Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Isso significa que, se a <strong>memória</strong> é entendi<strong>da</strong>, grosso modo, como<br />
uma “luta contra o esquecimento”, as diversas “<strong>memória</strong>s” (biografias)<br />
sobre São Francisco, produzi<strong>da</strong>s <strong>des</strong>de sua canonização até o ano de<br />
1260, significavam que os fra<strong>des</strong> sempre buscaram manter viva, de<br />
alguma forma, a <strong>memória</strong> de seu fun<strong>da</strong>dor. Sendo assim, a simples<br />
aprovação de um decreto, mesmo que viesse do governo geral <strong>da</strong><br />
Ordem, que ordenasse a <strong>des</strong>truição, isto é, o esquecimento <strong>des</strong>sas<br />
antigas biografias, corria sérios riscos de não oferecer o efeito<br />
<strong>des</strong>ejado. A única solução seria apresentar uma nova <strong>memória</strong> que,<br />
bem justifica<strong>da</strong>, ocupasse o lugar <strong>da</strong>s antigas. Surgiu, assim, a<br />
Legen<strong>da</strong> Maior Sancti Francisci, cujo lugar na história <strong>da</strong> hagiografia<br />
franciscana será discuti<strong>da</strong> mais adiante.<br />
Como já foi mencionado, o Capítulo geral de Narbonna, ocorrido em<br />
1260, foi um marco importante na história <strong>da</strong> Ordem franciscana. Lá se<br />
iniciou de forma mais incisiva e maciça o programa de reestruturação<br />
<strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de franciscana <strong>des</strong>eja<strong>da</strong> por Frei Boaventura de Bagnoregio.<br />
A centralização revoga<strong>da</strong> pelo Ministro geral não se resumiu apenas<br />
à criação de novas Constiuições, mas estendeu-se também a uma<br />
centralização <strong>da</strong> própria <strong>memória</strong> hagiográfica de São Francisco. Foi<br />
durante esse Capítulo geral que Frei Boaventura<br />
(....) fez que lhe entregassem a tarefa de redigir uma nova e definitiva<br />
legen<strong>da</strong> de São Francisco, a fim de pôr termo à proliferação de<br />
escritos hagiográficos que, celebrando o santo, tinham também a<br />
função polêmica de sustentar as posições <strong>da</strong>s diversas e conflitantes<br />
correntes internas <strong>da</strong> Ordem (MERLO, Op. cit., p. 119).<br />
E foi assim que, pela primeira vez, a vi<strong>da</strong> de São Francisco de Assis,<br />
foi conta<strong>da</strong> “oficialmente” por um su<strong>per</strong>ior maior <strong>da</strong> Ordo Minorum<br />
que também era um hábil teólogo, como recor<strong>da</strong> o historiador italiano,<br />
Marco Bartoli:<br />
(...) depois dos Capítulos gerais de 1257 e 1260, aconteceu mais<br />
um momento de mu<strong>da</strong>nça na história hagiográfica <strong>da</strong> Ordem.<br />
O Capítulo aprova as constituições gerais elabora<strong>da</strong>s por São<br />
Boaventura e o mesmo Capítulo pede ao ministro geral que escreva<br />
uma nova “legen<strong>da</strong>”. Por quê? Já não eram suficientes as que já<br />
existiam? (...) Necessitava-se de um texto novo e Boaventura era a<br />
pessoa mais indica<strong>da</strong> para essa tarefa: não só era um hagiógrafo,<br />
mas também um teólogo e, mais do que isso, era um místico; isso<br />
significa que ele tinha sua própria ex<strong>per</strong>iência pessoal de santi<strong>da</strong>de<br />
e, por isso, tinha também uma leitura pessoal de São Francisco<br />
(BARTOLI, Apud. MOREIRA, Op. cit., p. 72).<br />
A Legen<strong>da</strong> Maior ficou pronta três anos depois, 1263, mas só foi<br />
aprova<strong>da</strong> pelo Capítulo Geral de Paris, em 1266. Ao que parece, a nova<br />
Legen<strong>da</strong> foi bem recebi<strong>da</strong> pela maioria dos fra<strong>des</strong>. Entretanto, Frei<br />
Boaventura, ain<strong>da</strong> assim, não parecia satisfeito. E foi nesse mesmo<br />
Capítulo geral de 1266 que, ao mesmo tempo em que a Legen<strong>da</strong> Maior<br />
foi oficializa<strong>da</strong> como única biografia fiel de São Francisco, tomou-se<br />
uma atitude inusita<strong>da</strong> e drástica. Um decreto capitular ordenava que<br />
to<strong>da</strong>s as outras biografias sobre o santo de Assis fossem <strong>des</strong>truí<strong>da</strong>s!<br />
O artigo oitavo <strong>da</strong>s moções aprova<strong>da</strong>s pelos fra<strong>des</strong> capitulares era<br />
muito claro:<br />
(...) Item precipit generale capitulum <strong>per</strong> obedientiam, quod omnes<br />
legende de beato Francisco olim facte deleantur, et ubi extra<br />
ordinem inveniri poterunt, ipsas fratres studeant amovere, cum illa<br />
legen<strong>da</strong>, que facta est <strong>per</strong> generalem ministrum, fuerit compilata<br />
prout ipse habuit ab ore eorum, qui cum b. Francisco quase sem<strong>per</strong><br />
fuerunt et cuncta certitudinaliter sciverint et probata ibi sint posita<br />
diligenter. 35<br />
[Além disso, o capítulo geral man<strong>da</strong> sob obediência que sejam<br />
<strong>des</strong>truí<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as legen<strong>da</strong>s do bem-aventurado Francisco<br />
compostas anteriormente e que, onde possam ser encontra<strong>da</strong>s<br />
fora <strong>da</strong> Ordem, os fra<strong>des</strong> cuidem de retirá-las, pois a legen<strong>da</strong><br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 38<br />
| História | 2011