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A figura alada de Dürer e o anjo de Klee - Universidade Estadual do ...

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Universida<strong>de</strong> <strong>Estadual</strong> <strong>do</strong> Ceará<br />

Mestra<strong>do</strong> Acadêmico em Filosofia<br />

Benedito Elói Rigatto<br />

A <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> e o <strong>anjo</strong> <strong>de</strong> <strong>Klee</strong><br />

Senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> melancolia em Walter Benjamin<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong><br />

Fortaleza – CE<br />

2011<br />

1


Benedito Elói Rigatto<br />

A <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> e o <strong>anjo</strong> <strong>de</strong> <strong>Klee</strong><br />

Senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> melancolia em Walter Benjamin<br />

Dissertação apresentada ao Curso <strong>de</strong><br />

Mestra<strong>do</strong> Acadêmico em Filosofia <strong>do</strong><br />

Centro <strong>de</strong> Humanida<strong>de</strong>s da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>Estadual</strong> <strong>do</strong> Ceará como<br />

requisito parcial para a obtenção <strong>do</strong><br />

grau <strong>de</strong> Mestre em Filosofia<br />

Linha <strong>de</strong> pesquisa: Ética fundamental e<br />

Ética e Filosofia Política<br />

Orienta<strong>do</strong>ra: Profa. Dra. Maria Terezinha<br />

<strong>de</strong> Castro Calla<strong>do</strong><br />

Fortaleza - CE<br />

2011<br />

2


Folha <strong>de</strong> Aprovação<br />

Título <strong>do</strong> trabalho: A <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> e o <strong>anjo</strong> <strong>de</strong> <strong>Klee</strong>: senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

melancolia em Walter Benjamin<br />

Autor: Benedito Elói Rigatto<br />

Orienta<strong>do</strong>ra: Maria Terezinha <strong>de</strong> Castro Calla<strong>do</strong><br />

Defesa pública em _____/_____2011 Nota obtida:______<br />

Banca examina<strong>do</strong>ra<br />

____________________________________<br />

Profa. Dra. Maria Terezinha <strong>de</strong> Castro Calla<strong>do</strong><br />

Orienta<strong>do</strong>ra<br />

___________________________________<br />

Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora<br />

1º. Examina<strong>do</strong>r<br />

___________________________________<br />

Prof. Dr. Eduar<strong>do</strong> Jorge Oliveira Trian<strong>do</strong>polis<br />

2º. Examina<strong>do</strong>r<br />

3


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

À minha orienta<strong>do</strong>ra, Profa. Tereza Calla<strong>do</strong> pela atenção sempre paciente e pelo<br />

sorriso que ameniza a árdua tarefa da pesquisa filosófica e mostra a alegria da<br />

<strong>de</strong>scoberta, como convém aos benjaminianos.<br />

Aos professores da Banca pela disponibilida<strong>de</strong> em colaborar com a crítica<br />

necessária na construção <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

Aos professores e funcionários <strong>do</strong> Mestra<strong>do</strong> Acadêmico em Filosofia da<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>Estadual</strong> <strong>do</strong> Ceará pelo apoio no aprimoramento <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong><br />

pesquisa, fundamento necessário da dissertação.<br />

Aos colegas <strong>de</strong> turma pela possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate e da crítica. Um agra<strong>de</strong>cimento<br />

especial ao William Leite, mais que um colega, um amigo <strong>de</strong> longas conversas<br />

pelos labirintos <strong>de</strong> uma filosofia sedutora.<br />

4


O tédio é o pássaro <strong>de</strong> sonho<br />

que choca os ovos da experiência.<br />

WALTER BENJAMIN, O NARRADOR<br />

5


Resumo<br />

Este trabalho procura revelar a centralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> melancolia no pensamento <strong>de</strong> Walter<br />

