Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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(...) o homem religioso se esforça por manter-se o máximo de<br />
tempo possível num universo sagrado e, conseqüentemente, como<br />
se apresenta sua ex<strong>per</strong>iência total <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em relação à ex<strong>per</strong>iência<br />
do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive,<br />
ou <strong>des</strong>eja viver, num mundo <strong>des</strong>sacralizado. É preciso dizer, <strong>des</strong>de<br />
já, que o mundo profano na sua totali<strong>da</strong>de, o Cosmos totalmente<br />
<strong>des</strong>sacralizado, é uma <strong>des</strong>coberta recente na história do espírito<br />
humano (ELIADE, Op. cit., p. 14).<br />
Num universo regido pelos misteriosos <strong>des</strong>ígnios divinos, era<br />
importante saber ler os sinais em todo lugar. Uma boa ilustração <strong>des</strong>ta<br />
sensibili<strong>da</strong>de religiosa era a atitude do medievo diante dos sinos, dos<br />
campanários:<br />
(...) ouviam-se os sons dos sinos, qual espíritos a<strong>nunc</strong>iadores,<br />
que com ba<strong>da</strong>lar claro e <strong>des</strong>tacado, a<strong>nunc</strong>iavam o luto, o júbilo,<br />
a agitação, o repouso, o recolhimento, a tragédia, a convocação,<br />
a prece, a presença do inimigo. O povo adivinhava o toque e<br />
decifrava o seu significado; mesmo ouvindo diversos sinos, era<br />
sensível aos sinais; jamais um sino agredia os ouvidos (MAZZUCO,<br />
Op. cit., p. 21).<br />
Pode-se dizer que São Francisco e seu movimento religioso foram<br />
tanto influenciados por essas sensibili<strong>da</strong><strong>des</strong> quanto influenciaram<br />
as <strong>per</strong>cepções sociais, políticas, culturais e espirituais num ocidente<br />
medieval, especialmente no século XIII, que ain<strong>da</strong> hesitava, segundo<br />
Jacques Le Goff, entre os primeiros clarões de renovação e os fardos<br />
de um mundo ain<strong>da</strong> feu<strong>da</strong>l em várias de suas dimensões.<br />
Desta forma, é proposta <strong>des</strong>te capítulo fazer uma breve exposição<br />
dos aspectos socioculturais e religiosos mais relevantes do século XIII<br />
a partir <strong>da</strong>s implicações trazi<strong>da</strong>s pelos novos centros urbanos e suas<br />
novas formas de sociabili<strong>da</strong><strong>des</strong>, bem como pelas novas buscas de vi<strong>da</strong><br />
religiosa, já inicia<strong>da</strong>s no século XII, e suas aproximações e atritos com<br />
a Igreja.<br />
Finalmente, a partir <strong>des</strong>ses aspectos, é preciso <strong>per</strong>guntar que lugar<br />
a espirituali<strong>da</strong>de franciscana ocupa nesse cenário com suas fronteiras<br />
ain<strong>da</strong> tão tênues.<br />
1.1 A ci<strong>da</strong>de do século XIII: entre as heranças<br />
feu<strong>da</strong>is e os primeiros sinais de renovação<br />
Mesmo que os primeiros biógrafos de São Francisco de Assis<br />
preferissem representá-lo muitas vezes em solidão, narrando<br />
seus momentos de oração e contemplação em meio às florestas e<br />
bosques <strong>da</strong> região <strong>da</strong> Úmbria, não se pode esquecer que o filho do<br />
rico comerciante de tecidos, Pietro di Bernardone, nasceu no fim do<br />
século XII, num ambiente que já cheirava os novos ares urbanos. A<br />
infância e a adolescência de São Francisco se <strong>des</strong>enrolou nos prazeres<br />
e nas tentações <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Seu processo de conversão e a fun<strong>da</strong>ção<br />
<strong>da</strong> primeira fraterni<strong>da</strong>de de irmãos se deram no início do século XIII,<br />
considerados, por Le Goff, o “apogeu do Ocidente medieval” (LE<br />
GOFF, Op. cit., p. 143).<br />
To<strong>da</strong>via, a impressão deixa<strong>da</strong> pelas primeiras legen<strong>da</strong>s4 sobre os<br />
ambientes em que ocorreram as pregações e os milagres do santo de<br />
Assis (estra<strong>da</strong>s, bosques, ci<strong>da</strong><strong>des</strong>) não é um mero recurso literário, já<br />
que o “espaço de Francisco e dos primeiros franciscanos é em primeiro<br />
lugar a respiração, a alternância ci<strong>da</strong>de/solidão” (LE GOFF, 2001, 188).<br />
Num contexto geográfico onde se estava acostumado a ver uma<br />
prática religiosa e pastoral forma<strong>da</strong> há séculos nos mol<strong>des</strong> monásticos<br />
situados no campo, uma <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong><strong>des</strong>5 <strong>da</strong>s novas ordens Mendicantes6 estava justamente na pregação urbana que é “frequentemente a praça,<br />
recriando um espaço cívico ao ar livre, sucedendo a <strong>des</strong>apareci<strong>da</strong> ágora<br />
e o fórum antigo” (LE GOFF, Ibid., p. 189). Tal especifici<strong>da</strong>de de se<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 6<br />
| História | 2011