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Ensalmos: benefícios castigados - Universidade do Porto

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<strong>Ensalmos</strong>: <strong>benefícios</strong> <strong>castiga<strong>do</strong>s</strong><br />

JOÃO PEIXE 1<br />

jpiscis@ilch.uminho.pt<br />

Em 1536, o Tribunal <strong>do</strong> Santo Ofício da Inquisição estende o braço da sua<br />

atuação ao Reino de Portugal e <strong>do</strong>s Algarves. Instituiu-a o Papa Paulo III, pela bula<br />

Cum ad nil magis, datada de 23 de maio desse ano. 2 Após as anteriores tentativas de<br />

estabelecimento desta instituição no país terem fracassa<strong>do</strong>, 3 desta feita, o decreto papal<br />

seria mesmo executa<strong>do</strong>. O Reino e a Igreja portugueses passavam a contar com este<br />

instrumento no esforço de obtenção de hegemonia religiosa e subordinação popular. 4 O<br />

Papa providencia – lê-se no <strong>do</strong>cumento (Pereira 1984, p.23) – “com oportunos<br />

remédios, como ao [seu] ofício incumbe, para que tais pestes não difundam os seus<br />

venenos para dano <strong>do</strong>s outros”. As “tais pestes” eram enumeradas no parágrafo anterior:<br />

[...] alguns converti<strong>do</strong>s da infidelidade hebraica à fé cristã, chama<strong>do</strong>s cristãos novos, e<br />

outros que nunca professaram a seita hebraica mas nasceram de pais já cristãos, [que]<br />

observa[vam] aqueles ritos judaicos e outros [que] segui[am] a Luterana e a Maometana e<br />

outras heresias e erros condena<strong>do</strong>s e feitiçarias que manifestamente denotam heresia,<br />

[ambos sem] pejo de cometer gravíssima ofensa da Divina Majestade, causar grave<br />

escândalo da fé orto<strong>do</strong>xa e irreparável dano à salvação das almas... (Pereira 1984, p.23)<br />

A este nosso trabalho interessam, em particular, mais os sacrilégios e erros<br />

condena<strong>do</strong>s, bem como as feitiçarias denota<strong>do</strong>ras de heresia. Sobre estas práticas,<br />

Manuel <strong>do</strong> Vale de Moura publicou um longo trata<strong>do</strong> intitula<strong>do</strong> De Incantationibus seu<br />

Ensalmis. 5 Como o título deixa antever, esta obra, publicada em 1620, analisa os<br />

fenómenos conheci<strong>do</strong>s como Encantamentos ou, se preferirmos, <strong>Ensalmos</strong>. Pretendia<br />

constituir-se <strong>do</strong>utrina sobre a matéria e, por essa via, orientar a atuação <strong>do</strong>s tribunais<br />

eclesiásticos em geral e, muito em particular, a atuação <strong>do</strong> Tribunal <strong>do</strong> Santo Ofício. A<br />

publicação era oportuna. Apenas poucos anos antes, a propósito <strong>do</strong> assunto, as<br />

autoridades eclesiásticas e o Tribunal <strong>do</strong> Santo Ofício tinham discuti<strong>do</strong> o foro com<br />

1<br />

Centro de Estu<strong>do</strong>s Humanísticos da <strong>Universidade</strong> <strong>do</strong> Minho, Braga, Portugal.<br />

2<br />

Esta bula foi publicada, em edição bilingue, pelo Arquivo Histórico Dominicano Português (Pereira 1984). São desta edição todas<br />

as minhas referências a <strong>do</strong>cumentos papais.<br />

3<br />

Em 1531, já Clemente VII tinha decreta<strong>do</strong> o estabelecimento da Inquisição em Portugal, mas essa bula nunca foi executada. Em<br />

1532, um breve papal mandava executar a sua bula anterior. Porém no ano a seguir, ainda o mesmo Papa revogava esses decretos.<br />

Seguiu-se, em 1534, a suspensão <strong>do</strong>s procedimentos contra hereges e apóstatas não relapsos, já pelo Papa Paulo III.<br />

4<br />

Sobre a forma como a Inquisição contribuía para a pacificação religiosa e popular de Portugal reino cf. Paiva 2011, pp. 261 e sqq.<br />

