Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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Mas, o problema está mesmo é no que sobre ele se escreveu e não<br />
tanto nele mesmo (...) (SILVEIRA, 1990, p. 17).<br />
É ver<strong>da</strong>de que, parte considerável <strong>da</strong>s biografias sobre o santo<br />
de Assis, embora <strong>per</strong>mea<strong>da</strong>s de variações significantes e até<br />
contradições entre si, apresentava uma semelhança – como veremos<br />
na segun<strong>da</strong> parte <strong>des</strong>te capítulo - que espantaria o leitor de nossos<br />
dias, acostumado com nossas modernas leis de direitos autorais e as<br />
punições previstas contra o plágio, mas não se deve aqui <strong>des</strong>considerar<br />
as palavras de Umberto Eco que nos recor<strong>da</strong> que<br />
(...) a I<strong>da</strong>de Média foi uma época de autores que se copiavam em<br />
cadeia sem citar-se – mesmo porque em uma época de cultura<br />
manuscrita, com os manuscritos dificilmente acessíveis, copiar era<br />
o único meio de fazer circular as idéias. Ninguém considerava isso<br />
um delito; de cópia em cópia, era freqüente que não se soubesse<br />
mais qual a ver<strong>da</strong>deira paterni<strong>da</strong>de de uma fórmula; no fim <strong>da</strong>s<br />
contas, pensava-se que, se uma idéia era ver<strong>da</strong>deira, <strong>per</strong>tencia a<br />
todos (ECO, 2010, p. 16).<br />
Não é preciso dizer que, no caso franciscano aqui estu<strong>da</strong>do, a<br />
questão <strong>da</strong>s cópias de obras ou de biografias – sem autorização prévia<br />
dos autores - não foi um simples problema de facilitação <strong>da</strong> “circulação<br />
de ideias”. Tudo indica que foi mais que isso. Para este estudo, importa,<br />
então, tentar identificar os ver<strong>da</strong>deiros motivos que levaram o século<br />
XIII e, mais tarde, o século XIV – guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s suas peculiari<strong>da</strong><strong>des</strong> – a se<br />
tornarem palcos de uma intensa e fervorosa busca por um rosto para<br />
São Francisco.<br />
2.1 A literatura hagiográfica medieval<br />
Antes de se tentar compreender a natureza e as características do<br />
gênero literário denominado de hagiografia, faz-se necessário adentrar,<br />
ao menos um pouco, no complexo tema <strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de, principalmente<br />
naquilo que esta significava para a civilização medieval. Já foi dito aqui<br />
que o homem medieval era profun<strong>da</strong>mente religioso. Desta forma,<br />
qualquer estudo historiográfico sobre a santi<strong>da</strong>de deve, segundo<br />
Giovanni Merlo, respeitar os valores<br />
(...) religiosos e cristãos. Não se trata de aceitá-los ou de rejeitálos<br />
(isso depende <strong>da</strong>s legítimas e arrisca<strong>da</strong>s opções pessoais),<br />
mas de conhecê-los e compreendê-los, primeiramente dentro<br />
<strong>da</strong> grandiosa concepção de “história <strong>da</strong> salvação” <strong>da</strong> qual são<br />
sempre integrantes. (...) O historiador dos fenômenos religiosos<br />
e eclesiásticos (cristãos) não tem Deus diante de si, mas homens<br />
e mulheres que professaram sua fé no Deus cristão (MERLO, Op.<br />
cit., p. 17).<br />
Também para Sofia Boesch Gajano, o tema <strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de na I<strong>da</strong>de<br />
Média deve ser tratado com muita cautela, evitando preconceitos.<br />
Para a historiadora, a<br />
(...) santi<strong>da</strong>de no Ocidente medieval constitui um fenômeno<br />
considerável, de múltiplas dimensões: fenômeno espiritual, ela<br />
é a expressão <strong>da</strong> busca do divino; fenômeno teológico, ela é<br />
a manifestação de Deus no mundo; fenômeno religioso, ela é o<br />
momento privilegiado <strong>da</strong> relação com o sobrenatural; fenômeno<br />
social, ela é um fator de coesão e identificação dos grupos e <strong>da</strong>s<br />
comuni<strong>da</strong><strong>des</strong>; fenômeno institucional, ela é o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s<br />
estruturas eclesiásticas e monásticas; fenômeno político, enfim,<br />
ela é um ponto de interferência ou de coincidência <strong>da</strong> religião e do<br />
poder (GAJANO Apud LE GOFF et SCHIMITT, 2006, p. 449).<br />
Entretanto, a santi<strong>da</strong>de não tinha uma existência em si mesma<br />
e isso é de extrema importância para que se possa compreender a<br />
natureza <strong>da</strong> produção hagiográfica medieval. Ain<strong>da</strong> para Gajano,<br />
a santi<strong>da</strong>de aparecia como uma <strong>construção</strong> que se baseava na<br />
“<strong>per</strong>cepção e o reconhecimento do caráter excepcional de um homem<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 18<br />
| História | 2011