Benjamin e a extensão <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sta categoria. A escolha <strong>de</strong> textos<br />

significativos para a análise <strong>de</strong>ste tema possibilita revelar as contradições <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> espírito melancólico, que oscila entre apatia, inércia, in<strong>de</strong>finição e visão crítica<br />

para a tomada <strong>de</strong> posição ante a história-catástrofe. Tais conflitos Benjamin<br />

encontra na linguagem alegórica <strong>do</strong> Barroco e na obra <strong>do</strong>s poetas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

capitalista, como o fundamento <strong>de</strong> sua crítica da cultura. Bau<strong>de</strong>laire e Proust<br />

constituem novas formas linguísticas <strong>de</strong> representação alegórica sobre o cotidiano<br />

das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas. Na imanência <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> ruínas, a alegoria<br />

é, para o melancólico, a única linguagem possível, presente no Barroco como jogo<br />

da melancolia (Trauerspiel). Memória e experiência surgem como instrumentos que<br />

o artista, o filósofo, o historia<strong>do</strong>r materialista dispõem para enfrentar a <strong>de</strong>generação<br />

<strong>do</strong> tempo histórico homogêneo e vazio. O historia<strong>do</strong>r materialista, no esta<strong>do</strong><br />

melancólico <strong>de</strong> profunda meditação, junta os cacos <strong>do</strong> que foi <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> e constrói<br />

um mosaico <strong>de</strong> novas significações.<br />

Palavras-chave: Melancolia. Memória. Alegoria. História. Experiência.<br />

6


Résumé<br />

Ce travail cherche à révéler le caractère central <strong>de</strong> la mélancolie chez Wlater<br />

Benjamin et l‟extension <strong>de</strong> la signification <strong>de</strong> cette catégorie. Le choix <strong>de</strong> textes<br />

significatifs pour l‟analyse <strong>de</strong> cette question permet <strong>de</strong> révéler les contradictions <strong>de</strong><br />

la mélancolie, qui oscille entre l‟apathie, l‟inertie, l‟incertitu<strong>de</strong> et approche critique<br />

pour la prise <strong>de</strong> position face à histoire-catastrophe. Ces conflits Benjamin trouve<br />

dans le langage allégorique du Baroque et dans l‟oeuvre <strong>de</strong>s poètes <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnité<br />

capitaliste, comme le fon<strong>de</strong>ment <strong>de</strong> sa critique <strong>de</strong> la culture. Bau<strong>de</strong>laire et Proust<br />

constituent <strong>de</strong> nouvelles formes linguistiques <strong>de</strong> représentation allégorique du<br />

quotidien <strong>de</strong>s sociétés contemporaines. Dans l‟immanence d‟un mon<strong>de</strong> <strong>de</strong> ruines,<br />

l‟allégorie est, pour le mélancolique, le seul langage possible, présent au Baroque<br />

en tant que jeu <strong>de</strong> la mélancolie (Trauerspiel). Mémoire et expérience émergent<br />

comme <strong>de</strong>s instruments que l‟artiste, le philosophe, l‟historien matérialiste ont pour<br />

faire face à la dégénérescence du temps historique homogène et vi<strong>de</strong>. L‟historien<br />

matérialiste, dans l‟état melancolique <strong>de</strong> méditation profon<strong>de</strong>, rassemble les<br />

fragments <strong>de</strong> ce qui a eté détruit et construit une mosaïque <strong>de</strong> nouvelles<br />

significations.<br />

Mots- clés : Mélancolie; Mémoire; Allégorie; Histoire; Expérience<br />

7


Sumário<br />

1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................9<br />

2 TRAUERSPIEL: REPRESENTAÇÃO DA IMANÊNCIA HISTÓRIA-NATUREZA..17<br />

2.1 PRÍNCIPE, CONFLITO, HISTÓRIA E MELANCOLIA......................................20<br />

2.2 O SOBERANO PARADIGMA DO MELANCÓLICO.........................................33<br />

2.3 MELANCOLIA I DE DÜRER, UMA FIGURA ALEGÓRICA.............................47 3<br />

3 MELANCOLIA E LINGUAGEM..........................................................................61<br />

3.1 O NOME E A ESCRITA...................................................................................61<br />

3.2 SÍMBOLO E ALEGORIA..................................................................................71<br />

3.3 A ESCRITA E O OLHAR DO MELANCÓLICO................................................78<br />

4 MELANCOLIA E A ALEGORIA DO ANJO DA HISTÓRIA...............................84<br />

4.1 O POETA MELANCÓLICO..............................................................................84<br />

4.2 A REMEMORAÇÃO NA CONTEMPLAÇÃO MELANCÓLICA........................104<br />

4.3 ANGELUS NOVUS: A IMAGEM MELANCÓLICA DO ANJO DA ISTÓRIA...110<br />

5 CONCLUSÃO...................................................................................................116<br />

6 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................122<br />

8


Introdução<br />

Em carta <strong>de</strong> 1923, Benjamin (1980, p. 94) conta o impacto que foi<br />

