Nos dois casos, trata-se de fazer comunicar a força religiosa que as<br />

consagrações sucessivas acumularam no objeto sacrificado, de um<br />

lado com o domínio do religioso, de outro com o domínio prof<strong>ano</strong> ao<br />

qual pertence o sacrificante. (op.cit., p. 249)<br />

Mais que possibilitadora, a vítima garante a continuidade entre os dois<br />

sistemas, sendo o elo de ligação, o intermediário que possibilita o contato com o<br />

mundo sagrado. Resumindo, trata-se de iniciar o processo por uma sacralização que,<br />

acumulada, deve ser dirigida tanto para o mundo sagrado quanto para o prof<strong>ano</strong>.<br />

Mauss & Hubert nos exemplificam com uma curva, que sai de um estado inicial do<br />

qual se eleva até atingir um máximo de religiosidade para, em seguida, voltar ao<br />

estágio inicial. O processo final é a saída.<br />

Após o sacrifício, os contatos com o sagrado não foram rompidos; é<br />

necessário, portanto, uma série de procedimentos a fim de que os envolvidos no<br />

ritual possam voltar ao âmbito do prof<strong>ano</strong>. Com relação aos objetos e aspectos<br />

materiais, são lavados, purificados e depositados em locais sacros. As pessoas<br />

envolvidas igualmente passam por procedimentos purificatórios e expiatórios (a fim<br />

de livrarem-se de possíveis faltas cometidas durante o sacrifício). A função destes<br />

ritos de saída é análoga àqueles de entrada: eles limitam a ação da consagração,<br />

6 Com relação à etnografia, é o que observamos no caso da “Levantação”, etapa final do rito<br />

sacrificial nas religiões afro-brasileiras: os restos rituais são depositados em locais consagrados às<br />

entidades: campos, matas, praias.<br />

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restringindo-a somente ao momento do rito. Após este, como antes, os envolvidos no<br />

sacrifício são liberados, podendo voltar à vida comum.<br />

42<br />

Descreve-se aqui o movimento final na curva proposta por Mauss & Hubert<br />

com relação ao sacrifício; apenas, a curva projetada pela ação da vítima será sempre a<br />

que atingirá o maior grau de religiosidade, a maior altura.<br />

A contribuição destes autores é ainda mais ampla do que este breve resumo<br />

possa demonstrar. Um outro ponto fundamental refere-se aos diversos tipos de<br />

sacrifícios que podem conformar os diferentes ritos. Após exaustivos exemplos, os<br />

autores demonstram que o maior problema com relação às análises geralmente<br />

decorre do fato de que, onde vários procedimentos sacrificiais (sejam de expiação, de<br />

comunhão, curativos, iniciatórios, de resgate, sacralizantes ou mesmo de-<br />

sacralizantes etc.) encontram-se correlacionados em um sacrifício, a análise geralmente<br />

escolhe um, denominado como geral nada mais do que uma ênfase que pode estar acontecendo.<br />

Como se vê, as práticas sacrificiais são extremamente variadas, bem como<br />

seus objetivos e seus meios. Ora, para tanto, a combinação de elementos atuantes em<br />

cada sacrifício vai igualmente demonstrar esta variabilidade. Entretanto, a estrutura<br />

proposta pelos autores manter-se-á sempre presente, uma vez que o cerne, a unidade<br />

do sistema sacrificial é idêntica. Chega-se assim a uma segunda definição de<br />

sacrifício feita pelos autores:<br />

Este procedimento - o do sacrifício- consiste em estabelecer uma<br />

comunicação entre o mundo sagrado e o mundo prof<strong>ano</strong> por<br />

intermédio de uma vítima, quer dizer, de uma coisa destruída no<br />

curso da cerimônia". (op.cit., p. 302)<br />

A comunicação entre os dois mundos, como referida acima, só é possível<br />

pela intermediação da vítima, irremediavelmente destruída no curso da cerimônia.<br />

Ela o é para que outros não o sejam (o sacrificante, o sacrificador), restando os dois<br />

mundos penetrados, unidos ainda que distintos. Para finalizar, como nos dizem<br />

Mauss & Hubert:<br />

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Ora, este caráter de penetração íntima e de separação, de imanência e<br />

de transcendência é, no mais alto grau, distintivo das coisas sociais.<br />

Elas também existem ao mesmo tempo, segundo o ponto de vista no<br />

qual nos colocamos, dentro e fora do indivíduo. Compreendemos<br />

desde então o que pode ser a função do sacrifício, abstração feita dos<br />

símbolos pelas quais o crente exprime a si mesmo. É uma função<br />

social porque o sacrifício se relaciona às coisas sociais". (op.cit., p.<br />

306)<br />

A citação imediatamente acima demonstra, acredito, os motivos de minha<br />

preferência pelas teorias sobre o sacrifício expressas por Mauss & Hubert na<br />

compreensão do objeto de pesquisa em questão na dissertação de mestrado. Ora,<br />

basicamente, a maioria das hipóteses de Girard não se sustentam por muito tempo;<br />

sua teoria do sacrifício como alternativa dada na crise sacrificial beira a<br />

esquizofrenia. Entretanto, grande parte dos subsídios de Girard provém de Mauss &<br />

Hubert, aos quais ele tanto se preocupa em criticar: violência, expiação pela vítima,<br />

contaminação à sociedade. Mauss & Hubert bem já avisavam que as teorias sobre o<br />

sacrifício são tão velhas quanto à religião... Michèle Bertrand igualmente chama a<br />

atenção para o fato de que as idéias que Girard articula estarem presentes já nos<br />

gregos, e nos filósofos políticos do século XVII:<br />

violência universal, desejo mimético, vítima emissária,<br />

funcionamento mistificador dos sistemas culturais, nenhuma destas<br />

idéias, tomadas em si, são, propriamente falando, originais (...).<br />

Homo homini lupus, dizia Hobbes. No Léviathan deste mesmo<br />

Hobbes, a teoria da rivalidade mimética já está inteira. Enfim, quem<br />

melhor que Marx demonstrou o mecanismo mistificante da<br />

ideologia? Quem melhor mostrou como, nas relações sociais, a<br />

violência está em obra, e ao mesmo tempo, desconhecida? 7<br />

A originalidade de Girard decorre do fato de combinar estes elementos em<br />

uma teoria que busca, incessantemente, a verificação de sua lógica em vários setores<br />

da produção intelectual. À psicanálise de Freud, às análises sobre a tragédia grega, à<br />

própria obra de Mauss & Hubert sobre o sacrifício, Girard preocupa-se<br />

7 Bertrand, Michelle & Bureau, René. “Le mythe dévoilé?” Extrait des Archives de Sciences Sociales des<br />

Religions (54/2) 1982: 139.<br />

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obsessivamente em a elas dirigir críticas, uma vez que outros não "perceberam"<br />

nestas a crise sacrificial, a violência mimética etc...<br />

44<br />

Para finalizar, Bertrand chama a atenção para o principal aspecto, a meu ver,<br />

implícito nas proposições de Girard:<br />

Apesar da obsessão de R.G. em fazer reconhecer a cientificidade de<br />

sua tese, não é de uma teoria científica, mas de um mito, que se trata.<br />

Sem dúvida não há corte radical entre pensamento mítico e<br />

pensamento científico. Ambos visam um domínio teórico e prático do<br />

mundo; ambos procuram recompor a unidade do universo. Existe,<br />

entretanto, uma diferença. O pensamento científico é um sistema<br />

aberto. Colocado à prova, ele se reconstrói, admite seus limites, aceita<br />

a possibilidade do erro: tudo isto faz parte de sua dinâmica e é a<br />

condição de seu desenvolvimento. O pensamento mítico, ao<br />

contrário, funciona em circuito fechado. Tudo deve entrar em sua<br />

lógica ou ser rejeitado. O mito não progride. Ele se repete. Ele é<br />

sempre o fundamento radical e a verdade última. Ora, é bem nestes<br />

termos que R.G. nos apresenta sua tese. Não poderíamos lhe criticar o<br />

fato de haver inventado um mito. Mas de não reconhecer que se trata<br />

de um. (op.cit., p. 306)<br />

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Girard e o aprisionamento do desejo<br />

Por Mary R. G. Esperandio *<br />

Resumo:<br />

Este artigo apresenta a concepção girardiana de desejo e levanta algumas questões acerca do<br />

mesmo. Trata-se de colocar em relevo o modo como Girard concebe o desejo e o ser hum<strong>ano</strong>,<br />

problematizando se tal concepção abarca, de fato, “todas” as possibilidades de compreensão<br />

das formações desejantes, como parece pretender o autor.<br />

Palavras-chave:<br />

desejo – desejo-mimético – espaço potencial – crise sacrificial – violência.<br />

Introdução<br />

As manchetes dos principais jornais de domingo, 9 de novembro de 20<strong>03</strong><br />

anunciam: “Guerra ao lado do Brasil”; “Atentado mata 11 e fere 122 na Arábia, diz<br />

Governo”; “Iraque: 150 soldados dos EUA morreram no pós-guerra” 1.<br />

Três exemplos de “violência organizada” que grassa no mundo<br />

contemporâneo. E nos perguntamos sobre a razão da violência. Girard afirma que<br />

“não há (...) violência que não possa ser descrita em termos de sacrifício” e se<br />

interroga “por que ninguém se pergunta sobre as relações entre o sacrifício e a<br />

violência?” (Girard, 1990, p. 13, 14).<br />

Pressuposta, portanto, a relação entre violência e sacrifício, Girard vai<br />

investigar e explicitar como é que esta se dá. E depara-se com algo que considera<br />

inusitado: o desejo mimético. Para ele, a violência - que o desejo mimético faz<br />

aparecer – é o acontecimento fundador: da religião, das relações sociais, da cultura.<br />

* Doutoranda em Teologia Prática (IEPG). Mestre em Teologia Prática (IEPG). Psicóloga (Unisinos).<br />

1 Jornal Zero Hora, Folha Online, O Globo Online, respectivamente.<br />

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A presente reflexão não pretende comentar toda a obra deste autor, mas trata<br />

de enfocar, especificamente, a concepção girardiana do desejo e levantar algumas<br />

questões sobre a mesma.<br />

Violência e sacrifício<br />

Seria legítimo pensar a violência, a religião, a constituição do ser hum<strong>ano</strong> e<br />

as organizações sócio-culturais como análoga ao sacrifício, tal como nos coloca<br />

Girard?<br />

Para este autor, parece haver algo de mistério rondando a questão do<br />

sacrifício, como se houvesse algo essencialmente da ordem do desconhecido. E<br />

pergunta-se: o que distingue o sacrifício do assassinato? Que proximidade é essa?<br />

Girard levanta uma hipótese: Em ambos, há a presença da violência. Daí, pensar que<br />

a violência é inata ao ser hum<strong>ano</strong>, é apenas um passo. É o que pode-se depreender<br />

das entrelinhas de Girard. O desejo de violência inato, quando despertado, é mais<br />

difícil de ser apaziguado do que desencadeado (Girard, p. 14). O autor observa que<br />

