Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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favor de uma nova Legen<strong>da</strong>, isso não bastava. Frei Boaventura sentiu-<br />
se obrigado a reforçar a credibili<strong>da</strong>de de sua narrativa sobre a vi<strong>da</strong> de<br />
São Francisco apoiam-se na testemunha dos fra<strong>des</strong> que viveram com o<br />
santo e, <strong>des</strong>te modo, lê-se novamente no prólogo <strong>da</strong> Legen<strong>da</strong> Maior:<br />
(...) Portanto, para que a ver<strong>da</strong>de de sua vi<strong>da</strong>, que devia ser<br />
transmiti<strong>da</strong> aos pósteros, constasse para mim com mais certeza<br />
e clareza, fui ao lugar onde o homem santo nasceu, conviveu e<br />
morreu, e mantive uma entrevista cui<strong>da</strong>dosa com pessoas que<br />
foram suas familiares e ain<strong>da</strong> sobrevivem 38 . E principalmente<br />
com alguns que tiveram consciência de sua santi<strong>da</strong>de e foram<br />
seus principais seguidores, cujo testemunho deve ser tomado<br />
como indubitável, por causa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de reconheci<strong>da</strong> e <strong>da</strong> virtude<br />
comprova<strong>da</strong> (LM, Prólogo, 4).<br />
O mesmo apelo às testemunhas confiáveis podia ser encontrado<br />
no decreto de 1266 quando, Frei Boaventura, afirmava que a biografia<br />
por ele composta tinha sido feita a partir <strong>da</strong>quilo que “ele mesmo ouviu<br />
<strong>da</strong> boca <strong>da</strong>queles que estiveram quase sempre com o bem-aventurado<br />
Francisco” (Deffinitiones).<br />
Entretanto, há um problema aqui. Por que um teólogo (e não<br />
um historiador ou um cronista medieval) estaria tão preocupado<br />
em fun<strong>da</strong>mentar suas decisões tanto jurídicas (o decreto) quanto<br />
hagiográficas (a Legen<strong>da</strong> Maior) em testemunhas que conviveram<br />
com São Francisco, munindo-se assim “com certeza e com provas”<br />
(“cuncta certitudinaliter sciverint et probata”), se ele mesmo se diz<br />
<strong>des</strong>preocupado em narrar uma vi<strong>da</strong> cronológica do santo?<br />
Não é intenção <strong>des</strong>te trabalho discutir detalha<strong>da</strong>mente a natureza<br />
e o lugar <strong>da</strong> testemunha no processo epistemológico <strong>da</strong> <strong>construção</strong><br />
<strong>da</strong> história, mas as reflexões (e provocações) de Paul Ricoeur sobre<br />
o conceito de “testemunha” podem lançar algumas luzes para este<br />
estudo. Para o filósofo,<br />
(...) é na prática cotidiana do testemunho que é mais fácil discernir<br />
(...) o uso histórico do testemunho. Esse emprego coloca-nos de<br />
imediato diante <strong>da</strong> questão crucial: até que ponto os testemunho<br />
é confiável? Essa questão põe diretamente na balança a confiança<br />
e a suspeita. (...) De fato, a suspeita se <strong>des</strong>dobra ao longo de<br />
uma cadeia de o<strong>per</strong>ações que têm início no nível <strong>da</strong> <strong>per</strong>cepção de<br />
uma cena vivi<strong>da</strong>, continua no <strong>da</strong> retenção <strong>da</strong> lembrança, para se<br />
concentrar na fase declarativa e narrativa <strong>da</strong> reconstituição dos<br />
traços do acontecimento (RICOEUR, Op. cit., p. 171).<br />
Em outras palavras, o que torna alguém uma testemunha é, num<br />
primeiro momento, a <strong>per</strong>cepção que ela tem de um evento ocorrido<br />
e por ela testemunhado. No caso de Frei Boaventura, que recorreu<br />
ao testemunho dos primeiros fra<strong>des</strong> que viveram com São Francisco,<br />
como compreender tal “<strong>per</strong>cepção” <strong>des</strong>sas testemunhas diante do fato<br />
de que a maioria dos episódios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do santo narrados pela Legen<strong>da</strong><br />
Maior foram cópias, mais ou menos fiéis, dos relatos de Tomás de<br />
Celano, contidos em sua Vita I?<br />
Continuando o raciocínio, quando Frei Boaventura foi até Assis à<br />
procura de testemunhas que possam narrar suas <strong>memória</strong>s sobre São<br />
Francisco, não procurou qualquer frade, mas sim aqueles mais antigos,<br />
que não só haviam convivido com o santo, mas, principalmente, para o<br />
Ministro geral, e que ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong>vam a “pureza <strong>da</strong> vontade original”<br />
do fun<strong>da</strong>dor.<br />
Aqui, podemos dizer que são os méritos pessoais <strong>da</strong> testemunha<br />
que “que fazem com que se acostume a acreditar nela (...); neste caso,<br />
o credenciamento equivale à autenticação <strong>da</strong> testemunha a título<br />
pessoal” (RICOEUR, Ibid., p. 173).<br />
Complementando suas reflexões, Ricoeur chama a atenção para o<br />
fato de que a credibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s testemunhas pode se tornar um fator<br />
essencial na <strong>construção</strong> de uma instituição. Para ele,<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 40<br />
| História | 2011