contemplar os originais da obra <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>: “Só agora tenho uma i<strong>de</strong>ia da força <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong>; sobretu<strong>do</strong> a Melancolia é obra <strong>de</strong> uma expressivida<strong>de</strong> indizivelmente<br />

profunda.” Não é o simples relato da visita a um museu, mas <strong>do</strong>cumenta a<br />

centralida<strong>de</strong> da melancolia entre as categorias funda<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> seu pensamento e, no<br />

aspecto meto<strong>do</strong>lógico mais amplo, o significa<strong>do</strong> da arte como meio para a<br />

construção <strong>do</strong> pensamento filosófico. Neste ano <strong>de</strong> 1923 Benjamin está<br />

<strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> a pesquisa da tese <strong>de</strong> livre <strong>do</strong>cência Origem <strong>do</strong> Drama Barroco<br />

Alemão, obra que, se provocou sua <strong>de</strong>sistência da carreira acadêmica, é em<br />

compensação o ponto fundamental <strong>de</strong> convergência <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os ensaios, ou melhor,<br />

<strong>de</strong> to<strong>do</strong> seu pensamento, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros escritos <strong>de</strong> 1910 até a obra póstuma<br />

Sobre o Conceito da História e que, para a presente pesquisa sobre a melancolia, é<br />

a principal fonte recorrente <strong>de</strong> apresentação e comentário <strong>do</strong> tema. Conceitos como<br />

imanência, história- natureza, ruína e fragmento, soberania, perecimento, jogo,<br />

metáfora e simbologia, presentes no drama barroco, <strong>de</strong>verão ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s em<br />

primeiro lugar, nesta dissertação, como condição sine qua non, para a revelação <strong>do</strong><br />

tema melancolia em toda sua extensão alegórica. Na tese sobre o barroco, Benjamin<br />

procura a verda<strong>de</strong> da história humana através da arte dramática <strong>do</strong>s autores<br />

alemães <strong>do</strong> século XVII, especificamente <strong>de</strong> Opitz, Lohenstein, Gryphius, Hallmann<br />

e Haugwits. A con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> soberano <strong>de</strong>ste teatro barroco passa a ser a<br />

con<strong>figura</strong>ção da própria história, pois todas e as contradições, os conflitos e as<br />

dúvidas da ambivalência essencial provoca<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> fragmentações <strong>de</strong>sta época, se<br />

concentram na <strong>figura</strong> <strong>do</strong> príncipe. Tal ambivalência, já presente em Descartes como<br />

dualida<strong>de</strong> corpo e alma, é o elemento barroco que, ao se exteriorizar, gera a<br />

melancolia. Benjamin revela os aspectos essenciais conflitantes da ambivalência e<br />

dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta con<strong>figura</strong>ção, e da história portanto: a cabeça <strong>de</strong> duas faces –<br />

alusão ao mito <strong>de</strong> Janus - a <strong>do</strong> tirano e a <strong>do</strong> mártir, ou seja, a condição <strong>de</strong> soberano<br />

incumbi<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir num esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção, em momentos <strong>de</strong> perigo, e ao mesmo<br />

tempo obriga<strong>do</strong> a carregar o far<strong>do</strong> insuportável da consciência <strong>de</strong> que não passa <strong>de</strong><br />

um simples mortal. A face <strong>do</strong> príncipe como mártir correspon<strong>de</strong> à concepção da<br />