“a violência não saciada procura e sempre acaba por encontrar uma vítima<br />

alternativa. A criatura que excitava sua fúria é repentinamente substituída por outra,<br />

que não possui característica alguma que atraia sobre si a ira do violento, a não ser o<br />

fato de ser vulnerável e estar passando a seu alcance (Girard, p. 14).<br />

Como, então, diferenciar o sacrifício do assassinato? Qual seria a função do<br />

sacrifício, se ambos se fundam na violência, ainda que no sacrifício esta violência seja<br />

desconhecida? Para Girard, o assassinato desencadearia um processo infinito de<br />

vingança, pois,<br />

quando a violência surge em um ponto qualquer da comunidade,<br />

tende a se alastrar e a ganhar a totalidade do corpo social,<br />

ameaçando desencadear uma verdadeira reação em cadeia, com<br />

conseqüências rapidamente fatais em uma sociedade de dimensões<br />

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reduzidas. A multiplicação das represálias coloca em jogo a própria<br />

existência da sociedade (Girard, p. 28).<br />

Assim, a criação do sistema judiciário fez com que, no pl<strong>ano</strong> social, a<br />

vingança fosse limitada. Nas sociedades primitivas, onde não havia sistema<br />

judiciário organizado, Girard acredita que o sacrifício tinha como função prevenir o<br />

desencadeamento da violência que leva à vingança infinita. Para ele, o sacrifício<br />

apazigua o desejo de violência.<br />

O sacrifício é um instrumento de prevenção na luta contra a violência.<br />

(...) Ele faz convergir as tendências agressivas para vítimas reais ou<br />

ideais, animadas ou inanimadas, mas sempre não susceptíveis de<br />

serem vingadas, sempre uniformemente neutras e estéreis no pl<strong>ano</strong><br />

da vingança. O sacrifício oferece ao apetite da violência, que a<br />

vontade ascética não consegue saciar, um alívio sem dúvida<br />

momentâneo, mas indefinidamente renovável, cuja eficácia é tão<br />

sobejamente reconhecida que não podemos deixar de levá-la em<br />

conta. O sacrifício impede o desenvolvimento dos germens de<br />

violência, auxiliando os homens no controle da vingança (Girard, p.<br />

31, 32).<br />

A despeito de que a função do sacrifício como forma de “apaziguar as<br />

violências intestinas e impedir a explosão de conflitos”, tenha sido esvaziado com a<br />

criação do sistema judiciário, o sacrifício não deixou de existir. O paradoxo é que<br />

os procedimentos que permitem aos homens moderar sua violência<br />

são todos análogos: nenhum deles é estranho à violência. Poder-se ia<br />

pensar que todos eles se encontram enraizados no religioso, (...) [pois]<br />

o religioso coincide certamente com esta obscuridade que envolve<br />

em definitivo todos os recursos do homem contra sua própria<br />

violência, sejam eles preventivos ou curativos, com o obscurecimento<br />

que ganha o sistema judiciário quando este substitui o sacrifício. Esta<br />

obscuridade não é senão a transcendência efetiva da violência santa,<br />

legal, legítima, face à imanência da violência culpada e legal (Girard,<br />

p. 38).<br />

Girard, enfim, conclui que a hipótese – da violência espontânea – que<br />

construiu para elaborar sua teoria da religião primitiva, serve-lhe para ampliar essa<br />

teoria em direção do judaico-cristão e da totalidade da cultura. Para ele, esse é o<br />

acontecimento fundador da religião, da sociedade e da cultura. Mais: “é a origem<br />

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absoluta, passagem do não hum<strong>ano</strong> ao hum<strong>ano</strong>, e origem relativa, origem das<br />

sociedades particulares” (Girard, p. 377). A violência essencial e desconhecida, base<br />

da teoria da vítima expiatória, apresenta, para ele, uma superioridade em relação à<br />

teoria da evolução. Sobretudo, por causa do desconhecimento dessa violência<br />

fundadora. Ele, então, afirma que “a presente teoria é a primeira a justificar tanto o<br />

papel primordial do religioso, nas sociedades primitivas, quanto nosso<br />

desconhecimento sobre esse papel” (Girard, p. 378).<br />

48<br />

O desconhecimento da violência e o desejo mimético<br />

Girard deixa bem claro que esse desconhecimento ao qual se refere, não se<br />

assemelha ao inconsciente da Psicanálise. A diferença estaria em que no religioso<br />

nada há recalcado ou oculto – que permanecesse sempre oculto, como acontece no<br />

inconsciente (no modo como ele entende, a partir de Freud). Para ele, mesmo o fator<br />

“acaso”, na seleção da vítima, não pode ser considerado sob a perspectiva do<br />

inconsciente, pois, também este aspecto pode ser compreendido desde a perspectiva<br />

do campo religioso. Ele explica que o pensamento religioso permite compreender<br />

que o acaso abriga a manifestação do transcendente. Para provar sua argumentação,<br />

mostra, a partir de exemplos de vários ritos primitivos, o papel do acaso na escolha<br />

da vítima. Girard enfatiza que<br />

o pensamento moderno, como todos os pensamentos anteriores,<br />

busca explicar o exercício da violência e da cultura em termos de<br />

diferenças. É este o mais enraizado de todos os preconceitos, o<br />

próprio fundamento de qualquer pensamento mítico: apenas uma<br />

leitura correta do religioso primitivo pode dissipá-lo (Girard, p. 380).<br />

Girard contrapõe a sua hipótese a alguns fundamentos da Psicanálise. Mas<br />

utiliza-se de vários deles para enriquecer sua argumentação: transferência, resistência,<br />

interpretação interminável.<br />

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Assim, ao buscar uma explicação para o que considera violência essencial,<br />

fundadora da sociedade e do próprio ser hum<strong>ano</strong>, Girard constrói uma teoria do<br />

desejo. Inicialmente, busca nos grandes romances e dramas, um saber superior sobre<br />

os mecanismos do desejo, dando especial atenção às obras romanescas. E então, a<br />

partir destas, constrói uma teoria do desejo.<br />

O resumo que apresento a seguir, da teoria girardiana do desejo, baseia-se na<br />

importante contribuição de Santos (Santos, p. 135-212). Esta autora apresenta a<br />

concepção girardiana de desejo observando que, inicialmente, ele partiu das obras<br />

literárias (idéia que em primeiro lugar encontrou em Cervantes), captando o que lhe<br />

pareceu ser o mecanismo fundamental de ação do desejo. Depois, voltando-se para o<br />

campo da antropologia e da escritura judaico-cristã interessa-se não mais pelos<br />

mecanismos do desejo, mas pelos “mecanismos miméticos”(o termo mimesis – do<br />

grego – torna concebível a parte conflitual da imitação, o que não aconteceria com<br />

este último termo “imitação”). A teoria da religião e das sociedades arcaicas<br />

apresentada por Girard é uma expansão da idéia a respeito do desejo mimético, da<br />

rivalidade mimética.<br />

Vejamos, então, um resumo da idéia de desejo e desejo mimético em Girard:<br />

• Não desejamos um objeto por causa do que ele é intrinsecamente, mas<br />

porque alguém que funciona para nós como modelo no-lo designa como desejável.<br />

• Nosso desejo é sempre heterônomo, pois ao desejar, imitamos o desejo de<br />

outro (do outro que nos serve de modelo).<br />

• Não existe desejo espontâneo. O sujeito não sabe o que desejar, por isso se<br />

volta para o desejo do outro, imitando-o em seu desejo.<br />

• Nas sociedades tradicionais, o desejo seguia o modelo de mediação externa<br />

(havia hierarquia nas mediações: discípulo e mestre). Nas sociedades modernas<br />

houve a instalação de uma rivalidade mútua infernal – as pessoas se copiam umas às<br />

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outras num ambiente de hostilidade (generalização da mediação interna). Há conflito<br />

entre a mediação externa e interna.<br />

50<br />

• O sujeito não possui autonomia no seu desejo. Mas admitir isso seria<br />

admitir uma falha/falta. Assim, seu desejo se direciona para os mediadores que julga<br />

“completos”, mas não confessa essa mediação externa. Como consequência, o desejo<br />

passa a ser uma imitação dissimulada.<br />

• Desejar o mesmo que o outro deseja e possuir objetos análogos aos do<br />

mediador externo não satisfaz a compulsão por imitação. Girard denomina como<br />

“mediação interna” esse desejo de estar em contato íntimo com o mediador externo<br />

(quando simplesmente possuir objetos análogos aos dele já não é suficiente). Assim, a<br />

mediação interna se transformará na necessidade de absorver ou fundir-se com o<br />

outro que deseja.<br />

• A impossibilidade de fusão com o outro (mediador externo do desejo)<br />

causa desconforto interior e hostilidade em relação ao mediador. O sujeito crê que o<br />

outro “esconde” algo que o tornaria feliz como o outro o é. Daí o sentimento de<br />

veneração e ódio em relação ao outro, e repulsa em relação a si.<br />

• O desejo de ser, em última instância, o próprio modelo do desejo, faz com<br />

que este (mediador externo) torne-se rival na medida em que passa a ser um<br />

obstáculo para a realização do desejo, algo que não acontecia anteriormente, na<br />

mediação externa.<br />

• O desejo vai mudando de forma consoante o grau de mediação que<br />

atravessa. Girard chama de “desejo metafísico” quando o desejo deixa de ter relação<br />

com o objeto acessível e se centra cada vez mais (por causa da mediação interna) no<br />

mediador.<br />

• Esse desejo metafísico se propaga por “contágio generalizado” (“A partir de<br />

Proust, o mediador é literalmente “não importa quem”, e pode surgir “não importa<br />

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onde”. Por isso mesmo estão criadas as condições necessárias e suficientes para que a<br />

rivalidade recíproca se propague, e com ela, os duplos – é a própria sociedade<br />

moderna que se torna inteiramente cismática, podendo a mediação dupla estender-se<br />

para além das fronteiras nacionais, tornando-se os países obcecados uns pelos outros<br />

e podendo gerar blocos simétricos”. (Santos, p. 137)).<br />

• A sociedade moderna identifica-se com a propagação da mediação interna.<br />

Os sentimentos dominantes, derivam-se de uma vaidade generalizada (inveja, ciúme,<br />

ódio impotente). Os deuses, hoje, são as pessoas que nos rodeiam e se transformam<br />

em nossos modelos-rivais. Vive-se, assim, uma transcendência desviada ou<br />

pervertida.<br />

Assim, para Girard, é o desejo mimético que faz nascer a rivalidade na<br />

imitação. A imitação “comporta em si uma tendência extremamente perigosa para a<br />

estabilidade social, que é a tendência para o conflito” (Santos, p. 140). Sua concepção<br />

de desejo: “mimesis [imitação rivalizada] que se enxerta nas montagens instintuais<br />

para as sobreativar, irritar ou desorganizar” .<br />

Girard assinala que o paradoxo do ciclo mimético é que os homens quase<br />

nunca podem partilhar pacificamente um objeto que todos desejam, mas podem<br />

sempre compartilhar um inimigo que todos odeiam porque podem unir-se para o<br />

destruir , e então não subsistem mais hostilidades prolongadas, pelo menos durante<br />

algum tempo.<br />

Os grupos “pré-hum<strong>ano</strong>s” e “hum<strong>ano</strong>s” teriam passado por duas<br />

experiências fundamentais: as crises miméticas atrozes que colocavam as<br />

comunidades à beira da desintegração e a paz que a vítima expiatória proporcionava<br />

em seguida. Estas experiências dolorosas, gravadas na memória, seriam as razões do<br />

nascimento dos interditos, da realização dos rituais para atualizar o acontecimento<br />

pacífico e os mitos – sendo este a narração do acontecimento fundador.<br />

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Assim, o mecanismo vitimário é o que está na origem das sociedades – e é<br />

esse mecanismo que possibilita a entrada no simbólico (na linguagem ). Em 1978,<br />

Girard descobre a escritura judaico-cristã. Afirma aí a positividade última da<br />

violência e reafirma o mecanismo da vítima expiatória que se encontra na origem de<br />

todos os rituais. Para ele, Hebreus e a teologia medieval solidificaram a interpretação<br />

da morte de Cristo como sendo de caráter sacrificial, diminuindo, assim, a<br />

responsabilidade dos seres hum<strong>ano</strong>s na paixão, podendo-se então, projetar sobre<br />

Deus uma violência que não lhe pertence, ao supostamente necessitar do sacrifício do<br />

filho para aplacar a sua ira.<br />

Uma Psicologia interdividual<br />

Santos (Santos, p. 163) esclarece que Girard denominou como Psicologia<br />

Interdividual “para ressaltar a idéia de que quando duas pessoas se interrelacionam ,<br />

não estão presentes uma à outra numa posição de completa autonomia, mas<br />

influenciam-se mutuamente sem mesmo se darem conta”. O desejo mimético cresce<br />

em intensidade. Indo da normalidade à <strong>ano</strong>rmalidade. Ninguém escapa a ele –<br />

lidamos com ele. A psicologia interdividual procurará analisar tudo em função desta<br />

indissolubilidade de desejo entre o eu e o outro. É a partir deste desejo que imita o<br />

desejo do outro e, finalmente, se deixa fascinar por ele, julgando-o detentor de um<br />

segredo que lhe abriria as portas de um paraíso terrestre, que Girard pretende<br />

explicar toda uma série de comportamentos (Santos, p. 164).<br />

Na opinião de Santos, Girard dá a entender que a única saída ao desejo<br />

mimético seria o “amor evangélico: a renúncia a tudo que pode provocar conflito”<br />