5<br />

Moura, Manuel <strong>do</strong> Vale de, De Incantionibus Seu Ensalmis, Évora, Laurentii Crasbeeck, 1620, a que nos referiremos, daqui em<br />

diante, pelo título abrevia<strong>do</strong> De Ensalmis.<br />

1


competência para julgar estas matérias. Segun<strong>do</strong> José Pedro Paiva (2011), foi aliás das<br />

poucas vezes em que as duas instâncias se desentenderam. Pareceres foram pedi<strong>do</strong>s, e o<br />

De Ensalmis, pela meticulosidade <strong>do</strong> trabalho da sua investigação, parecia dirimir<br />

definitivamente a questão. Vale de Moura estava particularmente habilita<strong>do</strong> para o<br />

efeito, já que era Doutor em Teologia pela <strong>Universidade</strong> de Évora e – diríamos hoje –<br />

“pós-gradua<strong>do</strong>” em Jurisprudência Pontifícia pela Academia Conimbricense. Além<br />

disso, desde 1603, desempenhava o cargo de Deputa<strong>do</strong> da Inquisição de Évora. Possuía,<br />

pois, vasta experiência processual prática que acumulava à sua consistente formação<br />

teórica. O <strong>do</strong>cumento, com mais de 500 páginas, permanece ainda hoje em Latim e a<br />

sua tradução para uma qualquer língua vernácula dá agora os primeiros passos, no<br />

âmbito da nossa investigação. 6<br />

A obra está dividida em três secções: a primeira versa sobre os vários mo<strong>do</strong>s de<br />

experienciar os <strong>Ensalmos</strong>; na segunda secção, a mais extensa, que ocupa cerca de <strong>do</strong>is<br />

terços da obra, resolvem-se questões, refutan<strong>do</strong> os erros e as opiniões contrárias,<br />

enuncian<strong>do</strong> os respetivos fundamentos; a terceira dedica-se às instâncias <strong>do</strong> Tribunal.<br />

Antes porém, o autor procura definir o conceito de Ensalmo.<br />

Ensalmi sunt quaedam benedictiones, siue imprecationes confectae ex certa<br />

verborum, praesertim sacrorum, formula, interdum quesiue ex materia aliqua, ut uino, ac<br />

pano [sic], certo partium numero complicato: quibus homines praecipuè, ut ferunt, Hispani<br />

utuntur tam ad uulnera, morbosque alios curan<strong>do</strong>s, et nocumenta uaria repellenda, ut quae<br />

euenire possunt ex tempestatibus, uenenosis, ac feris animantibus, et similibus: tum ad<br />

bona alia maxime temporalia obtinenda. Vnde, in rigore loquen<strong>do</strong> idem sunt atque<br />

incantationes. (Moura 1620, Fol. 1r, § 1)<br />

<strong>Ensalmos</strong> são algumas graças ou invocações maliciosas levadas a efeito a partir de<br />

uma fórmula de palavras, em especial sagradas, às vezes a partir de alguma substância,<br />

como vinho e até pão, num da<strong>do</strong> número de partes misturadas. Os homens, segun<strong>do</strong> se diz,<br />

principalmente os habitantes da Hispânia, servem-se deles para curar feridas e outras<br />

<strong>do</strong>enças e para repelir males vários, como os que podem advir das condições <strong>do</strong> tempo, de<br />

animais venenosos e selvagens, ou similares; mormente então, para obter outras<br />

temporalidades. São, portanto, em rigor encantamentos.<br />

<strong>Ensalmos</strong> eram, pois, enunciações de uma certa sequência de palavras com vista<br />

a obter determina<strong>do</strong> benefício, apenas pela força performativa <strong>do</strong> ato. Esta parte verbal,<br />

com frequência formada por palavras das Escrituras, podia ser acompanhada (mas não<br />

necessariamente) de uma parte física, com receitas que podiam incluir vários<br />

ingredientes. Como é dito no texto, chegava mesmo a usar-se vinho e pão, ou seja, as<br />

6 As traduções aqui apresentadas são de nossa autoria. e fazem parte de material fragmentário ainda não totalmente revisto.<br />

2


mesmas substâncias presentes na Eucaristia, no mistério da transubstanciação. Assim<br />

descritos – e, pelo que sobressai da referência <strong>do</strong> texto, muito populares na Península<br />