9


história como <strong>de</strong>stino, isto é, da physis não entendida aqui como harmonia cósmica<br />

da antiguida<strong>de</strong> clássica, mas como o orgânico que o tempo <strong>de</strong>compõe. O homem<br />

barroco é obceca<strong>do</strong> por este <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> auto aniquilamento. A história se revela<br />

então, segun<strong>do</strong> Benjamin (1985, p. 188), na sua “fácies hippocrática como paisagem<br />

petrificada.”; equivale dizer: a história universal da civilização é <strong>de</strong>stinada<br />

inexoravelmente à catástrofe e, na encenação teatral <strong>do</strong> drama barroco<br />

(Trauerspiel), é representada como paisagem fixa, eternizadas, confinadas que<br />

estão no espaço da corte.<br />

São esses conceitos que primeiro fundamentam a pesquisa <strong>do</strong> tema<br />

melancolia e serão <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s no primeiro capítulo da dissertação. Com efeito,<br />

na ótica da dramaturgia barroca, a melancolia correspon<strong>de</strong> diretamente ao<br />

<strong>de</strong>senrolar da história da civilização, como expressa Benjamin (1984, p. 88): “O<br />

soberano representa a história. Ele segura em suas mãos o acontecimento histórico,<br />

como se fosse um cetro”. O filósofo completa (1984, p. 165): “O príncipe é o<br />

paradigma <strong>do</strong> melancólico.”. O trabalho <strong>de</strong> pesquisa sobre o tema da melancolia<br />

<strong>de</strong>ve estar sempre atento ao procedimento meto<strong>do</strong>lógico da pesquisa filosófica <strong>de</strong><br />

Benjamin (1984, p. 50), para quem a verda<strong>de</strong> não é conhecimento a ser possuí<strong>do</strong> e<br />

<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, mas algo que se auto representa para ser contempla<strong>do</strong>. “Esse exercício (o<br />

da lei da representação da verda<strong>de</strong>) impôs-se em todas as épocas que tiveram<br />

consciência <strong>do</strong> Ser in<strong>de</strong>finível da verda<strong>de</strong>, e assumiu o aspecto <strong>de</strong> uma<br />

propedêutica”. Com esse procedimento meto<strong>do</strong>lógico, interpreta-se a alegoria da<br />

Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, sem <strong>de</strong>finições acabadas, mas a partir da multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

significações alegóricas próprias <strong>do</strong> drama barroco.<br />

Ao construir sua filosofia da história, Benjamin reinterpreta os sistemas<br />

filosóficos da tradição e da própria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e expõe tanto sua concepção <strong>de</strong><br />

trata<strong>do</strong>, quanto <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>, assim como da relação idéia-conceito-fenômenos. É o<br />

trabalho <strong>do</strong> crítico, não no senti<strong>do</strong> estrito <strong>de</strong> crítica literária ou <strong>de</strong> crítica <strong>de</strong> arte em<br />

geral, mas no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>strutivo-construtivo mais amplo possível, capaz <strong>de</strong> revelar<br />

aquilo que o discurso escon<strong>de</strong> como teor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. A postura crítica com a qual<br />

Benjamin (1984, p. 69s) se relaciona com os sistemas filosóficos fica bem clara<br />

10


quan<strong>do</strong> expõe sua concepção <strong>de</strong> idéia: “No segun<strong>do</strong> (no caso da relação <strong>do</strong><br />

particular com a idéia), ele é incluí<strong>do</strong> sob a i<strong>de</strong>ia, e passa a ser o que não era –<br />

totalida<strong>de</strong>. Nisso consiste sua re<strong>de</strong>nção platônica.” Ou ainda: “A idéia é mônada –<br />

nela resi<strong>de</strong>, preestabelecida, a representação <strong>do</strong>s fenômenos, como sua<br />

interpretação objetiva.” 1 Nestas duas passagens <strong>de</strong> Origem <strong>do</strong> Drama Barroco<br />