(Santos, p. 164).<br />

A obra de Girard é vasta e não caberia neste pequeno artigo toda exposição<br />

sua sobre o desejo. Mas o que foi apresentado até aqui, permite-nos levantar algumas<br />

questões:<br />

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Para refletir<br />

1. Girard apresenta Cristo como a única porta salvadora ao desejo mimético<br />

fundante do ser hum<strong>ano</strong> e das sociedades.<br />

Pergunto: ter a Cristo como o modelo para o desejo, imitá-lo, livraria o ser<br />

hum<strong>ano</strong> de se enredar na violência? Sabemos que também os grupos que pretendem<br />

imitar a Cristo não estão livres de cometerem violências e desrespeito aos direitos<br />

hum<strong>ano</strong>s. Ele afirma que a violência pode ser maléfica ou benéfica (ou ainda,<br />

purificadora ou destrutiva). “A dimensão purificadora e pacificadora da violência<br />

ultrapassa sua dimensão destrutiva” (Girard, p. 80). O que dizer da Inquisição, neste<br />

caso?<br />

2. Girard acredita que a atividade econômica, especialmente através da oferta<br />

de mais produtos que são desejáveis a todos, desvie o olhar do sujeito do modelo,<br />

para o objeto que o modelo deseja.<br />

Pergunto: não seria a própria sociedade de consumo quem produz o desejo<br />

mimético, elegendo objetos desejáveis, produzindo um desejo que aponta para um<br />

processo de homogeneização da subjetividade?<br />

3. Girard acredita que o desejo hum<strong>ano</strong> (desejo mimético) move-se<br />

fundamentalmente, para a indiferenciação. Só a religião, através dos ritos de<br />

sacrifício poderia apaziguar a violência nascida do desejo mimético.<br />

Pergunto: se o desejo mimético conduz, fatalmente, à violência destrutiva; e o<br />

sacrifício, como saída, constituindo-se como violência purificadora, não estaria<br />

Girard, colocando a religião como a cura de um desejo patológico?<br />

4. Na visão girardiana, o desejo mimético explica todos os comportamentos<br />

hum<strong>ano</strong>s, como também as formações sociais e institucionais. Desde a necessidade<br />

da religião (o surgimento do sacrifício para apaziguar a violência nascida do desejo<br />

mimético), passando pela instituição jurídica (institucionalização do sacrifício fora da<br />

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dimensão religiosa) e até mesmo as experiências de possessão e uso de máscaras (“a<br />

possessão não é senão a forma extrema da alienação ao desejo do outro” (Girard, p.<br />

202). “A máscara superpõe e mistura seres e objetos que a diferença separa (...) ela<br />

coincide com o duplo monstruoso” (Girard, p. 205).<br />

54<br />

Pergunto: Seria, de fato, o desejo mimético, a única explicação possível para<br />

todas as formações desejantes? Não haveriam outros desejos, para além do mimético,<br />

que fossem “construtivos”?<br />

5. Girard postula que “crise sacrificial” pode ser sinônimo de “crise das<br />

diferenças” (Girard, p. 73). “Onde a diferença está ausente é a violência que ameaça”<br />

(Girard, p. 78). O desejo mimético é essencialmente apagamento das diferenças e,<br />

consequentemente, só resta ao ser hum<strong>ano</strong> lidar com o desejo mimético no sentido<br />

de contornar os seus efeitos. Quando o sujeito é capaz de reconhecer a sua diferença<br />

e negá-la (tendendo, assim ao desejo mimético) parece que há, aqui, um processo que<br />

estava caminhando em uma direção de produção de diferenciação, para retornar a<br />

um estado de indiferenciação<br />

Pergunto: não estaríamos frente a uma concepção de desejo e de ser hum<strong>ano</strong>,<br />

que se funda, exclusivamente, sobre uma patologia do desejo?<br />

6. Girard parece querer apresentar uma estrutura “triangular” do desejo: Um<br />

sujeito A imita um sujeito B porque ele deseja o objeto X. Sujeito A e sujeito B vão<br />

entrar em conflito em razão de desejarem o mesmo objeto. Assim,<br />

trata-se de definir a posição do rival no sistema que ele forma com o<br />

objeto e o sujeito. O rival deseja o mesmo objeto que o sujeito.<br />

Renunciar à primazia do objeto e do sujeito para afirmar a do rival só<br />

pode significar uma coisa. A rivalidade não é o fruto de uma<br />

convergência acidental de dois desejos para o mesmo objeto. O sujeito<br />

deseja o objeto porque o próprio rival o deseja. Desejando tal ou tal objeto,<br />

o rival designa-o ao sujeito como desejável. O rival é o modelo do<br />

sujeito, não tanto no pl<strong>ano</strong> superficial das maneiras de ser, das idéias,<br />

etc., quanto no pl<strong>ano</strong> mais essencial do desejo” (Girard, p. 180)<br />

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Entretanto, o total (e pouco explicado) desaparecimento do objeto parece<br />

configurar mais uma relação diática do que triangular. A Psicanálise nos mostra que<br />

antes de o sujeito poder se diferenciar do outro e ser capaz de estabelecer relações<br />

triangulares, ele passa por uma união total com a mãe, para aos poucos ir se<br />

diferenciando e se perceber como unidade separada. Quando o sujeito não se mostra<br />

capaz de uma diferenciação do outro, isso indica que há uma falha no processo de<br />

constituição psíquica e emocional.<br />

Pergunto: não estaria Girard, fazendo uma certa confusão acerca do processo<br />

(dois “estágios”: narcisismo e complexo de Édipo) de desenvolvimento psíquico e<br />

emocional do sujeito? A capacidade de identificar o desejo do outro implica em um<br />

processo de diferenciação, que é negado por Girard. O desejo do sujeito, sendo<br />

mimético, só poderia direcionar-se a um processo de indiferenciação, marcando,<br />

assim, uma quebra de um processo inicial. O desejo mimético seria então, uma<br />

patologização de um desejo inicialmente não mimético. Inicialmente diático – em<br />

direção ao triádico, ou seja, de diferenciação e não de indiferenciação.<br />

7. O desejo mimético, da forma como Girard o descreve, pode ser<br />

compreendido desde a perspectiva da Psicanálise como característico da psicose.<br />

Bion crê que o ser hum<strong>ano</strong>, mesmo não sendo psicótico, possui uma parte psicótica<br />

em sua constituição subjetiva. As características da parte psicótica do ser hum<strong>ano</strong><br />

seriam: fortes pulsões destrutivas, com predominância da inveja e da voracidade<br />

(semelhante ao desejo mimético); baixíssimo limiar de tolerância às frustrações;<br />

relações tipicamente sadomasoquistas; agudo ódio à realidade interna e externa;<br />

onipotência e onisciência e imitação como substitutos ao processo de aprendizagem;<br />

etc. (Bion, apud Zimermam, p. 84)<br />

Pergunto: não seria o desejo mimético, menos a expressão da potencialidade<br />

da subjetividade humana e mais a expressão da parte psicótica da constituição<br />

subjetiva?<br />

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8. Girard explica todo o comportamento hum<strong>ano</strong>, desde suas dimensões<br />

mais pessoais como o sadismo, masoquismo, psicose, etc, até as institucionais, como<br />

as formações religiosas e o sistema judiciário, pelo desejo mimético. Suas idéias<br />

convergem para a construção de uma Antropologia Geral, que pretende captar a<br />

dimensão humana numa perspectiva totalizadora e unitária. Para ele, “os homens<br />

são governados por um mimetismo instintivo responsável pelo desencadeamento de<br />

‘comportamentos de apropriação mimética’ geradores de conflitos e rivalidades de<br />

tal ordem, que a violência seria um componente natural das sociedades humanas a<br />

ser incessantemente exorcizado pelo sacrifício de vítimas expiatórias (Carvalho, apud<br />

Girard, p. 9).<br />

Pergunto: é justo explicar todos os comportamentos e formações sociais, a<br />

partir de uma única forma de desejo? Bataille nos lembra que “Freud fundou sua<br />

interpretação do interdito na necessidade primitiva de opor uma barreira protetora aos<br />

excessos de desejos que incidem sobre objetos” (Bataille, p. 66). Para este autor, o desejo<br />

hum<strong>ano</strong> é o da continuidade. O ser hum<strong>ano</strong> liga-se ao outro não para o destruir, mas<br />

pela sua necessidade de continuidade.<br />

Para finalizar<br />

É difícil comentar a questão do desejo na vasta obra de Girard, em poucas<br />

páginas. Seu pensamento é ao mesmo tempo instigante e por muitas vezes causa<br />

bastante desconforto, pelo fato de querer tudo abarcar sob a explicação do desejo<br />

mimético.<br />

Trago para este momento de finalização na reflexão, as idéias de Winnicott,<br />

representante da Psicanálise Inglesa. Este autor pouco fala de desejo. Ele fala de<br />

necessidade. Winnicott afirma que o ser hum<strong>ano</strong> e a cultura se constituem num<br />

processo que vai da dependência absoluta, passando pela dependência relativa,<br />

rumo à independência. Neste processo, o sujeito encontra-se, inicialmente fusionado<br />

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à mãe, para, aos poucos, em se separando dela, dar-se conta do “eu”, do “não-eu”, e<br />

pode, assim, desenvolver-se como unidade, como ser total. Esse processo implica<br />

numa diferenciação de si e do outro. Diferentemente do que pensa Girard.<br />

Esse processo de diferenciação, quando não apresenta falha (que gerariam as<br />

indiferenciações e consequentemente, as psicoses, as esquizofrenias e os casos-<br />

limites) é possibilitado pela construção do que ele chama de espaço potencial. O espaço<br />

potencial é o espaço existente entre o sujeito e o ambiente. Quando o sujeito se acha<br />

fusionado com o outro, impossibilita-se a construção da diferenciação, do sentimento<br />

de si. E é neste espaço potencial que se produz a cultura, sendo esta, resultante do<br />

viver criativo da humanidade, como o lugar onde o ser hum<strong>ano</strong> cria/inventa. É<br />

então, no espaço potencial – local de criação – que o ser hum<strong>ano</strong> “começa a construir<br />

o que pode ser chamado de continuidade do ser”, a que Bataille se refere. Winnicott<br />

afirma que<br />

com o cuidado que o bebê recebe da mãe cada latente é capaz de ter<br />

uma existência pessoal, e assim começa a construir o que pode ser<br />

chamado de continuidade do ser. Na base dessa continuidade do ser o<br />

potencial herdado se desenvolve gradualmente no indivíduo lactente.<br />

Se o cuidado materno não é suficientemente bom então o lactente não<br />

vem a existir, uma vez que não há a continuidade do ser; ao invés a<br />

personalidade começa a se construir baseada em irritações do meio<br />

(Winnicott, p. 53).<br />

Acompanhando o pensamento de Winnicott, não poderíamos pensar<br />

que o desejo mimético expressaria uma forma de irritação ao meio, uma falha no<br />

desenvolvimento emocional e psíquico dos sujeitos, uma tendência que move-se<br />

mais para a destruição do que para a criação? O desejo mimético visa a destruição do<br />

outro, é menos criador. A partir do que Girard nos coloca, seria então, a religião e o<br />

“sacrifício apaziguador” da violência, uma forma de cura para um desejo patológico?<br />

Ou, se fora da religião, estaríamos, para sempre, aprisionados pelo desejo?<br />

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Referências Bibliográficas<br />

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.<br />

GIRARD, René. A violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra e UNESP, 1990.<br />

SANTOS, Laura Ferreira. Pensar o desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze. Braga:<br />

Universidade do Minho/Instituto de Educação e Psicologia/Centro de Estudos em Educação<br />

e Psicologia, 1997.<br />

WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação. Estudos sobre a teoria do<br />

desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.<br />

ZIMERMAN, David. Bion – Da teoria à prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.<br />

58<br />

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Uma guerra civil no quintal: resenha crítica de CÉSAR,<br />

Waldo. Tenente Pacífico: um romance da revolução de 32. São<br />

Paulo : Record, 2002. *<br />

Por Flávio Carneiro **<br />

Em seu ensaio sobre o narrador, Walter Benjamin afirma que, no mundo<br />

moderno, a arte de narrar está em vias de extinção. Benjamin se refere a um tipo de<br />

narrador que se aproxima do antigo contador de histórias, responsável, nas<br />

sociedades primitivas, pela preservação e transmissão da memória coletiva. O acervo<br />

de tradições, lendas e costumes era passado de geração a geração através das<br />

histórias contadas por um velho, detentor não apenas de uma rica experiência como<br />

também da habilidade de convertê-la em prazer e sabedoria para os ouvintes.<br />

