Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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pediu que Frei Bernardo fosse pregar na ci<strong>da</strong>de de Bolonha e que lá<br />
preparasse um lugar a fim de que os fra<strong>des</strong> pu<strong>des</strong>sem realizar seu<br />
apostolado. Chegando à Bolonha, foi direto à praça central e ali<br />
se sentou sem dizer uma palavra. Como estivesse vestido com um<br />
hábito41 sujo e remen<strong>da</strong>do, julgando que se tratasse de um mendigo<br />
ou um louco, os habitantes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de começaram a caçoar dele e a<br />
provocá-lo. Crianças, jovens e adultos lhe atiravam pedras e lama,<br />
mas o frade <strong>per</strong>manecia imóvel e com semblante tranquilo. Durante<br />
três ou quatro dias a cena se repetiu, sem qualquer reação de Frei<br />
Bernardo. Um juiz, que havia observado tudo pela janela de sua casa,<br />
ficou bastante intrigado com tudo aquilo e com constância do homem<br />
ali sentado na praça e quis saber o que estava acontecendo. Ao<br />
<strong>per</strong>guntar a Frei Bernardo quem ele era e o que queria naquela ci<strong>da</strong>de,<br />
o frade, ao invés de prontamente dizer seu nome, enfiou a mão numa<br />
abertura do hábito religioso, <strong>per</strong>to do coração, e tirou a Regra de São<br />
Francisco42 , para o espanto do juiz e do povo que o maltratara aqueles<br />
dias. A história termina dizendo que todos ficaram muito arrependidos<br />
e passaram a tratar Frei Bernardo com to<strong>da</strong>s as honras enquanto ele<br />
ali <strong>per</strong>maneceu.<br />
Mas o que seria importante “colher” <strong>des</strong>te relato piedoso e, talvez<br />
para alguns, um tanto infantil? Aqui é digno de nota o gesto do frade<br />
de não dizer seu nome e mostrar a Regra franciscana. Era um jeito sui<br />
generis de dizer: “quem eu sou não importa, importa sim, o modo de<br />
vi<strong>da</strong> que sigo e protejo”. Em outras palavras, apoiado nas contribuições<br />
de Michel de Certeau sobre a natureza e propósito <strong>da</strong> literatura<br />
hagiográfica, e depois de comparar várias biografias, pode-se dizer<br />
que, em um primeiro momento ou em um primeiro plano, os primeiros<br />
hagiógrafos de São Francisco também não <strong>des</strong>ejavam promover a<br />
si mesmos, mas apontar, mesmo que implicitamente, uma reali<strong>da</strong>de<br />
(divina ou espiritual) que julgavam ser maior e mais profun<strong>da</strong> do que<br />
as crises “mun<strong>da</strong>nas” vivi<strong>da</strong>s durante aquelas déca<strong>da</strong>s pela Ordem<br />
franciscana. Se por um lado, as biografias não <strong>des</strong>ejavam reconstruir<br />
um Francisco de “carne e osso”, mas apontar uma manifestação<br />
tremendum et fascinans na vi<strong>da</strong> do santo, de outro, o que se vê em<br />
to<strong>da</strong>s as narrativas, de Tomás de Celano a Boaventura, é uma tentativa<br />
de salvaguar<strong>da</strong>r a santi<strong>da</strong>de de seu fun<strong>da</strong>dor e mestre. Nenhuma delas<br />
questiona as virtu<strong>des</strong> de seu biografado.<br />
Se é ver<strong>da</strong>de o provérbio popular de que “somos aquilo que<br />
protegemos”, pode-se dizer que todos os primeiros hagiógrafos fizeram<br />
de suas obras ver<strong>da</strong>deiros masouléus, uma espécie de “exercício de<br />
leal<strong>da</strong>de” a São Francisco, isto é, um esforço de manter sua <strong>memória</strong><br />
viva pelos séculos.<br />
Entretanto, em um segundo momento ou plano, também esta gesta<br />
de Frei Bernardo aparentemente ingênua e “aliena<strong>da</strong>”, revela, em suas<br />
entrelinhas, tendências e, mais uma vez, crises dentro <strong>da</strong> Ordem,<br />
que, como se vê, se estenderiam ain<strong>da</strong> pelo século XIV: a questão <strong>da</strong><br />
pobreza e dos estudos que, nesta narrativa, é simboliza<strong>da</strong> pelo fato de<br />
Frei Bernardo ter que se humilhar dentro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que, no passado,<br />
havia-lhe <strong>da</strong>do tantas glórias e riquezas através estudos jurídicos.<br />
Transferindo as observações sobre os Actus para o caso <strong>da</strong>s<br />
biografias mais antigas, aqui estu<strong>da</strong>do, guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as devi<strong>da</strong>s<br />
proporções, pode-se também concluir que não há obra hagiográfica<br />
isenta de ideologia, seja ela teológica ou principalmente institucional.<br />
To<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s de santos medievais carregam consigo as marcas do<br />
tempo, do lugar e <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>des</strong> que as encomen<strong>da</strong>m. Entretanto,<br />
mesmo assim, é possível verificar uma sutil variação em relação ao<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 47<br />
| História | 2011