Ibérica –, os <strong>Ensalmos</strong> eram usa<strong>do</strong>s para obter os tais <strong>benefícios</strong> temporais, que<br />

incluíam curas e o poder de repelir animais venenosos e selvagens. Daí que o autor<br />

conclua que <strong>Ensalmos</strong> são em rigor Encantamentos. Para essa conclusão, tem em<br />

consideração a definição de Encanta<strong>do</strong>r proposta por Isi<strong>do</strong>ro de Sevilha, já citada no<br />

Malleus Maleficarum (Institoris & Sprenger, 2006, Vol. 1, p. 490) e que ele cita<br />

também nestes termos (Moura, 1620, Sec. I, Cap. I, § 1, Fol. 1r): “Incantatores sunt illi,<br />

qui suam artem peragunt uerbis”, “encanta<strong>do</strong>res são aqueles que executam a sua arte<br />

através de palavras”.<br />

Ora, estas palavras, como já foi dito, eram frequentemente retiradas das<br />

Escrituras, muito particularmente <strong>do</strong>s Salmos. Vale de Moura encontra neste facto uma<br />

dupla razão para a origem <strong>do</strong> nome Ensalmo: etimológica, dada a derivação óbvia, e de<br />

semelhança, dadas as parecenças na enunciação de ambos.<br />

Ensalmo:<br />

Sumpserunt autem nomen, uel à Psalmis, [...] quia nempe frequentius ex Psalmorum<br />

uerbis, et ad instar illorum componuntur: iuxtà quam deriuationem, ut Brauus notat,<br />

uocandi sunt Empsalmi, eorumque minister Empsalmator, uel Empsalmista,[...] (Moura<br />

1620, Sec. I, Cap. I, § 2, Fol. 1v)<br />

Por outro la<strong>do</strong>, estabeleceram o nome [<strong>Ensalmos</strong>] a partir de Salmos, como quer<br />

[Luis Alfonso] Carvallo (in Cysne de Apollo, Dialog. 1, § 12, vers. Donde, fol. 44) e<br />

[como] assume [João] Bravo (que deverá ser cita<strong>do</strong> abaixo, cap. 2, n. 1), sem dúvida<br />

porque, (mais) frequentemente a partir das palavras <strong>do</strong>s Salmos, [os <strong>Ensalmos</strong>] são<br />

elabora<strong>do</strong>s à sua imagem. Em consequência desta derivação, como explica Bravo, devem<br />

ser chama<strong>do</strong>s <strong>Ensalmos</strong>, e o ministro destes, Ensalma<strong>do</strong>r, ou Ensalmista.<br />

Na sua pesquisa, o autor encontrou ainda outra possível origem para o nome<br />

[...] uel, ut supponit del Rio libr. I disquisit. cap. 3. quaest. 4. §. de militari, ab<br />

Anselmo, non quidem beato illo Anselmo nostro, ut est mendax Blasphemia inter aliquos<br />

praesertim milites, sed a quodam (satis alio) Anselmo Parmensi Mago, nomineque<br />

corrupto non Anselmi, sed Ensalmi uocitantur[...] (Moura 1620, Sec. I, Cap. I, § 2, Fol. 1v)<br />

Outra hipótese, como assume [Martin] Del Rio (libr. 1, Disquisitionum Magicarum,<br />

cap. 3, q. 4, § de militari), [o nome deriva] a partir de Anselmo, não certamente aquele<br />

nosso beato Anselmo, quan<strong>do</strong> a mentira é blasfémia sobretu<strong>do</strong> entre alguns solda<strong>do</strong>s, mas a<br />

partir de um tal (certamente outro) Anselmo Parmense Mago. Então são chama<strong>do</strong>s<br />

