Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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ao brilho de suas <strong>per</strong>sonali<strong>da</strong><strong>des</strong> e à novi<strong>da</strong>de de alguns aspectos de<br />
sua doutrina” (LE GOFF, 2006, p. 132).<br />
Por fim, ao que parece, nestes combates entre mestres seculares<br />
e regulares, era a questão <strong>da</strong> pobreza que mais uma vez recebia foco.<br />
Le Goff chama a atenção para esse fator que separava diametralmente<br />
os dois grupos. Para ele,<br />
(...) o problema <strong>da</strong> pobreza é bem um problema central que separa<br />
uns dos outros. A pobreza procede <strong>da</strong>quele ascetismo que é a<br />
recusa do mundo, pessimismo a respeito do homem e <strong>da</strong> natureza.<br />
Nesse sentido, já se choca com o otimismo humanista e naturalista<br />
<strong>da</strong> maioria dos universitários. Mas, principalmente, a pobreza<br />
entre os dominicanos e os franciscanos tem como conseqüência a<br />
mendicância. Nesse ponto, a oposição dos intelectuais é absoluta.<br />
Para eles, só se pode viver do seu trabalho (LE GOFF, Ibid., p.<br />
133).<br />
Contra essas acusações externas, o Ministro geral <strong>da</strong> Ordem<br />
franciscana, teve que se posicionar com veemência. Como resposta<br />
àqueles que viam na Ordo Minorum uma espécie de “Ordo Antichristi”<br />
(Ordem do Anticristo), Frei Boaventura escreveu nos anos de 1260<br />
sua Apologia pau<strong>per</strong>um contra calumniatorem (“Apologia dos pobres<br />
contra os caluniadores”), deixando claro a todos, mestres seculares,<br />
e também aos próprios fra<strong>des</strong>, qual era o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> pobreza<br />
evangélica e o lugar dos franciscanos na Igreja; nesta obra ele procura<br />
mostrar que<br />
(...) a pobreza franciscana, qual re<strong>nunc</strong>ia voluntária a posse de<br />
bens para limitar-se ao seu simples uso, inspira-se nos exemplos de<br />
Cristo, modelo <strong>da</strong> <strong>per</strong>feição cristã e pobre: a pobreza dos fra<strong>des</strong>,<br />
concluía, é um excelente meio evangélico para seguir a Cristo<br />
(POMPEI, Op. cit., p. 336) [e que a] “utili<strong>da</strong>de” é um conceito<br />
eclesiológico central no pensamento que justifica os Fra<strong>des</strong><br />
menores durante os decênios centrais do século XIII (...). A novitas<br />
franciscana era exalta<strong>da</strong> ao ser eleva<strong>da</strong> aos quadros conceptuais<br />
e canônicos do poder <strong>da</strong> Igreja romana (...) (MERLO, Op. cit., p.<br />
127).<br />
Diante <strong>des</strong>sas crises internas e externas que ameaçavam a<br />
existência <strong>da</strong> Ordem de São Francisco, Frei Boaventura não demorou<br />
a se convencer que em seu projeto de reformulação ou mesmo de<br />
renovação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de franciscana, não foi suficiente a criação de<br />
Constituições rígi<strong>da</strong>s e precisas, como não foi suficiente oferecer uma<br />
obra apologética em defesa <strong>da</strong> pobreza franciscana. Foi preciso mais<br />
que isso. Foi necessário apelar para um mecanismo mais sutil e mais<br />
eficaz: a reformulação <strong>da</strong> <strong>memória</strong> do santo fun<strong>da</strong>dor. Para isso, teve<br />
que chamar para si a responsabili<strong>da</strong>de de escrever uma nova biografia<br />
de São Francisco e, ao mesmo tempo, fazer com que os fra<strong>des</strong><br />
“esquecessem” as biografias anteriores. Em outras palavras, alguns<br />
“Franciscos” teriam que morrer.<br />
3.2 “Propter confusionem vitan<strong>da</strong>m”:<br />
o decreto de 1266<br />
Se, por um lado, Frei Boaventura havia se convencido de que alguns<br />
“Franciscos” deveriam morrer, isto é, tinham que ser “esquecidos”,<br />
por outro, tinha consciência de que esta não seria uma tarefa fácil.<br />
Isso acontece porque as noções de <strong>memória</strong> e de esquecimento estão<br />
intimamente interliga<strong>da</strong>s. Como bem observou Ricoeur,<br />
(...) de início e maciçamente, é como um <strong>da</strong>no à confiabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
<strong>memória</strong> que o esquecimento é sentido. Dano, fraqueza, lacuna.<br />
Sob este aspecto, a própria <strong>memória</strong> se define, pelo menos em<br />
uma primeira instância, como luta contra o esquecimento. (...) Esse<br />
nosso famoso dever de <strong>memória</strong> e<strong>nunc</strong>ia-se como uma exortação a<br />
não esquecer (RICOEUR, Op.cit., p. 424).<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 37<br />
| História | 2011