Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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historiadores novas abor<strong>da</strong>gens sobre passado, isso não quer dizer<br />
que este passado se revele <strong>des</strong>de então ao olhar do pesquisador de<br />
forma clara e <strong>des</strong>pi<strong>da</strong> de sombras.<br />
As contribuições <strong>da</strong> História Cultural tiveram, neste sentido,<br />
um papel muito importante, tendo se tornado “um dos campos mais<br />
vigorosos e debatidos do âmbito histórico” mesmo que exista “um<br />
grande risco de não poder traçar uma fronteira segura e clara entre a<br />
história cultural e outras histórias (...)” (CHARTIER, 2009, p. 33).<br />
O historiador, entretanto, deve ter consciência de que não poderá<br />
se furtar às discussões entre <strong>memória</strong> e História. Como observou<br />
Giovanni Merlo,<br />
(...) o problema seguinte é obrigatório: o que falam e o que calam<br />
os fatos, em si e na ligação entre si? De forma mais <strong>per</strong>tinente,<br />
a <strong>per</strong>gunta deveria ser dirigi<strong>da</strong> à documentação: o que falam e<br />
o que calam as fontes e os documentos? Fontes e documentos<br />
falam e calam sobre homens e mulheres, sobre seus atos, seus<br />
pensamentos, seus sentimentos, sua grandeza, sua miséria, sua<br />
impotência seu (mais ou menos acentuado) <strong>des</strong>ejo de poder (...).<br />
Fontes e documentos são escritos testemunhais que falam somente<br />
quando interrogados (MERLO, 2005, p. 16).<br />
Isso implica em dizer que se as <strong>per</strong>guntas feitas aos documentos<br />
não forem adequa<strong>da</strong>mente formula<strong>da</strong>s, tais documentos poderão<br />
silenciar-se ou oferecerem respostas distorci<strong>da</strong>s ao pesquisador.<br />
Roger Chartier, apoiando-se nos trabalhos do filósofo francês,<br />
Paul Ricoeur, tentou traçar, de modo sintético, as relações profun<strong>da</strong>s<br />
entre <strong>memória</strong>, história e esquecimento:<br />
(...) graças ao grande livro de Paul Ricoeur, A <strong>memória</strong>, a história, o<br />
esquecimento (2000), as diferenças entre história e <strong>memória</strong> podem<br />
ser trata<strong>da</strong>s com clareza. A primeira é a que distingue o testemunho<br />
do documento. Se o primeiro é inseparável <strong>da</strong> testemunha e opõe<br />
que suas declarações sejam considera<strong>da</strong>s admissíveis, o segundo<br />
dá acesso a “acontecimentos que se consideram históricos e que<br />
<strong>nunc</strong>a foram a recor<strong>da</strong>ção de ninguém”. Ao testemunho, cujo<br />
crédito se baseia na confiança outorga<strong>da</strong> à testemunha, opõe-se<br />
a natureza indiciária do documento. A aceitação (ou repúdio) <strong>da</strong><br />
credibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra que testemunha o fato é substituí<strong>da</strong> pelo<br />
exercício crítico, que submete ao regime do ver<strong>da</strong>deiro e do falso,<br />
do refutável e do verificável aos vestígios do passado (CHARTIER,<br />
Op. cit., p. 21)<br />
Neste caso, como conhecer a vi<strong>da</strong> de um homem com fama de<br />
santi<strong>da</strong>de, como é o caso de Francisco de Assis, cuja maioria dos relatos<br />
sobre sua trajetória humana e espiritual <strong>per</strong>tenceram a um gênero<br />
literário tão sui generis como o hagiográfico? Michel de Certeau já<br />
alertava para este problema, pois afirmava que analisar a hagiografia<br />
em função de sua “autentici<strong>da</strong>de” e de seu “valor histórico” seria<br />
empobrecê-la, pois “isto seria submeter um gênero literário à lei de<br />
um outro – a historiografia – e <strong>des</strong>mantelar um tipo próprio de discurso<br />
para reter dele senão aquilo que ele não é” (CERTEAU, 2008, p. 267),<br />
correndo o risco de se ficar na su<strong>per</strong>ficiali<strong>da</strong>de. Certamente, isso não<br />
<strong>des</strong>autoriza o historiador de se debruçar sobre as “vi<strong>da</strong>s de santos”<br />
com olhar crítico, mas, segundo Certeau, seu trabalho consistiria em<br />
retraçar as etapas, analisar o funcionamento e particularizar o contexto<br />
cultural <strong>da</strong> obra hagiográfica.<br />
Assim, seria ingênuo <strong>des</strong>ejar apreender nas antigas biografias<br />
sobre São Francisco12 o ver<strong>da</strong>deiro homem debaixo do santo. Mesmo<br />
porque os hagiógrafos, como se dirá mais adiante, não estavam<br />
interessados em narrar a vi<strong>da</strong> do homem, mas sim a vi<strong>da</strong> do santo.<br />
Neste ponto, as fontes hagiográficas franciscanas<br />
(...) oferecem realmente dificul<strong>da</strong><strong>des</strong> ao estudioso precavido. Não<br />
<strong>des</strong>crevem uma imagem uniforme de S. Francisco, o que de <strong>per</strong><br />
si já é muito natural, <strong>da</strong><strong>da</strong> a envergadura extraordinária do santo.<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 17<br />
| História | 2011