Se, no decorrer do século 20, a figura do contador de histórias acabou<br />

relegada a segundo pl<strong>ano</strong>, em função sobretudo das experimentações formais das<br />

vanguardas, neste início de milênio ela parece retornar, reforçando o que talvez seja<br />

o traço mais importante da ficção atual: a reescritura, em diferença, de antigos<br />

modelos.<br />

É o caso de Tenente Pacífico, de Waldo Cesar, que reencena a velha arte de<br />

narrar, mesclando suas próprias memórias de infância ao conturbado momento<br />

vivido pelo país no início dos <strong>ano</strong>s 30. O romance tem como p<strong>ano</strong> de fundo - ou um<br />

pouco mais que isso - a Revolução Constitucionalista de 1932, quando São Paulo,<br />

sentindo-se preterido econômica e politicamente por Getúlio Vargas, pega em armas<br />

contra as tropas governistas.<br />

* Originalmente publicado em Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2002, caderno Idéias, p. 4.<br />

** Escritor, professor de Literatura Brasileira da Uerj e autor de 'O cristal e a chama'<br />

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O narrador é Samuel, pastor protestante radicado em Resende, interior do<br />

Estado do Rio. Ao contrário do que sugere o título, o romance se detém<br />

relativamente pouco na figura do tenente Pacífico, amigo de Samuel e membro da<br />

Igreja que acaba se tornando oficial do Exército getulista. Há personagens com mais<br />

presença na história, como o próprio narrador ou seu filho, Pedro. Pacífico serve<br />

como fio condutor, como leitmotiv de uma narrativa centrada na crônica da família e<br />

nos acontecimentos políticos da época.<br />

O primeiro capítulo é um tanto árido, com excesso de informações e citações<br />

diversas, podendo espantar o leitor mais impaciente. A história, porém, vai<br />

engrenando pouco a pouco e, sem nos darmos conta, ficamos de tal forma ligados à<br />

trama que abandonar o livro, mesmo por instantes, é um verdadeiro sacrifício.<br />

Como na tradição dos antigos contadores - que o diga Sherazade -, Samuel<br />

vai entremeando outras vozes ao seu relato: trechos do diário de guerra do tenente<br />

Pacífico e do caderno de <strong>ano</strong>tações de Pedro, passagens bíblicas, recortes de jornais<br />

da época, transcrições de cartas trocadas entre antepassados, além de versos de Ana<br />

Cristina César, filha do autor. Como Maria Rita, matriarca da família, a tecer dia após<br />

dia uma longa colcha de retalhos, Samuel vai costurando fragmentos de histórias<br />

diversas, na feitura de sua própria história.<br />

Pedro, filho de Samuel, também ensaia sua verve de ficcionista ao criar a<br />

Cidade dos Homens Pequenos. A cidade de Pedro é responsável por alguns dos<br />

melhores momentos do livro. No seu quarto, o menino mantém viva uma cidade em<br />

miniatura feita de todo tipo de objetos: botões, rolhas, caixas, latas, pedaços de<br />

metais, tampinhas de garrafas. Imitando, a seu modo, a Resende real, ele não apenas<br />

recria episódios de sua própria vida como prevê outros, inclusive da própria guerra -<br />

com a ajuda do tenente Pacífico e de um tio, Benedito, que presenteiam o garoto com<br />

exércitos rivais de soldadinhos de chumbo.<br />

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Na cidade inventada por Pedro não há cemitério: 'os soldados que morreram<br />

voltam a combater no dia seguinte '. Na guerra lá fora, no entanto, as pessoas<br />

morrem de verdade e o romance também trilha esse caminho, o de um retrato de<br />

época, mostrando não só os horrores dos campos de batalha quanto os bastidores<br />

políticos, no quais se decidia a sorte do país. Sem cair no didatismo excessivo ou<br />

naquelas insuportáveis lições de moral, de ética ou de política que certos autores do<br />

gênero tentam nos impingir, Waldo César articula fato e ficção de forma harmoniosa.<br />

A esse propósito, merece destaque o capítulo 'A glória e o poder ', trazendo um<br />

antológico diálogo entre Oswaldo Aranha, homem de confiança de Getúlio, e alguns<br />

coronéis paulistas.<br />

Tenente Pacífico deve ser lido sem pressa, longe do barulho, se possível no<br />

aconchego de uma cadeira de balanço. Walter Benjamin também dizia, no seu ensaio,<br />

que a arte de contar histórias se perdeu porque as pessoas perderam o dom de ouvir.<br />

Para ele, o problema não estava apenas na incapacidade de contar, mas também na<br />

de escutar. Quando escreve seu ensaio, no período entre a primeira e a segunda<br />

guerras mundiais, Benjamin afirma que as pessoas já não têm mais tempo para ouvir<br />

histórias e que os velhos narradores morreram por um motivo muito simples:<br />

'ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história '.<br />

Fiar ou tecer enquanto se ouvia histórias significava, entre outras coisas,<br />

viver num mundo em que havia espaço para o lazer, o ócio, o 'tempo a perder ' com<br />

coisas consideradas de menor valor. Daí a impossibilidade de existência, hoje, dos<br />

antigos narradores, incompatíveis com a filosofia do time is money. Ainda assim,<br />

acrescentava Benjamin, eles reaparecem na obra de certos escritores modernos, como<br />

o russo Nicolai Leskov ou, podemos acrescentar, como em Tenente Pacífico. Ao<br />

resgatar do passado uma velha forma de contar, o romance indiretamente traz de<br />

volta também um antigo modo de ouvir e ler histórias, cada vez mais necessário.<br />

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Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

História e Violência: o caso da Migração para Rondônia<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp<br />

Por Rogério Sávio Link *<br />

Resumo:<br />

Este texto trata sobre a relação entre história e violência, bem como também analisa um caso<br />

concreto: a migração de luter<strong>ano</strong>s para Rondônia. Os migrantes que compõem a análise<br />

desta pesquisa formam um grupo etnicamente coeso. Eles são capixabas descendentes dos<br />

pomer<strong>ano</strong>s que migraram para Rondônia na década de 1970.<br />

Palavras-chave:<br />

violência, história, migração, Rondônia, ambigüidade histórica.<br />

A história e sua relação com a violência<br />

A história é ambígua. Ela acontece em meio às incertezas, acertos, mudanças,<br />

catástrofes e continuidades. Na verdade, a história é o próprio desenrolar desses<br />

acontecimentos. A violência faz parte da história e, por isso, a historiografia não pode<br />

se negar a falar sobre ela.<br />

Durante muitos <strong>ano</strong>s a historiografia esteve centrada em narrativas de<br />

guerras e batalhas. Na historiografia mais recente acentua-se a relação entre história e<br />

sociologia e entre história e antropologia. Atualmente faz-se história social e história<br />

antropológica, na tentativa de escrever uma história integral do ser hum<strong>ano</strong>. A<br />

cotidianidade e a particularidade também entraram na dimensão da historiografia.<br />

Hoje, a historiografia é muito mais ampla e diversificada do que era há alguns <strong>ano</strong>s<br />

atrás. Uma compreensão de história como essa não pode excluir de seu horizonte a<br />

* O autor morou toda sua infância em Espigão do Oeste/RO. Graduou-se na Escola Superior de<br />

Teologia, em São Leopoldo e, atualmente, faz pós-graduação em história da igreja, no Instituto<br />

Ecumênico de Pós-Graduação, também em São Leopoldo. Sua pesquisa concentra-se na história da<br />

igreja na Amazônia.


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dimensão da violência. Uma história da vida privada, por exemplo, não pode deixar<br />

de destacar os abusos sexuais sofridos pelas mulheres e crianças.<br />

A historiografia analisa uma dupla relação da violência: a violência sofrida<br />

(passiva) e a violência gerada (ativa) por um grupo social ou gênero. Um mesmo<br />

grupo social ou uma mesma pessoa sofre violência e gera violência. Não existe um<br />

grupo ou uma pessoa que possa ser identificado com o bem e outro com o mal. A<br />

vida é ambígua. Uma pessoa que é capaz de um ato de amor também é capaz de um<br />

ato de ódio. Uma pessoa que está sofrendo também está fazendo outras sofrerem.<br />

Nesse sentido, é tarefa da historiografia resgatar essa polaridade ambígua do ser<br />

hum<strong>ano</strong> e de suas construções culturais.<br />

O caso da migração para Rondônia<br />

A história das migrações para novas fronteiras agrícolas na Amazônia<br />

encerra em si a questão da violência. Como vimos acima, essa violência tem uma<br />

dimensão ativa e uma dimensão passiva. Além de sofrer violência, os migrantes<br />

geraram violência. Como forma de violência passiva, destaca-se a falta de<br />

infraestruturas básicas, como estradas, escolas e hospitais, bem como também a<br />

fome, as doenças, os acidentes na derrubada da mata e, também, assassinatos. Como<br />

forma de violência ativa, destaca-se a depredação da natureza (flora e fauna) e o<br />

conflito com indígenas.<br />

Questões como falta de justiça, conflitos de terras, assassinatos, trabalho<br />

escravo, doenças e conflitos com indígenas também foram rotina em Rondônia. A<br />

falta de justiça foi o principal problema, prevalecendo a lei do mais forte. Geraldo<br />

Schach, primeiro pastor luter<strong>ano</strong> que atuou em Rondônia, chega a afirmar que “os<br />

assassinatos praticamente causam tantas baixas como a própria malária” 1 . Nota-se<br />

que quase todas as contendas que terminavam em morte estavam relacionadas a<br />

1 Relatório do Pastor Geraldo Schach em 13 de dezembro de 1974 (Arquivo da IECLB).<br />

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questões de terra. Assim, na fala dos migrantes, não faltam relatos de assassinatos.<br />

Chama atenção o uso da expressão “segurar a costela” ou “eu não tenho costela pra<br />

bala” 2. Nessas expressões, observa-se o medo e o receio que os migrantes têm dos<br />

pistoleiros, pois qualquer conflito sobre a posse das terras sempre era solucionado<br />

com arma de fogo. A posse da terra nunca é totalmente segura. A única coisa que a<br />

garante é a arma de fogo. Nesse sentido, cada colono procura ter uma arma dentro de<br />

casa. Mesmo que, muitas vezes, nem isso represente garantia. A título de resumo,<br />

veja o que o pastor Schach ressalta sobre a questão da justiça:<br />

64<br />

há certa indecisão e insegurança, pois há ocasiões em que surgem<br />

invasores que tomam a terra dos outros sem que seja feita justiça<br />

alguma. Nestes dois (...) <strong>ano</strong>s em que conheço RO, sei de mais de cem<br />

mortes a sangue frio (assassinatos cruéis), geralmente com armas de<br />

fogo. A causa é sempre a mesma: terra. 3<br />

O uso da mão-de-obra escrava também esteve presente durante todo o<br />

processo de ocupação de Rondônia. Os grandes latifundiários aliciavam pessoas para<br />

trabalharem em suas terras derrubando a floresta com o objetivo de plantar capim<br />

que serviriam como pastagem para o gado. Quando chegavam lá, davam-se conta do<br />

que os esperava: pistoleiros com armas na mão. Se alguém conseguisse sair da<br />

fazenda, seja fugindo ou por que fora libertado, não recebia nada pelo seu serviço.<br />

Para exemplificar como isso se configurou num grande problema para os migrantes,<br />

arrola-se aqui um exemplo. Em 1989, portanto, vinte <strong>ano</strong>s depois da chegada dos<br />

primeiros migrantes luter<strong>ano</strong>s em Rondônia, 200 homens, fugindo da fazenda<br />

Peralta, às margens do rio Roosevelt, depois de conseguirem matar o capataz,<br />

chegaram na cidade de Espigão do Oeste. Até então haviam sido mantidos como<br />

escravos. Deveriam derrubar a mata e só receberiam seus honorários ao término do<br />

