Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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um santo totalmente <strong>des</strong>encarnado de sua concretude histórica a<br />
habitar nas alturas celestiais, pode levar a pensar, de antemão, que o<br />
projeto boaventuriano fora somente uma reestruturação ideológica e<br />
espiritual <strong>da</strong> Ordem, pouco se importando com as questões práticas<br />
provoca<strong>da</strong>s pelas necessi<strong>da</strong><strong>des</strong> dos novos tempos. Para Giovanni<br />
Merlo, é um erro pensar assim. Para o historiador,<br />
(...) a impossibili<strong>da</strong>de de imitar e de alcançar São Francisco não<br />
dispensavam, antes deviam estimular os fra<strong>des</strong> a tomar caminhos<br />
possíveis de serem “<strong>per</strong>corridos” – os estudos universitários e o<br />
apostolado no mundo – que lhes consentissem entrever cumes<br />
espirituais alcançados por seu iniciador (MERLO, Op. cit., p. 120).<br />
Se o São Francisco “pintado” por Frei Boaventura parecia um<br />
alienado, distante dos problemas reais <strong>da</strong> Ordem, não se pode dizer o<br />
mesmo do autor <strong>da</strong> Legen<strong>da</strong> Maior. Mesmo que suas primeiras e duras<br />
atitu<strong>des</strong> como Ministro geral o fizessem suspeito de <strong>des</strong>conhecer a<br />
totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ordem franciscana, exagerando, talvez, seus pontos<br />
negativos, Frei Boaventura estava atento aos <strong>des</strong>afios dos novos<br />
tempo. Se por um lado, sabia que a única saí<strong>da</strong> para as crises<br />
internas e externas era o retorno às raízes do movimento franciscano,<br />
esta simboliza<strong>da</strong> pela fideli<strong>da</strong>de à Regra de São Francisco, em sua<br />
Legen<strong>da</strong>, por outro, sabia também que era urgente uma a<strong>da</strong>ptação<br />
aos novos trabalhos pastorais abraçados pelos fra<strong>des</strong>. Para Merlo, a<br />
estratégia boaventuriana para resolver o impasse entre a “fideli<strong>da</strong>de” e<br />
a “ousadia” implicava “na sábia <strong>construção</strong> de teorias que justifiquem<br />
e legitimem, em relação às origens, as metamorfoses ocorri<strong>da</strong>s,<br />
<strong>des</strong>cobrindo nelas sinais seguros do plano divino sobre São Francisco<br />
e os Menores. (MERLO, Ibid, p. 120).<br />
Numa carta escrita por Frei Boaventura nessa época, intitula<strong>da</strong><br />
Epistola de tribus quaestionibus ad magistrarum innominatum, o<br />
Ministro geral tentou fazer uma ponte entre o passado e o presente<br />
<strong>da</strong> Ordem dos Menores:<br />
(...) Não te impressiones que, no início, os fra<strong>des</strong> foram simples e<br />
iletrados. Isso até deve confirmar em ti a fé na Ordem. Confesso<br />
diante de Deus que foi sobretudo isso que me fez amar a vi<strong>da</strong><br />
do bem-aventurado Francisco; é que ela é semelhante ao início<br />
e à <strong>per</strong>feição <strong>da</strong> Igreja, que começou primeiramente com simples<br />
pescadores e depois progrediu até doutores famosíssimos e<br />
valorosíssimos; a mesma coisa poderá vê-la na religião do bemaventurado<br />
Francisco, para que Deus mostre que ela não foi<br />
fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pela prudência dos homens, mas de Cristo; e já que as<br />
obras de Cristo jamais acabam, mas progridem, vê-se que esta obra<br />
é divina pelo fato de que também homens sábios não se furtaram a<br />
a<strong>da</strong>ptar-se à companhia de homens simples (SãO BOAVENTURA,<br />
Apud., MERLO, Id.).<br />
É curioso notar neste fragmento a relação que Frei Boaventura<br />
fez entre a Igreja primitiva e o movimento primitivo dos fra<strong>des</strong>, e<br />
de como ambas “evoluíram” com o passar do tempo. O tema de<br />
uma possível “fideli<strong>da</strong>de criativa” ou de uma “fideli<strong>da</strong>de dinâmica”<br />
pareceu ter sido, então, essencial no projeto de reformulação <strong>da</strong><br />
identi<strong>da</strong>de franciscana sob a ótica boaventuriana. Mas, por que<br />
Frei Boaventura sentiu a necessi<strong>da</strong>de de jamais se afastar <strong>da</strong><br />
radicali<strong>da</strong>de de Regra de São Francisco, a ponto de, para protegêla,<br />
fazer uma manobra de “<strong>des</strong>mistificação” <strong>da</strong>s origens, colocando<br />
e a<strong>da</strong>ptando a <strong>memória</strong> do passado à positivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> dinâmica<br />
histórica vivi<strong>da</strong> então pela Ordem? A reinterpretação <strong>da</strong> Regra<br />
conforme as novas necessi<strong>da</strong><strong>des</strong> dos fra<strong>des</strong> era um ato de <strong>memória</strong><br />
ou de esquecimento?<br />
Para Paul Ricoeur, a ver<strong>da</strong>deira questão entre o passado e o<br />
presente, não está tanto na relação entre <strong>memória</strong> e esquecimento,<br />
mas sim, na relação entre esquecimento e <strong>per</strong>dão. Para o filósofo,<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 45<br />
| História | 2011