Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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(...) <strong>des</strong>de as primeiras palavras, a vi<strong>da</strong> de santo se submete a<br />
um outro tempo do que a do herói: o tempo ritual <strong>da</strong> festa. O hoje<br />
litúrgico o remete a um passado que está por contar. O incipit 14<br />
determina o estatuto do discurso. Não se trata de uma história,<br />
mas de uma “legen<strong>da</strong>”, o que é “preciso ler” (legendum) este dia<br />
(CERTEAU, Op. cit., p. 276).<br />
É nesse sentido, mais uma vez, que a hagiografia se diferenciava<br />
<strong>da</strong> História, exatamente por se inserir num quadro litúrgico em que<br />
o tempo era concebido dentro de uma circulari<strong>da</strong>de sem duração,<br />
baseado num sentido escatológico e ao mesmo tempo festivo.<br />
Se o tempo <strong>da</strong> narrativa hagiográfica era compreendido a partir <strong>da</strong><br />
divin<strong>da</strong>de – “o tempo de todos os tempos” – também a noção de lugar,<br />
de espaço tinha sua singulari<strong>da</strong>de. Antes do lugar dito “geográfico”, na<br />
hagiografia, mais importante era a <strong>per</strong>cepção espiritual ou teológica do<br />
espaço em que se <strong>des</strong>enrolava a vi<strong>da</strong> e os feitos do santo. Assim, para<br />
a ex<strong>per</strong>iência medieval do lugar, Deus era também o fun<strong>da</strong>mento do<br />
espaço – era o “lugar de todos os lugares” (Cf. SCHUBACK, Op. cit.,<br />
p. 79). Para Certeau, a partir <strong>des</strong>ta sacralização do lugar,<br />
a organização do espaço que o santo <strong>per</strong>corre, se <strong>des</strong>dobra e torna<br />
a dobrar a fim de mostrar uma ver<strong>da</strong>de que é um lugar. Num grande<br />
número de hagiografias, antigas e modernas, a vi<strong>da</strong> do herói se<br />
divide, como o relato <strong>da</strong> viagem, entre uma parti<strong>da</strong> e um retorno<br />
(...). Vai e volta (CERTEAU, Op. cit., p. 277).<br />
Como se pode ver, a manifestação do divino era essencialmente<br />
local, visível e não dizível. O “lugar hagiográfico” parecia não importar<br />
muito, mas sim a ex<strong>per</strong>iência do lugar. Neste ponto,<br />
o sentido é um lugar que não é um lugar. Remete os leitores a um<br />
“além” que não é nem um alhures nem o próprio lugar onde a vi<strong>da</strong> do<br />
santo organiza a edificação de uma comuni<strong>da</strong>de. Freqüentemente<br />
se produz aí um trabalho de simbolização. Talvez esta relativização<br />
de um lugar particular através de uma composição de lugares, como<br />
o <strong>des</strong>aparecimento do indivíduo por detrás de uma combinação de<br />
virtu<strong>des</strong> prescritas à manifestação do ser, forneçam a “moral” <strong>da</strong><br />
hagiografia: portanto, uma vontade de significar um discurso de<br />
lugares é o não-lugar.” (CERTEAU, Ibid., p. 278).<br />
Na hagiografia, o lugar onde o santo realizava a vontade divina era<br />
mais importante que o tempo (este aqui entendido cronologicamente).<br />
Isso ocorria porque a “história do santo se traduz em <strong>per</strong>cursos de<br />
lugares e em mu<strong>da</strong>nças de cenário; eles determinam o espaço de uma<br />
“constância” (CERTEAU, Ibid. p. 276).<br />
Entre outras características de uma <strong>construção</strong> hagiográfica,<br />
Michel de Certeau elencou mais alguns pontos importantes. a) a<br />
imagem de um santo se modelava a partir de elementos semânticos;<br />
b) o santo já trazia em si alguma marca de sua divin<strong>da</strong>de, por isso a<br />
hagiografia lhe confere uma origem nobre, na qual o sangue/linhagem<br />
se tornava um símbolo muito ilustrativo <strong>da</strong> graça divina (<strong>da</strong>í se<br />
compreende a importância <strong>da</strong>s genealogias); c) a proximi<strong>da</strong>de entre as<br />
gesta principum (“gestos do príncipe”) e a vitae sanctorum (“vi<strong>da</strong> dos<br />
santos”); d) diferentemente de uma biografia moderna que se importa<br />
com as “evoluções” e as diferenças, a hagiografia concebia que tudo<br />
já havia sido <strong>da</strong>do ao santo <strong>des</strong>de o inicio (vocação); e) o santo é<br />
aquele que não <strong>per</strong>deu na<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo que Deus lhe confiou; e, por fim,<br />
a hagiografia se caracterizava por dramatizar e dividir a vi<strong>da</strong> do santo<br />
em tempos de provação e tempos de glorificação.<br />
A par <strong>des</strong>ses aspectos gerais que ditavam o discurso hagiográfico,<br />
não se pode esquecer que a compilação e divulgação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de um<br />
santo não só almejava a glorificação do santo, mas também a formação<br />
e conservação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de do grupo que criava tais discursos.<br />
Assim,<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 21<br />
| História | 2011