<strong>Ensalmos</strong>, não Anselmos, nome corrupto.<br />

3


Este Anselmo Parmense seria um curandeiro entre militares, daí a possibilidade <strong>do</strong><br />

nome Ensalmo ser uma corruptela <strong>do</strong> nome <strong>do</strong> mago. Não obstante, mais plausível<br />

parece a primeira hipótese, de o nome derivar de Salmos, dadas as parecenças que<br />

resultariam da colagem das suas palavras sagradas nas formulações <strong>do</strong>s Ensalmistas.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, o deputa<strong>do</strong> da Inquisição nota duas formas que os <strong>Ensalmos</strong><br />

poderiam apresentar:<br />

Primo, per modum deprecationis, seu orationis impetratiuae, ac operis operantis,<br />

siue impetratio speretur à Deo, siue à Daemone. Secun<strong>do</strong> instar operis operati, quasi ex ui,<br />

et institutione sua apta sit caeremonia ista, praedictos effectus operari, siue instar<br />

sacramentorum, uel sacramentalium, siue instar causarum naturalium. Priores uocabimus<br />

claritatis studio benedictiones inuocatiuas; posteriores constitutiuas; (Moura 1620, Sect. I<br />

Cap. I § 3, Fol. 1v)<br />

Primeiro, [são] impetratórios ao mo<strong>do</strong> de uma súplica ou de uma oração, ou mesmo<br />

de um ato de um clérigo, quer se espere uma impetração de Deus, quer de um espírito.<br />

Segun<strong>do</strong>, [são] semelhantes a uma cerimónia religiosa, como se esse ato, pela sua força e<br />

organização, fosse capaz de produzir os efeitos preditos, quer à semelhança de mistérios<br />

sagra<strong>do</strong>s ou de juramentos, quer parecen<strong>do</strong> [resulta<strong>do</strong> de] causas naturais. Com desejo de<br />

clareza, chamaremos os primeiros graças invocativas e os últimos graças constitutivas.<br />

Por outras palavras, sob a forma invocativa, havia sempre a esperança de<br />

obtenção de um benefício por intervenção sobrenatural; sob a forma constitutiva,<br />

esperava-se a produção de um efeito por um nexo de causalidade entre o Ensalmo e o<br />

resulta<strong>do</strong> a operar. O tipo de <strong>benefícios</strong> ou efeitos obti<strong>do</strong>s através destas práticas podia<br />

ser muito varia<strong>do</strong>, desde os mais inócuos, como fossem as já referidas curas de feridas,<br />

até aos mais ambiciosos, como por exemplo as promessas de honras numa vida após a<br />

morte:<br />

[...] quibus aliquan<strong>do</strong> sortiariis spondent post hanc uitam se [daemones] illos<br />

conuersuros in daemones, et in aere principatum obtenturos. (Moura 1620, Sec. I, Cap. I, §<br />

10, Fol. 5r)<br />

às vezes prometiam a estes feiticeiros que, depois desta vida, eles seriam<br />

transforma<strong>do</strong>s em espíritos de bronze e que possuiriam um supremo poder.<br />

Como acima se disse, outro <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s procura<strong>do</strong>s era o poder de agir sobre<br />

animais selvagens e perigosos:<br />

Ad statuendum <strong>Ensalmos</strong> contra nociua animantia seu potius incantationes ex<br />

uirtute naturali, et non tantum ex diuina, uel diabolica, Felix ubi proxime inducit aliud<br />

Para<strong>do</strong>xum, nempe animantia callere significantiam uerborum, quibus exorcizantur,<br />

incantantur, abiguntur, uel manuefiunt, proindeque percipere vim excommunationis<br />

Ecclesiae contra ea Iatae, consequenterque, ante quam excommunicentur, ea esse citanda<br />

4


ad iudicium, dandumque illos omnino procuratorem ad causam. (Moura 1620, Sec. I, Cap.<br />

I, § 11, Fol. 5r)<br />

Para fixar os <strong>Ensalmos</strong>, ou preferivelmente encantamentos, contra os animais<br />

nocivos a partir da virtude natural e não tanto divina ou diabólica, Felix introduz outro<br />

para<strong>do</strong>xo: seguramente, os animais sabem (por experiência) a força expressiva das palavras,<br />

pelas quais se exorcizam, se encantam, se expulsam, ou se amansam. Por isso, percebem<br />

toda a força de uma excomunhão da Igreja trazida contra eles e, consequentemente, antes<br />

que sejam excomunga<strong>do</strong>s, eles devem ser cita<strong>do</strong>s para julgamento, deven<strong>do</strong> um procura<strong>do</strong>r<br />

ser nomea<strong>do</strong> para a causa na vez de to<strong>do</strong>s eles.<br />