Alemão, Benjamin faz referência às filosofias <strong>de</strong> Platão e <strong>de</strong> Leibniz para construir<br />

sua própria concepção <strong>de</strong> idéia que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser algo <strong>de</strong> eterno e abstrato para<br />

adquirir vida quan<strong>do</strong> os fenômenos as reconhecem e as circundam, sob o ponto <strong>de</strong><br />

vista da história portanto. É o senti<strong>do</strong> mais profun<strong>do</strong> <strong>de</strong> crítica: reinterpretar a<br />

tradição filosófica pelo méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> que salva os fenômenos dissolvi<strong>do</strong>s na<br />

i<strong>de</strong>ia. 2<br />

Permitir a emergência da con<strong>figura</strong>ção da idéia através da forma <strong>do</strong> drama<br />

barroco: nisso consiste o projeto <strong>de</strong> Benjamin em Origem <strong>do</strong> Drama Barroco<br />

Alemão; idéia no exato senti<strong>do</strong> exposto em sua teoria <strong>do</strong> conhecimento, isto é,<br />

enquanto totalida<strong>de</strong> da coexistência <strong>do</strong>s fenômenos mais extremos. A obra <strong>de</strong> arte,<br />

sob a tenacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong> crítico, faz emergir a totalida<strong>de</strong> revela<strong>do</strong>ra da história:<br />

eis o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> origem (Ursprung) e eis em que consiste a categoria da origem.<br />

To<strong>do</strong>s os ensaios <strong>de</strong> Benjamin giram em torno <strong>de</strong>ste, po<strong>de</strong>-se dizer, programa <strong>de</strong><br />

interpretação histórico-filosófico: mostrar tu<strong>do</strong> aquilo que o artista possibilita ao<br />

crítico revelar por meio da linguagem. É a linguagem que possibilita à Benjamin<br />

resolver a dicotomia entre fenômeno e i<strong>de</strong>ia. Para Platão, as i<strong>de</strong>ias estão dispersas<br />

em seu mun<strong>do</strong> próprio. Para Benjamin, elas estão na linguagem (Sprache).<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a linguagem, i<strong>de</strong>ias e fenômenos tem uma mútua <strong>de</strong>pendência para<br />

existirem. Mas como isso é possível, se cada um é <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m diferente?<br />

Benjamin respon<strong>de</strong>: pela função linguística media<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s conceitos, que<br />

1<br />

( Cf. Leibniz, G. W.,1979 ). Para Leibniz, a mônada é uma substância simples, não possui partes e é<br />

indivisível. Esta simplicida<strong>de</strong> implica multiplicida<strong>de</strong> na qualida<strong>de</strong>. É uma estrutura compreendida como<br />

multiplicida<strong>de</strong> na unida<strong>de</strong>. Cada mônada se relaciona com outras mônada exprimin<strong>do</strong> assim to<strong>do</strong> o universo. A<br />

esta concepção <strong>de</strong> Leibniz, Benjamin atribuirá sua concepção da i<strong>de</strong>ia: “ a i<strong>de</strong>ia é mônada” quer dizer que cada<br />

i<strong>de</strong>ia contém a imagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A compreensão <strong>do</strong> Barroco enquanto i<strong>de</strong>ia, ou seja, intemporal portanto,<br />

permite a compreensão da tragédia clássica, por exemplo. O particular é analisa<strong>do</strong> mona<strong>do</strong>logicamente para<br />

revelar a i<strong>de</strong>ia. Assim cada i<strong>de</strong>ia contém a imagem abreviada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

2<br />

Na primeira parte da obra sobre o drama barroco Questões introdutórias <strong>de</strong> crítica <strong>do</strong> conhecimento, Benjamin<br />

expõe os fundamentos filosóficos <strong>do</strong> seu méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisa. Estas questões não constam como objeto<br />

específicos <strong>do</strong> presente trabalho, mas <strong>de</strong>vem ser lembradas quan<strong>do</strong> o entendimento <strong>de</strong> outras questões exigirem.<br />

( Cf. Benjamin,1984, p.49ss ).<br />

11


<strong>de</strong>sempenham o papel <strong>de</strong> intermediário entre fenômeno e i<strong>de</strong>ia. Eles salvam os<br />

fenômenos perante as i<strong>de</strong>ias e as representam universalmente ante o particular.<br />

Ao filósofo não interessa o comentário superficial e classificatório da obra <strong>de</strong><br />

arte em gêneros ou estilos, mas a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong>ntro da própria forma artística da<br />

con<strong>figura</strong>ção da idéia totaliza<strong>do</strong>ra. Os escritos <strong>de</strong> Benjamin, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tese sobre os<br />

românticos <strong>de</strong> Iena e sobre o drama barroco até os ensaios sobre Bau<strong>de</strong>laire,<br />

