Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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sentença ofereça algumas pistas sobre como entender o estranhamento<br />
do homem do século XX diante <strong>da</strong>queles que o precederam há<br />
oitocentos anos. Mas, de que é feito esse mundo medieval, ora tão<br />
próximo ora tão distante de nós?<br />
Antes de se adentrar nas questões socioculturais e religiosas<br />
que caracterizam o século XIII, faz-se necessário conhecer, ao menos<br />
sumariamente, o que <strong>per</strong>faz o espírito do homem medieval e como este<br />
“lia” seu próprio tempo.<br />
Por mais que seja claro que “o homem ocidental moderno<br />
ex<strong>per</strong>imenta um certo mal estar diante de inúmeras formas de<br />
manifestações do sagrado” (ELIADE, 1992, p.13), é preciso considerar<br />
que o ambiente em que viveu o santo de Assis é marcado pela tensão<br />
constante entre o sagrado e o profano, entre a vi<strong>da</strong> e a morte, entre<br />
céu e o inferno, entre a paz e a guerra, entre a festa e as pestes.<br />
Por isso, o homem medieval é hoje definido pela radicali<strong>da</strong>de de suas<br />
decisões mais cotidianas. Tudo era motivo de participação e, porque<br />
não dizer, de celebração:<br />
“o nascimento, matrimônio, morte, se tornavam rito para recor<strong>da</strong>r<br />
o esplendor do mistério divino e a dura reali<strong>da</strong>de misteriosa <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong>. Uma viagem, uma visita, um trabalho, uma colheita... tudo<br />
era acompanhado de bênçãos, fórmulas, usos e costumes”<br />
(MAZZUCO, Id.).<br />
Mesmo que às vezes pareça um tanto romântico, a I<strong>da</strong>de Média se<br />
revelou também em suas sombras e seus contrastes, numa paisagem<br />
bela e cruel ao mesmo tempo. Basta lembrar, por exemplo, de um lado,<br />
as íntimas relações entre os novos centros urbanos e a nova beleza no<br />
século XIII, em que<br />
(...) a ci<strong>da</strong>de é um dos principais domínios onde se forjou a idéia<br />
de beleza, uma beleza moderna, diferente <strong>da</strong> beleza antiga que<br />
<strong>des</strong>aparecera mais ou menos no declínio <strong>da</strong> estética. Umberto Eco<br />
mostrou bem essa emergência de uma beleza medieval encarna<strong>da</strong><br />
nos monumentos e teoriza<strong>da</strong> pela escolástica urbana (LE GOFF,<br />
2007, p. 146),<br />
e, de outro, a triste situação dos leprosos que iam pelas estra<strong>da</strong>s a<br />
soar “suas sinetas an<strong>da</strong>ndo sozinhos ou em grupos como múmias trágicas,<br />
chamando a atenção para o seu mal” (MAZZUCO, Op. cit., p. 20).<br />
Se tudo era vivido com intensi<strong>da</strong>de, não era tão incomum encontrar<br />
na I<strong>da</strong>de Média, nas ci<strong>da</strong><strong>des</strong> ou nos campos, homens e mulheres,<br />
pregadores e mendigos, participando de procissões que duravam<br />
dias ou semanas inteiras e a saírem pelas estra<strong>da</strong>s penitentes,<br />
“<strong>des</strong>calço, estômago vazio, carregando tochas, relíquias, estan<strong>da</strong>rtes.<br />
O importante era tomar parte e viver o espetáculo com reverência e<br />
devoção” (MAZZUCO, Ibid., p. 21).<br />
É impossível falar dos elementos essenciais que caracterizam o<br />
medievo sem considerar sua profun<strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de religiosa. Essa<br />
sensibili<strong>da</strong>de <strong>per</strong>passou todo o ocidente medieval cristão, mesmo que<br />
somente a partir do século XII, segundo André Vauchez, se possa falar<br />
de uma espirituali<strong>da</strong>de mais propriamente leiga. Para o historiador<br />
francês,<br />
(...) ao longo do século XII, conscientes de que o seu estado não<br />
os excluía a priori <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa, numerosos leigos procuraram<br />
formas de vi<strong>da</strong> que lhes <strong>per</strong>mitissem conciliar as exigências de uma<br />
existência consagra<strong>da</strong> a Deus com as que lhes eram impostas pela<br />
sua condição de cristãos que viviam no mundo (VAUCHEZ, 1995,<br />
p. 133).<br />
O sagrado, assim, impregnava to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong><strong>des</strong> cotidianas do<br />
homem medieval, <strong>des</strong>de as mais simples até as mais solenes. Para<br />
Mircea Eliade,<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 5<br />
| História | 2011