Havia, pois, quem defendesse que as palavras tinham força performativa, pelo<br />

que era possível realizar encantamentos sem intervenção sobrenatural. Os animais<br />

conheceriam essa força e, em consequência desse conhecimento, era possível controlá-<br />

los. Ficava aberto caminho para outros ensalmos com animais. O autor enuncia-os,<br />

juntamente com algumas crenças populares a esse propósito, no primeiro capítulo da<br />

primeira secção <strong>do</strong> parágrafo 11 (supra cita<strong>do</strong>) ao 18:<br />

Aspidem dari uerum animal, quod carminibus incantetur, negat Valles. n. 12. Sed ut<br />

certum probat Auctor. n. 13.<br />

Nominibus etiam non intellectis serpentes sopiri, et corporis humani tumores sola<br />

uoce reprimi, animique stuporem sensus infligi, testatur Origenes gentes sentire. n. 13.<br />

Dracones carminibus mansuetos reddunt mercatores, eisque insidentes ferunt<br />

Etyhopiam ad uendendum, quia Ethyopes illis uescuntur, et quare. n. 14.<br />

Taurus ad templum diui Marci in eius festiuitate mansuefit. n. 14.<br />

Incantationes animalium generaliter dannant Del Rio, et Laurea. n. 15.<br />

Incantationes animalium non omnes damnandas esse de daemonis consortio, à n.<br />

15.<br />

Animantia moueri ab aliquibus sonis, et quo pacto. n. 16.<br />

[...]<br />

Animantia bruta quo pacto alia prae aliis <strong>do</strong>ciliora sint, et Mira operentur. n. 16.<br />

Animantium brutorum uoces se intelligere, aliqui groriantur. n. 17.<br />

Animantia bruta aliqua posse per sonos aliquos naturaliter incantari, absque ope<br />

daemonis, et quo pacto. n. 18. (Moura 1620, Sec. I, Cap. I, Sum. Fol. 2r)<br />

Valles 7 nega que uma áspide se comporte como um verdadeiro animal que se<br />

encante por feitiços. N.º 12. E como o autor [o] prova irrefutável. N.º 13.<br />

Toma-se Orígenes como testemunha de que os gentios compreendem que as<br />

serpentes são a<strong>do</strong>rmecidas pelos nomes e não pelos significa<strong>do</strong>s; que os abcessos <strong>do</strong>s<br />

corpos humanos são reprimi<strong>do</strong>s pela voz sozinha, e que [também por ela] o entorpecimento<br />

da sensibilidade <strong>do</strong> espírito é ataca<strong>do</strong>. N. 13.<br />

Merca<strong>do</strong>res tornam dragões mansos com feitiços, e, porque os Etíopes os comem,<br />

montan<strong>do</strong> neles, levam[-nos]para a Etiópia para [os] vender. E como o fazem. N.º 14.<br />

Um touro foi <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> para o templo <strong>do</strong> divino Marco na sua festividade. N. 15.<br />

Del Rio e Laurea condenam os encantamentos de animais em geral. N.º 15.<br />

7 Francisco Valles (1524-1592)<br />

5


Nem to<strong>do</strong>s os encantamentos de animais devem ser condena<strong>do</strong>s por associação com<br />

um espírito. N. º 15.<br />

Animais que se movem por quaisquer sons. Respetivo pacto. N. 16.<br />

[...]<br />

Por esse pacto, (outros) animais selvagens podem ser mais <strong>do</strong>ceis frente a outros e<br />

executarem coisas admiráveis. N. 16.<br />

Alguns vangloriam-se por perceber as vozes <strong>do</strong>s animais selvagens. N.º 17.<br />