Proust, Kafka e o surrealismo, significam a escolha <strong>de</strong>stas formas artísticas. Assim<br />

Benjamin (1984, p. 69) focaliza o centro <strong>de</strong> sua crítica filosófica:<br />

[...] enquanto ciência da origem, permite a emergência, a partir <strong>do</strong>s<br />

extremos mais distantes e <strong>do</strong>s aparentes excessos <strong>do</strong> processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento, da con<strong>figura</strong>ção da idéia, enquanto to<strong>do</strong> caracteriza<strong>do</strong><br />

pela possibilida<strong>de</strong> da coexistência significativa <strong>de</strong>sses contrastes.<br />

O primeiro capítulo da presente pesquisa procura expor, a partir <strong>do</strong> trabalho<br />

crítico <strong>de</strong> Benjamin sobre o drama barroco, e mais particularmente, da categoria da<br />

origem, a amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s possíveis <strong>de</strong> melancolia na construção da<br />

filosofia da história. Neste trabalho <strong>de</strong> persistência e tenacida<strong>de</strong>, Benjamin percorre<br />

to<strong>do</strong> o rol <strong>de</strong> significações <strong>de</strong> melancolia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Problemata <strong>de</strong> Aristóteles até as<br />

análises <strong>de</strong> Panofsky e Saxl sobre a gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> Melancolia I, passan<strong>do</strong> pelos<br />

estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Ficinus e Melanchthon em oposição às concepções religiosas<br />

<strong>de</strong>preciativas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval. Benjamin (1984, p. 173s) conclui: “Era preciso<br />

dissociar a melancolia sublime, a melancolia illa heróica <strong>de</strong> Marsilius Ficinus e <strong>de</strong><br />

Melanchthon, da melancolia vulgar e <strong>de</strong>strutiva. Uma exata dialética <strong>do</strong> corpo e da<br />

alma se combina com a magia astrológica: o enobrecimento da melancolia é o tema<br />

central da obra De Vita Tríplice, <strong>de</strong> Marsilius Ficinus.” A problemática da presente<br />

dissertação po<strong>de</strong> ser apresentada com clareza exatamente nestas questões: a<br />

melancolia é um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> alma que po<strong>de</strong> ainda estar impregna<strong>do</strong> <strong>do</strong> significa<strong>do</strong><br />

vulgar e <strong>de</strong>strutivo <strong>de</strong> inércia, preguiça, <strong>de</strong>pressão, um peca<strong>do</strong> capital enfim, ou,<br />

para o crítico é o olhar penetrante volta<strong>do</strong> para a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, olhar da<br />

profunda meditação que possibilita enxergar o âmago <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, possibilitan<strong>do</strong><br />

a elevação da alma? Benjamin <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> esta segunda alternativa na obra sobre o<br />

drama barroco, com convicção igual ao seu entusiasmo ven<strong>do</strong> os originais das<br />

12


gravuras <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>. É preciso porém enten<strong>de</strong>r esta alternativa na perspectiva <strong>do</strong><br />

dualismo <strong>do</strong>s extremos mais distantes, <strong>do</strong>s excessos e contrastes, ou seja, nos<br />

fenômenos estranhos e <strong>de</strong>spreza<strong>do</strong>s, nas ações mais simplórias ou nas<br />

manifestações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> apelo em perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência.<br />

A categoria da origem é fundamental para revelar o papel <strong>do</strong> crítico e,<br />

juntamente com ele, o sentimento melancólico. Se origem não é gênese, “...não<br />

