Videmus nunc per speculum”: A (des)construção da memória ... - UTP
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Neste cenário de novas buscas espirituais de fundo laical, as cruza<strong>da</strong>s<br />
tiveram um papel essencial, uma vez que,<br />
(...) com as cruza<strong>da</strong>s revela-se pela primeira vez no Ocidente a<br />
existência de uma espirituali<strong>da</strong>de popular, que surge repentinamente<br />
como um conjunto coerente. Entre os seus elementos constitutivos,<br />
encontra-se em primeiro lugar a devoção a Cristo, que faz nascer<br />
o <strong>des</strong>ejo de libertar a terra onde ele vivera e de vingar a honra a<br />
Deus, escarneci<strong>da</strong> pelos infiéis. A ela se acrescenta uma aspiração<br />
à purificação individual e colectiva, que tem a ver, em simultâneo,<br />
com os aspectos penitenciais <strong>da</strong> cruza<strong>da</strong> e com as suas dimensões<br />
messiânicas (VAUCHEZ, Ibid., p. 106),<br />
<strong>per</strong>mitindo aos fiéis uma oportuni<strong>da</strong>de de satisfazer às suas<br />
expectativas no que diz respeito a uma salvação que, nos mol<strong>des</strong> <strong>da</strong><br />
época, lhes parecia inviável em suas vi<strong>da</strong>s cotidianas, no saeculum 9 .<br />
Passado o vigor e o calor <strong>da</strong>s primeiras cruza<strong>da</strong>s, os leigos foram<br />
convi<strong>da</strong>dos a retomarem seu lugar costumeiro dentro <strong>da</strong> dinâmica<br />
eclesiológica, limitando-se a retomar suas saecularia negotia (“negócios<br />
seculares”), fazendo com que os fiéis se sentissem novamente inúteis<br />
dentro do seio <strong>da</strong> Ecclesia. Entretanto, os fiéis estavam ain<strong>da</strong> sedentos<br />
de participarem ativamente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e missão <strong>da</strong> Cristan<strong>da</strong>de. Seria<br />
difícil obedecer às recomen<strong>da</strong>ções de passivi<strong>da</strong>de na prática de sua<br />
religião. Eram apenas as primeiras faíscas de um “evangelismo” de<br />
cunho popular que culminaria na explosão dos movimentos religiosos,<br />
ortodoxos e heterodoxos, que abalariam, ca<strong>da</strong> qual com suas<br />
peculiari<strong>da</strong><strong>des</strong>, as estruturas <strong>da</strong> christianitas, dos séculos XII e XIII.<br />
No início, esses movimentos religiosos laicais tinham como sua<br />
principal característica a pobreza voluntária, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no <strong>des</strong>ejo de<br />
querer imitar a humani<strong>da</strong>de e a pobreza de Cristo. Essas motivações<br />
se chocavam com o <strong>per</strong>fil <strong>da</strong>s novas ci<strong>da</strong><strong>des</strong> e seus novos valores<br />
econômicos, já que<br />
(...) num mundo onde o <strong>des</strong>envolvimento <strong>da</strong> produção e <strong>da</strong>s trocas<br />
acentuava as clivagens no seio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de rural e fazia surgir<br />
novas formas de miséria, a escolha <strong>da</strong> pobreza como condição de<br />
vi<strong>da</strong> indicava um <strong>des</strong>ejo de aproximação dos abandonados pela<br />
expansão e dos excluídos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de: vagabundos, prostitutas,<br />
leprosos, etc. Ela constituía igualmente um protesto contra o luxo<br />
dos poderosos e muito particularmente <strong>da</strong> hierarquia eclesiástica<br />
(VAUCHEZ, Ibid., p. 108).<br />
O <strong>des</strong>ejo laical de imitar a “Cristo pobre e humilde” era autêntico,<br />
mas surgira em uma época que não estava prepara<strong>da</strong> nem madura para<br />
tais contestações, numa época em que a suntuosi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Igreja era<br />
justifica<strong>da</strong> pela digni<strong>da</strong>de de seu estado e de sua missão de construir<br />
o glorioso e poderoso Reino de Deus no mundo dos homens.<br />
Não é difícil compreender, a partir disso, o fato <strong>des</strong>ses movimentos<br />
religiosos populares do século XII muito frequentemente cheirarem<br />
a heresia diante <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>des</strong> eclesiásticas. Entretanto, mesmo<br />
que o século XII não estivesse pronto para esses novos tipos de<br />
espirituali<strong>da</strong><strong>des</strong>, a semente fora lança<strong>da</strong> e não demoraria muito para<br />
que produzisse seus primeiros frutos, <strong>des</strong>ta vez menos frágeis e melhor<br />
organizados. Uma coisa é certa,<br />
(...) sem esse clima novo, não seria possível explicar nem o<br />
conteúdo nem o sucesso <strong>da</strong> mensagem franciscana. Uma <strong>da</strong>s<br />
gran<strong>des</strong> lições que se <strong>des</strong>tacavam <strong>da</strong>s ex<strong>per</strong>iências vivi<strong>da</strong>s pelos<br />
leigos no século XII era a possibili<strong>da</strong>de de se viver o Evangelho<br />
no meio dos homens, recusando to<strong>da</strong>via o “mundo” (VAUCHEZ,<br />
Ibid., p. 139).<br />
O século XIII herdou to<strong>da</strong>s essas inquietações espirituais, mesmo<br />
que, neste sentido, fosse menos original que o século XII. O século de<br />
São Francisco de Assis foi marcado pelo evangelismo que se traduzia<br />
como uma busca <strong>da</strong> salvação pela vivência do Evangelho. No século<br />
anterior, essa vivência evangélica já fora proposta, mas com muita<br />
Monografias - Universi<strong>da</strong>de Tuiuti do Paraná 12<br />
| História | 2011