É possível que alguns animais selvagens possam ser enfeitiça<strong>do</strong>s naturalmente por<br />

alguns sons, sem a ajuda de um espírito e respetivo pacto. N.º 18.<br />

Para Vale de Moura, este tipo de alegações era um erro. Uma posição que irá<br />

justificar na segunda secção da obra. Segun<strong>do</strong> ele, parafraseio, os animais não só não<br />

captam o significa<strong>do</strong> das palavras como por elas não se movem, nem se lançam contra<br />

nós, nem se afastam. Assim, só com intervenção divina ou demoníaca seria possível<br />

produzir tais resulta<strong>do</strong>s. Por conseguinte, se não era por Deus, então os ensalmistas<br />

tinham si<strong>do</strong> movi<strong>do</strong>s por um demónio. Mutatis mutandis, este tipo de refutação servia<br />

para outros erros comuns referentes aos ensalmos e aos ensalmistas, enuncia<strong>do</strong>s ainda<br />

na primeira secção <strong>do</strong> livro.<br />

Orationem naturali ui operari aliaque similia, error Alchindi 8 . n. 4.<br />

Orationem omnem studiosam sensibiliter fugare daemonem, facere aduenire<br />

Spiritum Sanctum, aliaque similia corporalia, et spiritualia conferre, error quorundam<br />

[sic]. n. 5.<br />

Orationem impetrare quidquid petitur, existente Iouis capite in medio coeli, error<br />

quorundam. n. 5.<br />

Orationem tollunt quidam Haeretici, et quare. n. 6.<br />

Orationem omnem aliam a Dominica reijciunt [sic] quidam Haeretici n. 6<br />

Asinum mortuum uerbis sacris resuscitatum, asserit quidam. n. 7.<br />

Iudicem iniquum Christum Dominum à sua orationem tantum exclusisse, asserit<br />

quidam n. 7<br />

Daemonis misterio uti ad finem necessarium, uel utilem fas esse, asserunt quidam,<br />

probantque ex iure ciuili, et sanctorum exemplo, a n. 8.<br />

Daemones aliquos esse bonos, et beneficos, asserunt aliqui. n. 10.<br />

Daemones in aereos conuertendas animas sortiariorum illis premittunt daemones. n.<br />

IO.<br />

Daemon aliquan<strong>do</strong> significat Angelum bonum. n. 10. (Moura 1620, Sec. I, Cap. I,<br />

Sum. Fol. 1v - 2r)<br />

Usar em rituais proposições com força natural e outras similares. Um engano de Al-<br />

Kindi. N.º 4.<br />

[Usar] percetivelmente proposições (todas) cuidadas [para] afugentar espírito[s],<br />

convocar o Espírito Santo, e conseguir outros [<strong>benefícios</strong>] semelhantes, corporais ou<br />

espirituais. Um engano de alguns. N.º 5.<br />

8 Al-Kindi (Séc. IX), conheci<strong>do</strong> como o Filósofo <strong>do</strong>s Árabes. O epíteto é-lhe reconheci<strong>do</strong> por George Mora (1991, p. 677), que o<br />

descreve como “The first great Islamic philosopher, scientist, and writer [of the] Theory of Magic Art: On stellar rays”.<br />

6


[Usar] proposições [para] conseguir o que quer que se pede, surgin<strong>do</strong> a cabeça de<br />

Júpiter no meio <strong>do</strong> céu. Um engano de alguns. N.º 5.<br />

Alguns hereges exaltam proposições e como. N.º 6.<br />

Alguns hereges retiram <strong>do</strong> Domingo proposições (todas) sublimes. N.º 6.<br />

Um fulano assegura que um burro morto foi ressuscita<strong>do</strong> com palavras sagradas. N.º<br />

7.<br />

Um fulano assegura que um juiz iníquo simplesmente excluiu o Cristo Nosso Senhor<br />

das suas sentenças. N.º 7.<br />

Alguns asseguram ser permiti<strong>do</strong> fazer uso <strong>do</strong> poder de um espírito para um fim<br />

necessário ou para o útil e demonstram[-no] a partir <strong>do</strong> direito civil ou <strong>do</strong> exemplo <strong>do</strong>s<br />

santos. N.º 8.<br />

Outros asseguram existirem (outros) espíritos bons e benéficos. N.º 10.<br />

Os espíritos prometem-lhes que as almas <strong>do</strong>s feiticeiros serão transformadas em<br />

espíritos de bronze. N.º 10.<br />

Quan<strong>do</strong> Espírito significa Anjo bom. N.º 10.<br />

Não nos iremos alongar mais na lista de cerca noventa de erros que o Deputa<strong>do</strong><br />

da Inquisição encontra liga<strong>do</strong>s à prática de encantamento. Citaremos apenas mais um,<br />

que abre os parágrafos dedica<strong>do</strong>s a algumas práticas judaizantes, desta forma<br />

reconhecidas como ensalmos.<br />

Hebraeorum nonnulli inter nos degentes legem Mosaicam obseruant instar Ensalmi,<br />

putantes, eius obseruantiam conferre bona temporalia, n. 20. Et an possint simul, credere<br />

notitia confusa, et fide naturali in legem Christi et Mosis n. 21. (Moura 1620, Sec. I, Cap. I,<br />

