Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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e ministros gerais que estiveram à frente <strong>da</strong> Ordo Minorum, girava<br />
em torno do problema do que deveria ser recor<strong>da</strong>do <strong>per</strong> saecula<br />
saeculorum e o que deveria cair no esquecimento em relação à vi<strong>da</strong> e<br />
mensagem do santo de Assis. Afinal, por que a <strong>memória</strong> é assim tão<br />
importante?<br />
Para Jacques Le Goff, a <strong>memória</strong> sempre foi para as civilizações,<br />
fossem elas conhecedoras ou não <strong>da</strong> escrita, um elemento fun<strong>da</strong>mental<br />
para a formação e conservação de suas identi<strong>da</strong><strong>des</strong> individuais e<br />
coletivas. Para o historiador francês,<br />
(...) nas socie<strong>da</strong><strong>des</strong> sem escrita, a <strong>memória</strong> coletiva parece<br />
ordenar-se em torno de três gran<strong>des</strong> interesses: a i<strong>da</strong>de coletiva<br />
do grupo, que se fun<strong>da</strong> em certos mitos, mais precisamente nos<br />
mitos de origem; o prestígio <strong>da</strong>s famílias dominantes, que se<br />
exprime pelas genealogias; e o saber técnico, que se transmite<br />
por fórmulas e práticas fortemente liga<strong>da</strong>s à magia religiosa (LE<br />
GOFF, 2003, p. 427).<br />
Entretanto, o autor observa que “o aparecimento <strong>da</strong> escrita está<br />
ligado a uma profun<strong>da</strong> transformação <strong>da</strong> <strong>memória</strong> coletiva” (LE GOFF,<br />
Id.). Aqui, a <strong>memória</strong> oral caracteriza<strong>da</strong> por sua dinamici<strong>da</strong>de, deu lugar<br />
a uma <strong>memória</strong> cristaliza<strong>da</strong> em suportes bem concretos, nas quais,<br />
(...) a escrita <strong>per</strong>mite à <strong>memória</strong> coletiva um duplo progresso,<br />
o <strong>des</strong>envolvimento de duas formas de <strong>memória</strong>. A primeira<br />
é a comemoração, a celebração através de um monumento<br />
comemorativo de um acontecimento memorável. A <strong>memória</strong><br />
assume, então, a forma de inscrição e suscitou na época moderna<br />
uma ciência auxiliar <strong>da</strong> história, a epigrafia. (...) A outra forma<br />
de <strong>memória</strong> liga<strong>da</strong> à escrita é o documento escrito num suporte<br />
especialmente <strong>des</strong>tinado à escrita (depois de tentativas sobre<br />
osso, estofo, pele, como na Rússia antiga; folhas de palmeira como<br />
na Índia; carapaça de tartaruga como na China; e finalmente papiro<br />
e papel). Mas importa salientar que todo documento tem em si<br />
um caráter de monumento e não existe <strong>memória</strong> coletiva bruta (LE<br />
GOFF, Id.).<br />
A afirmação incisiva de que “todo documento tem em si um<br />
caráter de monumento” é bastante relevante e se oferece como uma<br />
importante chave de interpretação no intuito de compreender porque<br />
a multiplicação <strong>des</strong>enfrea<strong>da</strong> <strong>da</strong>s <strong>memória</strong>s sobre São Francisco era<br />
considera<strong>da</strong> tão <strong>per</strong>igosa, exigindo <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>des</strong> competentes<br />
dentro <strong>da</strong> Ordem, uma postura de maior controle.<br />
Deste modo, não é difícil compreender, ain<strong>da</strong> nos referindo às<br />
civilizações mais antigas, as atitu<strong>des</strong> de reis que ordenavam que se<br />
gravassem<br />
(...) na pedra anais (ou pelo menos extratos deles) em que estão<br />
sobretudo narrados os seus feitos – que nos leva a fronteira onde a<br />
<strong>memória</strong> se torna “história”. Mais tarde, os soberanos fazem redigir<br />
pelos seus escribas relatos mais detalhados dos seus reinados<br />
dos quais emergem vitórias militares, benefícios de sua justiça e<br />
progressos do direito, os três domínios dignos de fornecer exemplos<br />
memoráveis aos homens do futuro (LE GOFF, Ibid., p. 430).<br />
Le Goff quer chamar a atenção para o fato de que não demorou<br />
muito para que os reis e im<strong>per</strong>adores <strong>des</strong>cobrissem que a <strong>memória</strong><br />
poderia se tornar um excelente instrumento de poder.<br />
A produção hagiográfica não escapou a essas características, pois,<br />
por ser também ela <strong>memória</strong> (neste caso, a <strong>memória</strong> de um santo),<br />
também se tornou um mecanismo ao mesmo tempo de <strong>construção</strong> e<br />
manutenção de uma identi<strong>da</strong>de de uma Ordem religiosa, quanto de<br />
poder, já que, segundo Paul Ricoeur, citando os trabalhos de Halbwachs,<br />
“para se lembrar, precisa-se dos outros” (RICOEUR, 2007, p. 130).<br />
Se a <strong>memória</strong> e o esquecimento estão intimamente ligados entre<br />
si, como esta articulação se seu durante o governo de Frei Boaventura<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 31<br />
| História | 2011