2 Cf. Entrevista com Martim Hollander, Hulda Jacob Braun e Cecília Braun, janeiro de 20<strong>01</strong>. Essas<br />

expressões referem-se ao fato de que os órgãos vitais estão protegidos pelas costelas. Geralmente é<br />

nessa região que as vítimas de homicídio ou de tentativas são alvejadas.<br />

3 Relatório do Pastor Geraldo Schach em 13 de dezembro de 1974 (Arquivo da IECLB).<br />

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trabalho, mas, quando se aproximava a época do pagamento, eram ameaçados e<br />

chantageados ou até assassinados 4.<br />

As doenças, muito freqüentes, também causavam verdadeiro flagelo<br />

entre os migrantes. As doenças mais freqüentes são a malária, a<br />

hepatite, desidratação e a verminose (...). A malária tem índices<br />

acentuados apenas em certos lugares, como em Jarú, por exemplo,<br />

onde diariamente morre gente sem recurso algum. O governo enviou<br />

para lá uma enfermeira, a qual há dias viajou para a eternidade 5,<br />

vítima da malária. Certamente já foram centenas as vítimas somente<br />

naquele lugarejo onde a população já é escassa. A hepatite, mais rara,<br />

é doença fatal que dificilmente perdoa 6 alguém. A desidratação e<br />

verminose nas crianças ocorrem mais pela falta de orientação dos<br />

pais. 7<br />

A falta de estruturas para o tratamento de enfermidades foi sempre um<br />

agravante. Em Colorado do Oeste, em 1978, a equipe de trabalho da Igreja Evangélica<br />

de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) formada pelo pastor Oto Ramminger, pelo<br />

técnico agrícola Wilmar Luft e pela auxiliar de enfermagem Gerda Nied, organizou<br />

uma comissão de cidadãos para cobrar das autoridades responsáveis — prefeito,<br />

secretário estadual de saúde, secretário estadual do departamento de estradas e<br />

governador — soluções para os problemas de saúde da população local. A comissão<br />

escreveu cartas reivindicatórias, manteve contatos pessoais com o secretário estadual<br />

de saúde, mas somente conseguiu a construção de um posto de saúde, segundo<br />

atesta o relatório de atividades da equipe, insuficiente para atender a demanda local.<br />

Por ocasião de uma visita do governador ao município de Colorado, em 17 de maio<br />

de 1978, houve manifestação popular e o diretor do colégio local, Sr. Walfrido Leite<br />

de Souza, que participara das reuniões organizadas pela equipe de Colorado,<br />

proferiu um discurso, qualificado pela equipe como “caloroso e envolvente” e que<br />

teria provocado uma “intensa participação popular”. Todas essas manifestações<br />

provocaram imediata reação do governo. O Sr. Walfrido foi intimado e escoltado até<br />

Porto Velho, onde foi advertido “a fazer somente o que lhe competia”. Na região de<br />

4 Cf. Francinete PERDIGÃO; Luiz BASSEGIO, Migrantes amazônicos, p. 126-130.<br />

5 Essa expressão é empregada por Schach para dizer que ela faleceu.<br />

6 Essa expressão quer dizer que uma pessoa que contraiu hepatite dificilmente melhorará.<br />

7 Relatório do Pastor Geraldo Schach em 13 de dezembro de 1974 (Arquivo da IECLB).<br />

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Colorado, espalhou-se a notícia de que a equipe de obreiros da IECLB fora<br />

enquadrada na lei de Segurança Nacional. A equipe, insegura e incerta do que viria<br />

pela frente, pediu a presença do pastor presidente Karl Gottschald e do Coordenador<br />

das Novas Áreas de Colonização pastor Arteno Spellmeier. Esses, procurando<br />

interceder pelo povo de Colorado junto ao governador, foram advertidos no sentido<br />

de que a equipe não “promova mais manifestações”. Entre outras coisas, o<br />

governador também deixou claro para eles que “Colorado não é prioridade para seu<br />

governo” 8.<br />

66<br />

Ao chegarem em Rondônia, os migrantes entraram em contato com os povos<br />

indígenas locais. Primeiramente, na região de Pimenta Bueno, Espigão do Oeste e<br />

Cacoal, o choque foi com os indígenas da família lingüística Tupi-Mondé (Suruí,<br />

Cinta Larga e Zoró). Conforme foram adentrando o território, encontraram outros<br />

povos. Na região de Ariquemes, o contato entre indígenas e migrantes foi violento. O<br />

pastor Walter Sass afirma sobre essa problemática:<br />

tinha os Uru-eu-wau-wau; na época a gente não sabia que tribo era<br />

que atacava nas fronteiras do projeto do INCRA. As terras que o<br />

INCRA dava eram poucas e o pessoal ia sempre em frente. O pessoal<br />

ia avançando cada vez mais e adentrava em territórios indígenas. 9<br />

Resumidamente, as dificuldades e os perigos enfrentados pelos migrantes<br />

em Rondônia, ficam expressos em uma notícia que o pastor Schach publicou no<br />

Jornal Evangélico logo depois de sua chegada a Rondônia em 1972.<br />

Há um mês atrás [novembro de 1972] duas crianças foram mortas por<br />

flechadas de índios. A mãe das crianças perdeu uma vista 10, foi<br />

medicada e salvou-se. (...) No dia 27 de outubro, um temporal<br />

derrubou uma árvore sobre duas moças que levavam o almoço a seus<br />

familiares na mata. Nilda e Irma Seibel, 15 e 13 <strong>ano</strong>s,<br />

respectivamente, [eram] filhas do Sr. Frederico Seibel, membro de<br />

nossa comunidade, chegados a dois meses do Espírito Santo. As duas<br />

garotas tiveram morte instantânea. O fato abalou toda a população<br />

8 Cf. Relatório de acontecimentos que envolvem a equipe de trabalho da IECLB em Colorado/Ro no<br />

primeiro semestre de 1978 (Biblioteca da Escola Superir de Teologia).<br />

9 Entrevista com Walter Sass, dezembro de 1999.<br />

10 Ficou cega de um olho.<br />

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local. Já há dois meses atrás, mais dois homens foram mortos como<br />

vítimas de um derrubamento de árvores. Pernas quebradas pelo<br />

mesmo tipo de acidente, já não são mais novidade em nosso meio.<br />

Ainda há dias, um moço picado por uma cobra foi carregado por 50<br />

km (...), delirando de febre. 11<br />

Compromisso da historiografia com realidade ambígua<br />

Retomamos, ao final, a dimensão de que a história acontece na ambigüidade<br />

e, como tal, a questão da violência deve ser vista pela historiografia de forma que<br />

contemple essa dimensão. A historiografia não pode ser escrita fazendo uma<br />

separação entre aqueles que sofrem e aqueles que fazem sofrer, de forma que se<br />

possa localizar onde estão as pessoas boas e as pessoas más. Entrementes, ela deve<br />

apontar para o sofrimento e para suas causas, mas sempre estando ciente que uma<br />

mesma pessoa ou grupo social possui as duas polaridades.<br />

Fontes citadas<br />

Arquivo da IECLB, Porto Alegre.<br />

BIBLIOTECA da Escola Superir de Teologia, São Leopoldo.<br />

ENTREVISTA com Martim Hollander, Hulda Jacob Braun e Cecília Braun, janeiro de 20<strong>01</strong>.<br />

ENTREVISTA com Walter Sass, dezembro de 1999.<br />

PERDIGÃO, Francinete e BASSEGIO, Luiz. Migrantes Amazônicos; Rondônia: A Trajetória da<br />

Ilusão. São Paulo: Loyola, 1992.<br />

SCHACH, Geraldo. O Perigo das Selvas. In: Jornal Evangélico. Porto Alegre: IECLB, <strong>ano</strong> 87, nº<br />

24, dezembro de 1972. p. 4.<br />

11 Geraldo SCHACH, O perigo das selvas (JOREV).<br />

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¿Violencia contra Religión o Religión contra Violencia en<br />

Cuba Revolucionaria?<br />

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Por Nivia Ivette Núñez de la Paz *<br />

Resumen: ¿Violencia contra Religión o Religión contra Violencia en Cuba Revolucionaria?<br />

Intenta, en la medida que responde esas interrogantes, explicar como se dio y se da la<br />

relación religión- estado en el período revolucionario. En la misma medida, pautada por la<br />

categoría violencia, desvenda dos etapas marcantes, una que, perteneciendo al pasado, llega<br />

como alerta y otra que, desde el presente, impone constantes e inaplazables desafíos.<br />

Introducción<br />

En las diversas ocasiones en que he sido invitada para hablar de mi país, la<br />

pregunta sobre “religión en Cuba” se ha manifestado de forma constante. Es como si,<br />

para las personas, no bastase o no les convenciese lo que hasta hoy se ha dicho, lo<br />

que han escuchado o lo que han leído acerca del tema. El presente artículo lo escribo,<br />

entonces, con el deseo de un nuevo dialogar, con la intención de traer parte de lo que<br />

hoy ya es historia, pero sobre todo, con la necesidad última de expresar puntos de<br />

vistas muy propios.<br />

¿Violencia contra Religión?<br />

Si nos detenemos a escuchar testimonios personales, de cubanas y cub<strong>ano</strong>s,<br />

sobre religión en el período revolucionario con facilidad se pudiera pensar que se nos<br />

está engañando. Esta afirmación radica en la diversidad, de experiencias y<br />

* Teóloga Cubana, Licenciada en Sagrada Teología por el Seminario Evangélico de Teología,<br />

Matanzas ,Cuba. Realiza la maestría en el Instituto Ecumênico de Pós-Graduação-IEPG, São<br />

Leopoldo, Brasil, donde investiga, pautada por la teología feminista y las ciencias de la religión, la<br />

denuncia social que parte del cotidi<strong>ano</strong> revelado en las obras de arte.


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explicaciones, que obtendremos al respecto. Intentando elucidar lo antes expresado,<br />

queremos traer algunos posicionamientos que pueden encontrarse con relación al<br />

tema.<br />

importantes:<br />

El filósofo Giulio Girardi nos ofrece, en su libro sobre Cuba, varios datos<br />

1) La ubicación de homosexuales, sacerdotes, pastores y otros creyentes en la<br />

UMAP, “un servicio militar paralelo que se dedicaba a trabajos de campo y no a la<br />

defensa, porque las armas debían estar en m<strong>ano</strong>s de personas confiables”(Girardi,<br />

1996: 135).<br />

2) En la plataforma programática del Partido Comunista de Cuba se lee:<br />

“Entre las formas de la conciencia social se encuentra la religión, caracterizada por<br />

constituir un reflejo tergiversado y fantástico de la realidad exterior”. Planteamiento<br />

este que incluye algunas convicciones aquí expuestas (Girardi, 1996: 137):<br />

• El revolucionario intelectualmente maduro es el que ha superado<br />

definitivamente la conciencia religiosa.<br />

• La concepción religiosa del mundo (equivocada e ilusoria) se contrapone<br />

a la concepción científica.<br />

• La concepción religiosa del mundo está destinada a desaparecer por el<br />

impacto de la acción revolucionaria y del progreso científico.<br />

3) Fueron excluidos los creyentes de las filas del Partido y de la Juventud<br />

Comunista, (medida que coexiste con el llamamiento de creyentes y no creyentes en<br />

la construcción de la sociedad socialista) (Girardi,1996: 138s).<br />

4) Para ingresar a la universidad o a diferentes trabajos, había que llenar<br />

formularios donde se hacían preguntas muy precisas con respecto a las creencias y<br />

prácticas religiosas - ya fuesen éstas en el pasado o en aquel presente- en caso de la<br />

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respuesta ser afirmativa significaría la negación de la carrera o la plaza,<br />

principalmente en el área de Sicología, Periodismo, Pedagogía y Filosofía (Girardi,<br />

1996: 143s).<br />

70<br />

5) En las escuelas, los maestros identificaban y discriminaban a los alumnos<br />

que se manifestaran como creyentes, quedando así práctica y fe descalificadas (...)<br />

(Girardi, 1996: 143).<br />

En correspondencia con lo anterior, está lo colocado por el Cardenal Jaime<br />

Ortega quien expresara en uno de sus artículos:<br />

Estas y otras situaciones similares fueron creando un clima que<br />

imponía serias limitaciones a la libertad de conciencia y de expresión<br />

de los creyentes, que se veían obligados, para evitar la discriminación<br />

a ocultar sus convicciones y a practicar una doble moral (...) falta<br />

circunstancial de sinceridad en el seno del pueblo cub<strong>ano</strong> (...)<br />

, es decir pensar una cosa y expresarse y comportarse de<br />

forma contraria a lo pensado (Ortega, 45).<br />

Obviamente basados en testimonios como estos, no nos quedarían dudas<br />

para afirmar la violencia a que fue sometida la religión. Sin embargo, hay otros<br />

pronunciamientos que también deben ser tomados en cuenta, el propio Fidel Castro<br />

afirma: “La revolución no tiene que reprocharse nada, ni lo más mínimo (...) la<br />

revolución ha respetado de manera plena los sentimientos religiosos” (Girardi, 200-,<br />