Sum. Fol. 2r - 2v)<br />

Alguns <strong>do</strong>s Hebreus que vivem entre nós seguem a lei de Moisés à imagem de um<br />

Ensalmo, pensan<strong>do</strong> que a sua observação traz boas dádivas temporais. Nº 20. E que<br />

poderiam crer na Lei de Cristo e na de Moisés, ao mesmo tempo, com Fé natural e<br />

misturan<strong>do</strong> o conhecimento [de ambas]. N.º 21.<br />

Em conclusão, eram erros e práticas que constituíam uma ameaça à salvação das<br />

almas. Eram escândalos para fé orto<strong>do</strong>xa e ofensas da Divina Majestade. São<br />

exatamente estas as razões que levaram o Papa a instituir a Inquisição em Portugal.<br />

Competia, pois, ao Tribunal <strong>do</strong> Santo Ofício inquirir e julgar estes fatos. Apurada a<br />

prática herética <strong>do</strong>s ensalmos, a via para a salvação da alma <strong>do</strong> ensalmista era a da<br />

expurgação da falha por via <strong>do</strong> castigo. Em última análise, esse castigo podia chegar a<br />

um Auto de Fé e ao “relaxamento à justiça secular”. Uma nota final, apenas de valor<br />

histórico e estatístico: um estu<strong>do</strong> de Isaías da Rosa Pereira (1978) analisou o número de<br />

processos e de sentencia<strong>do</strong>s durante o século XVI em Portugal. Em 64 anos de funções<br />

<strong>do</strong> Tribunal nesse século, estão conta<strong>do</strong>s 83 Autos de Fé e a média absoluta de<br />

condena<strong>do</strong>s (qualquer que fosse a penitência) é de 104 por ano, pelo que o Professor<br />

7


conclui que “seja qual for a ideia que se possa ter da Inquisição em Portugal [...], não<br />

são números alarmantes” (p. 262). Acrescentamos nós: talvez não sejam números<br />

alarmantes, porém, condena<strong>do</strong>s por intolerância religiosa, um só que fosse, seria sempre<br />

um a mais. 9<br />

Agradeço à Fundação para a Ciência e Tecnologia o apoio concedi<strong>do</strong> a este trabalho, no âmbito da Bolsa de Investigação com a<br />

referência SFRH / BD / 76692 / 2011.<br />

8


Bibliografia<br />

Institoris, Henricus, e Jacobus Sprenger. 2006. Malleus Maleficarum. Ed. Christopher S.<br />

Mackay. Trans. Christopher S. Mackay. Cambridge: Cambridge University Press.<br />

Mora, George, ed. 1991. Witches, Devils and Doctors and the Renaissance: Johann<br />

Weyer, De Praestigiis Daemonum. Binghamton, N. Y.: Medieval & Renaissance<br />

Texts & Studies.<br />

Moura, Manuel <strong>do</strong> Vale de. 1620. De Incantationibus Seu Ensalmis. Évora: Laurentii<br />

Crasbeeck.<br />

Paiva, José Pedro. 2011. Baluartes Da Fé e Da Disciplina: O Enlace Entre a<br />

Inquisição e Os Bispos Em Portugal (1536-1750). Coimbra: Imprensa da<br />

<strong>Universidade</strong> de Coimbra.<br />

Pereira, Isaías da Rosa. 1978. Notas Sobre a Inquisição Em Portugal No Século XVI.<br />

Lisboa: Centro de Estu<strong>do</strong>s de História Religiosa da <strong>Universidade</strong> Católica<br />

Portuguesa.<br />

———. 1984. Documentos Para a História Da Inquisição Em Portugal. <strong>Porto</strong>:<br />

Arquivo Histórico Dominicano Português.<br />

9

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