Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O objetivo <strong>des</strong>ta análise, curiosamente, não era investigar a<br />
<strong>per</strong>sonagem histórica de Francisco de Assis, uma vez que já existe<br />
uma vasta literatura sobre este assunto. Mas, sim, debruçar-se sobre<br />
o que se escreveu dele e de sua mensagem; sobre que <strong>per</strong>cepção<br />
tinham dele a Ordem, a Igreja, o povo, e seus primeiros hagiógrafos,<br />
na primeira metade do século XIII. Em outras palavras, a problemática<br />
a que nos dispomos investigar mais de <strong>per</strong>to, neste estudo, pode ser<br />
resumi<strong>da</strong> na seguinte questão: por que algumas <strong>memória</strong>s antigas<br />
de São Francisco de Assis tiveram que ser silencia<strong>da</strong>s na déca<strong>da</strong> de<br />
1260?<br />
A literatura hagiográfica - ou as “vi<strong>da</strong>s de santos”, especialmente<br />
aquelas compila<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de até a I<strong>da</strong>de Média cristãs -<br />
durante muito tempo ficou à margem dos estudos historiográficos por<br />
ser considera<strong>da</strong> fonte <strong>des</strong>provi<strong>da</strong> de valor histórico, impregna<strong>da</strong> de<br />
fantasias e relatos pouco fidedignos. Entretanto, com as contribuições<br />
<strong>da</strong> História Cultural e suas novas abor<strong>da</strong>gens e novas ferramentas<br />
interpretativas, um novo olhar começou a ser lançado sobre essas<br />
narrativas.<br />
Talvez, o primeiro problema encontrado na trajetória <strong>des</strong>ta<br />
pesquisa foi articular a concepção hodierna de biografia e os riscos<br />
que se pode correr ao se conceber uma hagiografia medieval como<br />
uma biografia “comum”. Sabe-se que nas últimas déca<strong>da</strong>s houve uma<br />
espécie de “retorno <strong>da</strong> biografia” nos estudos históricos. A biografia<br />
que durante muito tempo havia sido relega<strong>da</strong> a um segundo plano<br />
na agen<strong>da</strong> de tarefas dos historiadores, passou novamente a fazer<br />
parte de suas preocupações, mesmo que com novas metodologias.<br />
Vários estudos recomeçaram, então a discutir o papel <strong>da</strong> biografia<br />
na produção historiográfica atual, como, por exemplo, os trabalhos<br />
de Giovanni Levi, defendendo o princípio de que as biografias atuais<br />
devem levar em conta a liber<strong>da</strong>de do sujeito histórico e suas tensões<br />
com os sistemas normativos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, mostrando o biografado<br />
em suas contradições; outro exemplo são as contribuições de Pierre<br />
Bourdieu, para quem o indivíduo não existe fora de uma rede de<br />
relações sociais, como num jogo de interações.<br />
Nessas discussões sobre a biografia, os trabalhos de Sabina<br />
Loriga estabeleceram foram um importante marco. Com suas<br />
novas reflexões sobre a ideia de “herói” e de “homem-partícula”,<br />
Loriga conseguiu lançar novas luzes e abrir novas possibili<strong>da</strong><strong>des</strong> de<br />
pesquisas biográficas. A autora reconhece os esforços <strong>da</strong> microhistória<br />
sobre a noção de indivíduo, chegando a afirmar que “não é<br />
necessário que o indivíduo represente um caso típico, ao contrário,<br />
vi<strong>da</strong>s que se afastam <strong>da</strong> média levam talvez a refletir melhor sobre o<br />
equilíbrio entre a especifici<strong>da</strong>de do <strong>des</strong>tino pessoal e o conjunto do<br />
sistema social” (LORIGA, Apud., REVEL, 1998, p. 248).<br />
O problema de se trabalhar com biografias antigas que não eram<br />
(ou não intencionavam ser), propriamente biografias, no sentido<br />
usual, também foi enfrentado por Jacques Le Goff, ao investir gran<strong>des</strong><br />
esforços na escrita de sua biografia sobre um rei que também foi um<br />
santo. Na introdução de seu São Luís, Le Goff, explicita sua dificul<strong>da</strong>d<br />
e em relação<br />
(...) à quali<strong>da</strong>de e aos objetivos dos biógrafos de Luís, que são<br />
quase todos, pelo menos os mais importantes, hagiógrafos. Não<br />
querem fazer dele só um rei santo. Querem fazer um rei e um santo<br />
segundo os ideais dos grupos ideológicos a que <strong>per</strong>tencem. Existe<br />
assim um São Luís <strong>da</strong>s novas ordens mendicantes – dominicanos<br />
e franciscanos – e um São Luís dos beneditinos <strong>da</strong> abadia real de<br />
Saint-Denis, mais santo mendicante para os primeiros, antes, rei<br />
“nacional” modelo para os segundos (LE GOFF, 2002, p. 22).<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 2<br />
| História | 2011