237).<br />

Ya Aurelio Alonso, en su libro Iglesia y Política en Cuba, haciendo alusión al<br />

documento final del V Encuentro Nacional Eclesial Cub<strong>ano</strong>, apunta:<br />

la sociedad socialista (...) ha ayudado a los cristi<strong>ano</strong>s a tener una<br />

mayor valoración de la persona humana, adquirir una mayor<br />

conciencia de la persona humana; adquirir una mayor conciencia de<br />

la dimensión del pecado, en especial frente a determinadas formas de<br />

injusticia y desigualdad (racial, económica, etc). Nos ha enseñado a<br />

dar por justicia lo que antes se daba por caridad; apreciar mejor el<br />

trabajo, no solo como factor de la producción, sino también como<br />

elemento de desarrollo de la persona (...) propiciar una mayor entrega<br />

personal y ayuda solidaria a los demás. (Alonso, 17).<br />

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Es incuestionable que, basándonos en las citaciones presentadas, la respuesta<br />

a la pregunta de si existió violencia contra la religión pudiera ser perfectamente un sí<br />

o un no, dependiendo sólo del testimonio que tomemos como argumento para<br />

ejemplificar. De manera que, tanto el sí como el no pueden aceptarse, ambos forman<br />

parte de la realidad cubana. Pero, ¿Cómo algo así puede ser posible? ¿Acaso cabe el sí<br />

y el no como respuesta para la interrogante sobre esa realidad?<br />

Enrique Vijver, profesor de Teología de la Liberación en Holanda, para<br />

intentar conceptuar realidad se vale de una interesante historia que pudiera<br />

auxiliarnos: se trata del cazador que entra de noche en el bosque para cazar animales,<br />

llevando en sus m<strong>ano</strong>s un fusil y una linterna, todo animal que aparece iluminado por los<br />

rayos de luz casi con certeza muere, eso es lo único que puede describir el cazador cuando<br />

habla del bosque; diferente será el relato del biólogo que va en la busca de disímiles especies<br />

animales o vegetales durante el día, pero aún más diferente será, la apreciación de la pareja de<br />

enamorados que escoge, ese mismo bosque, como lugar de encuentro. El sí y el no pueden ser<br />

independientemente posibles respuestas porque, en su individualidad, constituyen<br />

sólo aristas de las diferentes maneras existentes de percibir la realidad, de describirla.<br />

De ahí que, percibir o describir la realidad será siempre la selección de posibles<br />

experiencias.<br />

Es decir, hay diferentes maneras de penetrar en el bosque, pero sobre todo,<br />

diferentes maneras de percibir lo que en realidad es ese bosque. Cuando pensamos<br />

describir la realidad, lo que conseguimos hacer es una descripción sólo de nuestra<br />

percepción selectiva de esa realidad. Por ello, cada uno de los testimonios<br />

presentados no son más que eso: percepciones selectivas de cazadores, biólogos y<br />

enamorados. La diferencia con la descripción de lo que puedan considerar ellos la<br />

realidad, se debe tan sólo, a la luz que les brindó su linterna, sin embargo, importante<br />

destacar que se trata del mismo bosque.<br />

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¿Religión contra Violencia?<br />

Con el inicio de la década del noventa, cambios sustanciales de toda índole<br />

aparecen conformando el escenario cub<strong>ano</strong>. Algunos de estos cambios responden al<br />

Proceso de Rectificación de Errores y Tendencias Negativas, iniciado cuatro años<br />

antes; otros, son el fruto de la crisis político, económico y social en la que Cuba se vio<br />

inmersa con la caída del Campo Socialista. Haciendo parte de estos cambios está el<br />

nuevo rostro que toman las relaciones Iglesia – Estado dentro del proceso<br />

revolucionario.<br />

Paradójicamente, aunque le llamemos de cambios, porque de hecho lo son,<br />

considero que la década del noventa denota el anquilosamiento del proceso<br />

revolucionario. A mi modo de ver, este anquilosamiento responde precisamente a<br />

esa polaridad dicotómica que marca presencia constante en este período, donde de<br />

un lado se sitúa a todo lo revolucionario, lo verdadero, lo positivo, lo bueno; y de<br />

otro, aparece lo contrarrevolucionario, la mentira, lo negativo, lo malo. Esta<br />

polaridad traza un eje central y ofrece sólo espacio para una “izquierda”<br />

autosuficiente y una “derecha” siempre condenada.<br />

La religión en Cuba, que en la década del 70 las encuestas gubernamentales<br />

la colocaban en vías de extinción, constituye también reflejo de ese anquilosamiento,<br />

esta vez de visión. Si en el ámbito público esto parecía evidente, templos cerrando,<br />

membresía reducida, trabajo eclesial limitado al interior de su edificación; la<br />

cotidianeidad del ámbito privado refleja un pueblo imbuido en lo trascendente:<br />

llámese dios, llámese santo, llámese “el sin nombre”. Así, imágenes ocultas en<br />

portarretratos, velas encendidas dentro de los armarios, señales de la cruz apenas<br />

perceptibles, bautizos escondidos o visitas a casas de consulta durante la madrugada<br />

colocan un lente diferente, que pudiera servir como corrector de la miopía del<br />

gobierno en esta época.<br />

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Han pasado más de diez años y todavía Cuba continúa insistiendo en esa<br />

polaridad, así establece su referencial de diálogo, así traza sus lineamientos, así toma<br />

sus decisiones. Así también, continúa colocando como auténtico y legítimo lo que se<br />

presenta como público, desvalorizando y minimizando la vivencia en lo privado, en<br />

otras palabras, la miopía continúa! Es esa visión estrecha la generadora de la<br />

violencia que en nombre del bien se sigue respirando. La religión en Cuba, como ya<br />

hemos dicho en otras ocasiones, deberá escoger entre el camino cómodo de decir<br />

“amén” sin cuestionamientos y con justificaciones o el de oponerse a todo lo que<br />

limite o deturpe la vida plena y abundante del ser hum<strong>ano</strong>.<br />

Conclusión<br />

Volvamos a Vijver y enfaticemos que se trata del mismo bosque, sí, no nos<br />

engañemos pensando que la polaridad puede ser normativa, que los seres hum<strong>ano</strong>s<br />

en su cotidi<strong>ano</strong> entran fácil en esa dicotomía que nos viene desde Platón. La<br />

capacidad que tenemos, como hum<strong>ano</strong>s, de pensar, así como la voluntad que nos<br />

acompaña para sobrevivir hablan más alto. Un mismo bosque, en el que decir que<br />

existen los mismos árboles, que todos los pájaros cantan la misma melodía, que los<br />

animales aman comer una misma fruta y donde lo interno es tan acogedor que sería<br />

impensable desear extrapolar sus fronteras es además de ilógico, irreal.<br />

Cuba, tiene en sus m<strong>ano</strong>s la posibilidad de ser diferente, de marcar diferencia<br />

pero desde la misma diferencia. Ya dimos el primer paso colocando los espejuelos<br />

que permiten una visión corregida, no nos los quitemos a conveniencia ni dejemos<br />

que nuevos humos empañen los cristales. No continuemos perdiéndonos en<br />

categorizaciones, esquemas o conceptos absolutos, hegemónicos y excluyentes.<br />

Aceptemos la pluralidad, y propugnemos una unidad sí, pero una unidad desde la<br />

diversidad que nos permite ser más auténticos, sinceros, libres y plenos.<br />

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Bibliografía<br />

ALONSO Tejada, Aurelio. Iglesia y Política en Cuba. La Habana: editorial Caminos, 2002.<br />

GIRARDI, Giulio. Cuba Después del Derrumbe del Comunismo. 1 ed. Matanzas: Centro de<br />

Información y Estudio “Augusto Cotto”, 1996.<br />

_____. El Ahora De Cuba, tras el Derrumbe del Comunismo y tras la Visita del Papa, España:<br />

Nueva Utopia, 200-.<br />

ORTEGA, Cardenal Jaime. Pueblo religioso y Estado Laico. In: Caminos, Ciudad de la<br />

Habana, n. 10 –11, p.44-46, abr./sep. 1998.<br />

74<br />

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A Crítica de Bernard Lauret à teoria sacrificial de Girard:<br />

Resenha sobre o texto de Lauret, Bernard. “Comment n’être<br />

pas chétien? Questions aux théses de René Girard sur le<br />

sacrifice”. In Lumière et Vie, nº 146, 1980, pp. 43-53.<br />

Palavras-chave: sacrifício, cristianismo, Girard, Bernard Lauret<br />

Por Adriane Luísa Rodolpho *<br />

“Há dois <strong>ano</strong>s as discussões alimentadas pelos livros de René Girard<br />

colocam na ordem do dia para um vasto público um tema como o do<br />

sacrifício, que não estava na moda senão em meios de especialistas,<br />

etnólogos ou teólogos. Esta teoria, que faz da revelação evangélica a<br />

única saída possível à acumulação da violência, interroga o cristão no<br />

mais vivo de sua fé. As pistas indicadas aqui não concernem senão ao<br />

ponto central do sentido do sacrifício. As posições de Girard<br />

relembradas, três grandes questões são desenvolvidas: no nível geral,<br />

a dramatização do conjunto das relações humanas no confronto<br />

mimético que conduz à crise sacrificial deixa seu lugar à todas as<br />

outras mediações que determinam a vida social? Com relação ao<br />

sacrifício em si, não é ele portador de um valor religioso positivo,<br />

inclusive no Novo Testamento onde a morte de Jesus revela de uma<br />

vez por todas a maneira pela qual Deus decidiu de estar entre nós?<br />

Enfim, este Jesus não é o Filho de Deus exatamente porque Ele viveu<br />

à perfeição um amor desprovido de todo traço de violência?<br />

Projetando sua vida e sua mensagem fora de todo condicionamento<br />

histórico, longe de toda espessura carnal, corremos o risco de nos<br />

encontrar face à um homem que não existe, e de colocar a fé sobre o<br />

caminho da gnose.”(p. 43)<br />

O artigo em questão, escrito há mais de vinte <strong>ano</strong>s, é ainda de uma<br />

atualidade pertinente, uma vez que as teses de René Girard suscitam ainda alguns<br />

debates. A posição de Lauret é interessante ainda em função do ponto de análise<br />

* Bolsista Prodoc/Capes junto à Escola Superior de Teologia. Doutora em Antropologia Social e<br />

Etnologia pela Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (EHESS-Paris) e Mestre em<br />

Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS).<br />

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escolhido em sua crítica: o questionamento da leitura não-sacrificial de Cristo a partir<br />

de argumentos teológicos. Como nos indaga o autor no início do texto, comentando o<br />

título por ele escolhido 1:<br />

76<br />

O título desta comunicação poderá parecer provocador: sua<br />

ambigüidade quer fazer eco àquela que percorre a obra de René<br />

Girard. Com efeito, se o cristianismo evangélico é a única “religião”<br />

que escapa aos mecanismos sacrificiais de violência e os denuncia<br />

como afirma R. Girard, como não ser cristão? Por outro lado, se a<br />

interpretação do sacrifício não é esta que o autor lhe atribui, negar<br />

toda a realidade sacrificial aos evangelhos não é faltar ao cristianismo<br />

em si? (p. 43)<br />

As teses de R. Girard são apresentadas resumidamente pelo autor, que<br />

enfatiza as noções de imitação violenta e de sacrifício. É assim que o papel do<br />

sacrifício é essencial na sobrevivência do grupo hum<strong>ano</strong>, e é entendido por Girard da<br />

seguinte maneira:<br />

O sacrifício, com efeito, é uma ação que permite neutralizar,<br />

certamente à revelia de seus autores, a enorme carga de violência<br />

coletiva mimética que coloca em risco a própria destruição a<br />

sociedade. Na sociedade, cada um pode se opor ao outro para se<br />

apropriar do objeto de seu desejo e do desejo do outro. No sacrifício<br />

esta violência social é reunida e projetada sobre a vitima colocada à<br />

morte: “o bode expiatório”.(p. 44)<br />

O sacrifício é então a única maneira de limitar a violência mimética que se<br />

apossa dos homens. Estes aprendem, por imitação, a desejar violentamente o que o<br />

outro ama. O esquema do desejo mimético é assim descrito por Lauret:<br />

No homem, entretanto, esta imitação possui três componentes: um<br />

indivíduo A imita um indivíduo B porque ele deseja um objeto X.<br />

Assim, A e B vão entrar em conflito porque eles desejam o mesmo<br />

objeto. (...) A inveja e o ciúme revelariam uma estrutura fundamental<br />

do desejo: cada um deseja ter o que o outro ama. O outro é assim um<br />

duplo, um irmão-inimigo. Surge assim uma escalada da violência que<br />

chega até à morte e à vingança. A história de Caim e Abel indica já o<br />

1 ‘Como não ser cristão? Questões as teses de René Girard sobre o sacrifício’<br />

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com Girard:<br />

esquema “das coisas escondidas desde a fundação do mundo” 2, que<br />

Jesus revelara em toda clareza”. (p. 44)<br />

Lauret problematiza assim o sacrifício presente no cristianismo, dialogando<br />

Jesus, com efeito, denuncia claramente a violência escondida neste<br />

mecanismo social que a religião consagra, desejando ao mesmo<br />

tempo neutralizar. Ele denuncia abertamente todos aqueles que<br />

imitaram a violência assassina de Caim, particularmente aqueles que<br />

mataram os profetas (Mt 23, 34-36; Lc 11, 47-52). Satã, mentiroso e<br />

assassino desde as origens, seria assim o “nome do processo<br />

mimético em seu conjunto” (p. 185). Em definitivo, Jesus morre por<br />

ter denunciado o caráter violento de instituições como a hierarquia e<br />

o Templo. E sua morte não é apresentada como sacrifício: ele morre<br />

“contra todos os sacrifícios” (p. 234). Ele denuncia a lógica aí<br />

escondida, quando o Evangelho traz abertamente o raciocínio do<br />

grande pastor: “é melhor uma só morte, para todo o povo”. O “todos<br />

contra um”! esta revelação, aliás, marca o fim apocalíptico da história:<br />

ou bem é a catástrofe final, liberando a violência que os sacrifícios não<br />

poderão mais pretender exorcizar uma vez que seu jogo foi revelado,<br />

ou bem a violência será substituída pelo amor. O amor ou a guerra,<br />

tal é a perspectiva que fecha a obra. Será assim tão simples? (p. 45)<br />

Lauret coloca-nos questões interessantes acerca do sacrifício de Jesus Cristo e<br />

a noção de R. Girard sobre a violência mimética e o bode expiatório. O caráter<br />

simplista da articulação realizada por Girard é mais tarde pontuado pelo autor a<br />

respeito da coerência das teses propostas:<br />

As teses de R. Girard têm a vantagem de uma grande coerência. Num<br />

momento onde as diversas ciências humanas recortam o real em<br />

campos escrupulosamente delimitados e guardados, R. Girard<br />

propõe uma teoria de conjunto que perpassa os desejos hum<strong>ano</strong>s, as<br />

relações sociais, os ritos religiosos. As pessoas criticam-no por falar<br />

tanto da psicanálise quanto da antropologia social e religiosa a partir<br />

de obras literárias (romances, tragédias gregas, Bíblia) e não a partir<br />

de estudos “no campo”, mas esta visão de conjunto provoca a<br />

reflexão. (p. 46)<br />

2 N. T.: René Girard. Des choses cachées depuis la fondation du monde. Paris: Ed.Grasset, 1978. Todas as<br />

citações do artigo de Lauret provêm deste livro.<br />

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Com efeito, a teoria de conjunto proposta por Girard prima pela variedade<br />

de temas e de fontes onde o autor busca as confirmações de suas propostas. Um tema<br />

entretanto é recorrente na teoria de Girard: a violência mimética. Lauret salienta que<br />

esta redução é um erro, que não leva em consideração os inúmeros outros aspectos<br />

importantes da questão.<br />

Não se trata de ignorar a força do ciúme ou da inveja no homem nem<br />

o prestígio de uma certa raridade em economia. É oportuno<br />

igualmente revelar a ambigüidade, ou melhor, a ambivalência da<br />

vida mesmo na religião. Mas é um exagero reduzir todos os desejos a<br />

um só e este à violência mimética. Podemos amar alguma coisa<br />

porque ela é boa ou nos agrada e não porque ela é inicialmente<br />

desejada pelos outros. Uma dramatização exagerada do desejo não<br />

faz senão estender a situação edipiana (o conflito pai-mãe-criança; leiobjeto-desejo)<br />

ao conjunto da vida sem levar em conta outros dados<br />

da construção psicanalítica (o princípio de castração, por ex.). Esta<br />

dramatização extrema risca de justificar, sob forma preventiva, todas<br />

as interdições, pretendendo ao mesmo tempo realçar o brilho do<br />

amor evangélico, fora de toda violência, tal como lhe concebe R.<br />

Girard. (p. 46)<br />

O recorte preciso que Girard realiza em suas fontes é salientado assim por<br />

Lauret, uma vez que sistematicamente Girard desconsidera o que não lhe interessa<br />

na construção de sua argumentação. Nesta série de generalizações, o autor corre o<br />

risco, seguindo Lauret, de esvaziar a noção de religioso de todo seu valor heurístico:<br />

Ora, esta dramatização é explicitada essencialmente sob forma<br />

religiosa, faltando outras dimensões sociais. O mecanismo do “bode<br />

expiatório” serve para explicar tão bem a justificação da pena de<br />

morte quanto o medo da deflagração atômica, que canalizaria a<br />

violência coletiva numa escala imensa. Neste grau de generalizações,<br />

podemos nos perguntar se os mecanismos da violência mimética e do<br />

rito sacrificial dizem alguma coisa das mediações sociais, jurídicas,<br />

econômicas e teológicas em questão. O rito religioso do sacrifício<br />

toma uma tal extensão que perde seu senso propriamente religioso.<br />

Dito de outra forma, a religião se torna uma metáfora mole,<br />

extensível como se queira, que a esvazia de sua substância sem,<br />

portanto, dar a sua às diversas mediações sociais. (p. 47)<br />

Em seguida Lauret nos questiona sobre a pertinência – ou não – de<br />

considerar o sacrifício como a expressão da regulação da violência sob figura<br />

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religiosa. A este respeito, o autor salienta a importância da dimensão de comunicação<br />

entre homens e deus; esta não é considerada por R. Girard.<br />

A. Vergote notou que o sacrifício em Girard toma facilmente a forma<br />

do mecanismo paranóico (projeção da agressividade sobre o outro)<br />

ou simplesmente do linchamento: toda violência coletiva é projetada<br />

sobre o bode expiatório. Este esquema pôde funcionar na tradição<br />

cristã, em particular na teoria da redenção substitutiva em santo<br />

Anselmo: o Filho é levado à morte pelo Pai para vingar a ofensa que<br />

lhe fora feita. Mas a antropologia religiosa nos convida a ver alguma<br />

coisa de mais especificamente religiosa no sacrifício: a busca de uma<br />

comunicação entre homens e divindade. A vítima, que é de início<br />

sacralizada, é sacrificada e suprimida para deixar à divindade a<br />

iniciativa de preencher assim o espaço entre ela e o homem. Tal é o<br />

sentido do sacrifício dito de comunhão. Certamente o sacrifício pode<br />

exprimir também mediações institucionais (o templo, uma hierarquia<br />

sacerdotal, etc.) dos quais, aliás, R. Girar não fala mas, do ponto de<br />

vista religioso, ele diz alguma coisa da relação entre Deus e os<br />

homens: uma comunicação de vida. Falta ainda precisá-la. (p. 47)<br />

Falando de um ponto de vista teológico, Lauret questiona Girard sobre a<br />

opção deste em reduzir o sacrifício a um jogo social.<br />

Se o sacrifício fosse este mecanismo de projeção que pinta R. Girard,<br />

poderíamos dizer que ele está ausente da maior parte dos textos do<br />

Novo Testamento. É inclusive verdade que Lucas, por ex., pode se<br />

passar da noção de sacrifício para dar um sentido à morte de Jesus,<br />

profeta martirizado à morte por causa de seu testemunho. Mas o<br />

sacrifício recebe outra significação humana e crente na tradição<br />

bíblica, desde o Antigo Testamento: ele diz de obediência à vontade<br />

divina. O que não ocorre sem renúncia. É aqui que não podemos nos<br />

enganar. Uma certa espiritualidade religiosa fez do sacrifício a<br />

renúncia que se reduz a uma privação (pequena ou grande). Esta<br />

definição não diz nada do sacrifício como um ato de fé. Ora, o<br />

sacrifício deve dizer alguma coisa da religião, senão ele não tem nada<br />

de um ato religioso. Mas ele quer testemunhar do primado de deus e<br />

deixar assim um Deus ser Deus. A obediência não é uma atitude<br />

masoquista, mas uma prática de esperança crente e amante. O<br />

sacrifício se estende também a toda a vida. Ele supõe portanto a fé em<br />

Deus. Tal não é mais o sacrifício segundo a definição que fornece<br />

Girard, já que ele o explica inteiramente por um jogo social. Nos<br />

surpreende que tantos cristãos tenham encontrado nesta obra um<br />

conforto apologético de sua fé, enquanto que o cristianismo aí se<br />

torna simples metáfora cultural. (p. 48)<br />

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Lauret considera que um dos atrativos para a aceitação das teses de R. Girard<br />

é o aspecto da “substituição” ou “redenção vicária” presentes no sacrifício proposto<br />

pelo autor:<br />

Mas é necessário ainda ir mais longe. O sacrifício não é somente um<br />

ato religioso que supõe a fé em Deus. Ele diz alguma coisa de Deus,<br />

tal que o revela Jesus. Eu sei que se tornou bastante corrente entre<br />

alguns cristãos recusar todo valor sacrificial à Páscoa de Jesus. Por<br />

quê? Porque eles recusam assim, entre outros, dois sentidos<br />

aberrantes do sacrifício. De um lado, as relações patológicas entre Pai<br />

e Filho, segundo as quais o Pai desejaria a morte do Filho para que<br />

sua honra, maculada pelo pecado, seja vingada. Trata-se aqui de uma<br />

projeção psicológica dos conflitos megalôm<strong>ano</strong>s entre pais e filhos.<br />

Isto não corresponde às figuras bíblicas do Pai que recusa o sacrifício<br />

de Isaac, prefere a misericórdia, se alegra do retorno do filho pródigo,<br />

e nos dá seu Filho (Ro 4, 25; 8, 32). Por outro lado, a recusa do<br />

sacrifício é motivada igualmente pela rejeição da “substituição” ou<br />

“redenção vicária”: Jesus morre em nosso lugar para nos salvar do<br />

pecado. Muitos vêem lá uma substituição de Jesus à nossa liberdade e<br />

mesmo à nossa morte. Se assim foi, o Deus Salvador nos privaria<br />

daquilo que Ele nos deu como criador: nossa responsabilidade. Isso<br />

seria inaceitável. (p. 48)<br />

Sobre a especificidade do sacrifício de Jesus Cristo, o autor indica:<br />

Mas será que é disto que se trata? Talvez mais do que substituição,<br />

compreendida neste sentido, o que riscaria de fazer pensar a uma<br />

odiosa trucagem, é necessário falar de dom e de reconciliação: Jesus<br />

morreu por nós. No sentido mais corrente do termo, aquele que<br />

empregamos espontaneamente com relação àqueles que dão suas<br />

vidas para salvar uma outra, ele se sacrifica para nós. Mas este<br />

sentido comum, bem que heróico, não é suficiente para dizer da<br />

originalidade da morte de Jesus. Se assim não fosse, não veríamos por<br />

quê do ato “heróico” de Jesus, o da testemunha que morre por seus<br />

ideais, teria tido mais eco que aquele deste ou daquele herói da<br />

Antiguidade ou mesmo dos combatentes da última guerra judaica. Se<br />

a morte de Jesus é um acontecimento considerável, é porque se trata<br />

da morte do Messias, aquele a quem reconhecemos como Filho de<br />

Deus, e porque o Messias morre por nós. Antes mesmo da teologia do<br />

justo ou do testemunho mártir, tal qual aparece no exemplo em<br />

Lucas, é o sentido que foi dado por Jesus ele mesmo, não será que na<br />

instituição da eucaristia e que encontramos nas epístolas de Paulo<br />

bem antes da redação dos evangelhos. E é bem isto que é novo. Ainda<br />

uma vez, se Jesus não fosse senão o profeta denunciando a violência<br />

do mimetismo social ou o justo mártir, ele teria sido venerado mais<br />

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ou menos como um dos profetas ou dos justos de Israel. Ora, sua<br />

morte tomou uma ressonância sem comparação na nossa história e na<br />

história de Israel, já que ela provocou o judaísmo a expulsar os<br />

discípulos de Jesus. Por quê? O sacrifício desempenha aqui um papel<br />

importante. A morte do Messias, com efeito, torna inúteis os<br />

sacrifícios (de louvor, de intercessão, de comunhão ou de expiação)<br />

do Templo, já que ele é o sacrifício perfeito que permite a Deus de ser<br />

ele mesmo entre os homens. É, entre outros, por ter proclamado o fim<br />

do Templo, o perdão concedido hoje em dia aos pecadores e a<br />

reabilitação aos rejeitados que Jesus é condenado e Etienne lapidado.<br />

É assim que a cruz, o Messias crucificado, é “escândalo para os judeus<br />

e loucura para os pagãos” (1 Co 1, 23). Paulo exprime aqui em termos<br />

vigorosos um pensamento que remonta mais perto do Jesus prépascal<br />

e a seu comportamento frente ao messianismo político e de seus<br />

discípulos surpresos e escandalizados. Dizer então que a cruz é o<br />

sacrifício último, é querer ir mais além nas razões psicológicas,<br />

sociológicas, políticas e religiosas que selaram o processo de Jesus,<br />

sua condenação e sua reabilitação pela ressurreição. Nesta linha, o<br />

cristianismo torna-se outra coisa que a fina flor de uma metáfora<br />

cultural da qual Jesus seria o exemplo moral ou mesmo o revelador,<br />

tal como apresenta Girard. (p. 49)<br />

Lauret passa a discutir sua terceira questão, qual seja: “Jesus é o “homem<br />

perfeito” e Filho de Deus simplesmente porque Ele se subtraiu a toda violência?” A<br />

uma visão romântica do amor desprovido de toda violência, Lauret contrapõe a tese<br />

de que ‘o amor evangélico não é isento de violência’:<br />

Apesar das formulações ambíguas – que poderiam de fato abrir uma<br />

interpretação teológica interessante – o Jesus de Girard aparece como<br />

o homem exemplar de uma sociedade que teria escapado à violência<br />

mimética para se engajar nas relações sociais inteiramente dominadas<br />

pelo amor. “O necessário, para escapar da violência, nos dizem os<br />

Evangelhos, é amar perfeitamente seu irmão, é renunciar à mimésis<br />

violenta da relação dos duplos. É isto que fez o Pai e tudo o que quer<br />

o Pai é que façamos como Ele. É por isso que o Filho promete aos<br />

homens que, se eles conseguirem conduzir-se como o Pai deseja, a<br />

fazer sua vontade, eles serão todos Filhos de Deus. (...) Não existe<br />

senão o Cristo, sobre a Terra, que tenha jamais encontrado Deus pela<br />

perfeição de seu amor (...) Se o Filho do Homem e o Filho de Deus<br />

não são senão um, é porque Jesus é o único a realizar uma perfeição<br />

do hum<strong>ano</strong> que não faz senão um com a divindade”.(pp. 238-239).<br />

R. Girard une-se neste aspecto ao coração da mensagem evangélica:<br />

Deus é amor. Entretanto, a observar de mais perto, este amor é oposto<br />

à toda violência, como seu contrário, e é isto que o torna muito<br />

abstrato, ao risco de fazer do cristão uma “bela alma” romântica. O<br />

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amor e a violência não são sempre inseparáveis, sob uma forma ou<br />

outra? Ora, Girard defende um amor puro de toda violência e<br />

agressividade, que ele pensa reconhecer na mensagem de Jesus.<br />

“Releiamos o Sermão da Montanha e veremos que o significado e o<br />

alcance do reino de Deus são perfeitamente claros. Trata-se sempre<br />

de reconciliar os irmãos inimigos, de colocar um fim à crise mimética<br />

pela renúncia de todos à violência. Fora a expulsão coletiva,<br />

reconciliatória porque unânime, somente a renúncia incondicional e,<br />

se for necessário, unilateral, da violência pode por fim à relação dos<br />

duplos. O Reino de Deus é a eliminação completa e definitiva de toda<br />

a vingança e de todas as represálias nas relações entre os homens. (p.<br />

220-221).<br />

O amor está no coração do Evangelho. É inegável. Mas não ver como<br />

ele usa também de violência e lhe é misturada de todas as maneiras, é<br />

lhe trair. O amor evangélico, com efeito, não mais que qualquer amor,<br />

não é isento de violência: seja no mandamento de deixar pai e mãe ou<br />

família, seja no combate contra certas instituições que desservem o<br />

povo, seja na relação mesmo com Deus-Amor. A relação do crente<br />

com Deus não é o amor-fusão que subentende Girard: o exemplo da<br />

agonia de Jesus é o exemplo mais flagrante. A fé, como o amor, é uma<br />

experiência de alteridade e de alteração onde mesmo a paz e a<br />

harmonia profundas não excluem singulares combates. É justamente<br />

esta aventura pessoal de fé e de vida que Girard esquece demais em<br />

sua teoria que não deixa lugar ao singular e individual. (p. 50-51)<br />

Lauret apresenta dois outros traços com relação à figura de Jesus que lhe<br />

parecem particularmente significativos. Inicialmente ele critica a leitura não-<br />

sacrificial da morte do Cristo, proposta por Girard:<br />

Primeiro, a interpretação da Páscoa: cruz e ressurreição. Para Girard,<br />

a cruz não é senão a revelação-denúncia do mecanismo social da<br />

violência mimética. “É necessário insistir sobre o caráter nãosacrificial<br />

da morte de Cristo, dizer que Jesus morreu, não num<br />

sacrifício, mas contra todos os sacrifícios, para que não haja mais<br />

sacrifícios. (p. 234). Jesus realiza assim a Palavra de Deus. “Se esta<br />

realização sobre a terra passa necessariamente pela morte de Jesus,<br />

não é porque o Pai assim o decidiu, por estranhas razões sacrificiais,<br />

não é nem ao Filho nem ao Pai que perguntaremos a causa deste<br />

acontecimento, é à todos os homens. O fato mesmo que a<br />

humanidade não tenha realmente compreendido o que é revela<br />

claramente o desconhecimento sempre perpetuada do assassinato<br />

fundador, nossa fraqueza em entender a Palavra divina”. (p. 236) (p.<br />

51)<br />

Sobre os desdobramentos teólogicos da questão, Lauret questiona:<br />

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Poderíamos esperar escutar aqui que Girard diga como a cruz é<br />

justamente Palavra e revelação do Deus escondido. De fato, a<br />

formulação ambígua de seu discurso não pretende esclarecer este<br />

ponto. Deus, ele mesmo não é senão o Princípio da Lei interditando a<br />

violência mimética. Ora, se rejeitamos igualmente um tipo de vontade<br />

patológica sacrificial da parte do Pai, não podemos fazer da cruz uma<br />

simples ilustração do Princípio que exclui toda violência mimética,<br />

porque então a cruz não seria mais um elemento central para a fé. E,<br />

de fato, em Girard, uma vez que a cruz não é senão uma ilustração e<br />

não abre uma crise, a ressurreição não desempenha nenhum papel.<br />

Não somente as circunstâncias políticas e teológicas da morte são<br />

caladas, mas a ressurreição não é mais o acontecimento fundador da<br />

fé (cf. pp. 242-256). Desejando descartar uma interpretação sacrificial,<br />

no sentido de mecanismo social de violência, ele não poderia dar à<br />

cruz como sacrifício mais do que uma interpretação mecânica, que<br />

não podemos senão descartar junto com ele, sem dúvida: “Se a morte<br />

de Jesus foi sacrificial, em suma, a ressurreição seria o “produto” da<br />

crucificação. Ora, não é assim e a teologia ortodoxa sempre resistiu<br />

vitoriosamente à tentação de transformar a paixão em processo<br />

divinizador.” (p. 256). Lá ainda, verdadeiro e falso são misturados. A<br />

fé não diz que a cruz pascal diviniza Jesus, mas que ela revela em<br />

definitivo Deus ele mesmo. Esta revelação de Deus é anterior, para<br />

Girard, ao acontecimento pascal. Isto é confirmado pelo segundo<br />

traço que eu gostaria de assinalar aqui: sua interpretação da<br />

concepção virginal. “A ausência de todo elemento sexual não tem<br />

nada a ver com o puritanismo ou o recalque, imaginados pelo século<br />

XIX que acabava e bem digno da baixa época que os gerou. A<br />

ausência de toda sexualidade é a ausência de toda esta mimésis<br />

violenta que nos falam, nos mitos, o desejo e a violação pela<br />

divindade” (p. 244). “Dizer que o Cristo é Deus, nascido de Deus, e<br />

dizer que Ele tenha sido concebido sem pecado, é sempre repetir que<br />

Ele é perfeitamente estranho à este universo da violência, no seio do<br />

qual os homens são aprisionados desde que o mundo é mundo, ou<br />

seja, desde Adão”. (p. 246). (p. 51-52)<br />

A discussão sobre a virgindade de Maria é o fio condutor de Lauret, quando<br />

questiona Girard sobre a concepção divina, não menos violenta que qualquer outra<br />

concepção. Este argumento leva Lauret a identificar, nas teses de Girard, a presença<br />

de um mito gnóstico, estruturador de toda lógica do sistema girardi<strong>ano</strong>.<br />

Existem muitas maneiras de se situar com relação à concepção<br />

virginal de Jesus. Mas não podemos realmente ler no texto de Lucas<br />

que o evangelista tenha querido excluir a sexualidade na concepção<br />

de Jesus, pelo único motivo que uma concepção “normal” seria um<br />

puro ato de violência. Por seu relato, Lucas quer significar<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 83


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Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

inicialmente a origem divina. E, aliás, sobre este aspecto, não vemos<br />

como a iniciativa divina é menos violenta que uma outra concepção.<br />

Temo que Girard projete em Jesus um modelo de humanidade ideal<br />

que ilustre bem a sua teoria, portanto um mito e mesmo um mito<br />

gnóstico, uma vez que todas as mediações materiais tornam-se sem<br />

significação positiva. Jesus torna-se o revelador que vem fazer sair os<br />

homens de seu inferno, sem aí se encarnar ele mesmo. “A<br />

humanidade inteira está fechada neste círculo. É porque os<br />

Evangelhos, o Novo Testamento em seu conjunto e a teoria dos<br />

primeiros concílios afirmam que o Cristo é Deus não porque ele foi<br />

crucificado, mas porque ele é Deus nascido do Deus de toda a<br />

eternidade”. (p. 242). Eis uma afirmação que não se une ao processo<br />

histórico da fé em Jesus Cristo. Com efeito, é sobre a base da<br />

ressurreição que nasce a afirmação da divindade de Jesus, mesmo se<br />

as discussões posteriores tenham tido tendência à esquecer”. (p. 52)<br />

Lauret caracteriza a leitura que faz Girard como a de “uma religião sem<br />

mediações históricas”. Isenta de todas as outras conexões sociais, a religião neste<br />

sentido – e a noção de homem que ela apresenta – é mais e mais a imagem de um<br />

ideal, presente apenas na proposta de Girard.<br />

A obra de R. Girard é a ocasião de numerosos debates, uma vez que seu<br />

pensamento recorta alguns domínios com a força de uma coerência massiva.<br />

Nós sublinhamos aqui alguns limites no que diz respeito à fé sem prejulgar,<br />

evidentemente, a atitude pessoal do autor. Este pensamento se insere no que<br />

chamamos abusivamente de “retorno do religioso”. Aqui, ao menos, vemos<br />

que a metáfora religiosa tende a devorar todas as outras medições<br />

psicológicas, sociais, econômicas, políticas e teológicas, enquanto ao mesmo<br />

tempo ela tenta lhes anexar. Sua religião tende mais e mais a apresentar um<br />

homem ideal, estranho a toda “violência”: um homem que não existe e que<br />

joga amplamente do registro da culpabilidade, com sua negação da morte e<br />

da agressividade concreta, apesar de sua denúncia massiva da violência. Que<br />

esta denúncia seja esclarecedora e útil, é inegável. Mas entretanto tudo não<br />

foi ainda dito da fé cristã”. (p. 53)<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp


Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia<br />

Volume <strong>03</strong>, jan.-abr. de 2004 – ISSN 1678 6408<br />

Como citar esta revista:<br />

Como citar esta revista<br />

Protestantismo em Revista. São Leopoldo, v. <strong>03</strong>, jan.-abr. 2004. ISSN 1678 6408 Disponível em:<br />

Acesso em: 30/11/2008<br />

Como citar um artigo desta revista:<br />

(Exemplo)<br />

NÚÑEZ DE LA PAZ, Nivia Ivette. ¿Violencia contra Religión o Religión contra Violencia en Cuba<br />

Revolucionaria? Protestantismo em Revista. São Leopoldo, v. <strong>03</strong>, jan.-abr. 2004, p. 68-74. ISSN 1678 6408.<br />

Disponível em: Acesso em: 30/11/2008.<br />

Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 85

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