<strong>de</strong>signa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge <strong>do</strong> vir-a-ser...”, e<br />

se existe a forma artística que possibilita esta emergência, o processo <strong>de</strong>sta<br />

emergência se dá justamente pela ação <strong>do</strong> crítico, entendida como reflexão filosófica<br />

e para isso concorre a melancolia, illa heróica, sublime, <strong>de</strong> que fala Ficinus. Sua<br />

imagem mais perfeita é a <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>: ainda que totalmente inerte, tem os<br />

olhos arregala<strong>do</strong>s, em profunda meditação. A investigação crítica busca revelar a<br />

experiência da origem, isto é, a verda<strong>de</strong> intemporal da história, levada pelo<br />

sentimento melancólico <strong>de</strong> perda, por algo imemorialmente perdi<strong>do</strong> e recalca<strong>do</strong> à<br />

espera <strong>do</strong> esquecimento feliz da re<strong>de</strong>nção.<br />

Seria impossível <strong>de</strong>senvolver uma completa pesquisa sobre a categoria da<br />

melancolia, sem o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> Benjamin sobre linguagem (Sprache) aos<br />

quais é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> o segun<strong>do</strong> capítulo da dissertação. São principalmente os ensaios<br />

Sobre a Linguagem em geral e Sobre a Linguagem <strong>do</strong> Homem, e A Tarefa <strong>do</strong><br />

Tradutor, on<strong>de</strong> são trata<strong>do</strong>s conceitos como perda, rememoração (Einge<strong>de</strong>nken),<br />

símbolo e alegoria. Benjamin <strong>de</strong>senvolve aqui a i<strong>de</strong>ia da busca <strong>do</strong> original, no<br />

senti<strong>do</strong> filosófico <strong>de</strong> origem, <strong>de</strong> uma busca, que se não é uma eterna frustração,<br />

mostra a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem <strong>de</strong> tentar recuperar a linguagem perdida por meio<br />

da multiplicida<strong>de</strong> das línguas humanas. O sentimento <strong>de</strong> perda perpassa estes<br />

textos, e a perda se exterioriza na <strong>figura</strong> postural <strong>do</strong> melancólico.<br />

O terceiro capítulo é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> a textos fundamentais na pesquisa <strong>do</strong> tema:<br />

Crônica Berlinense, Infância Berlinense, A Imagem <strong>de</strong> Proust, e principalmente<br />

Sobre Alguns Temas em Bau<strong>de</strong>laire. Se fosse possível apresentar estes ensaios<br />

como peças teatrais, dir-se-ia que os personagens, na representação <strong>de</strong>ssa trama,<br />

13


seriam a criança, o sonha<strong>do</strong>r, o flâneur, o coleciona<strong>do</strong>r, o narra<strong>do</strong>r, enfim aqueles<br />

que se afastam da história linear contínua, reta ou curva, da herança iluminista e<br />

das aparências vividas por indivíduos sem rosto na metrópole, para viver o avesso, o<br />

escondi<strong>do</strong>, o onírico, os subterrâneos <strong>do</strong> sonha<strong>do</strong>. A propósito <strong>de</strong> Proust, diz<br />

Benjamin (1985, p. 37): “Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que<br />

ele viveu, mas o teci<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua rememoração, o trabalho <strong>de</strong> Penélope da<br />

reminiscência.” Nesta constelação <strong>do</strong> lembrar, que não é o que se viveu, mas a vida<br />

lembrada por quem a viveu – e aí resi<strong>de</strong> a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s da alegoria<br />

– po<strong>de</strong>-se juntar o labirinto e o <strong>de</strong>svio que a ele conduz aqueles “personagens” <strong>do</strong><br />

sonho.<br />

Benjamin expõe o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>svio como o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> filosófico no<br />

inspira<strong>do</strong> primeiro parágrafo da Questões introdutórias <strong>de</strong> crítica <strong>do</strong> conhecimento,<br />

on<strong>de</strong> distingue o trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema. Benjamin esclarece como é preciso percorrer<br />

um longo caminho para que a verda<strong>de</strong> se represente e seja contemplada. Longo<br />

caminho porque a verda<strong>de</strong>, enquanto idéia, jamais po<strong>de</strong> ser capturada como se<br />

fosse o conjunto <strong>de</strong> conceitos da ciência e, nesse senti<strong>do</strong>, a verda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser<br />

representada como se fosse a fachada <strong>de</strong> um edifício, pois ela está escondida no<br />

pátio interno. Sobre o méto<strong>do</strong> diz Benjamin (1984, p. 50): “Méto<strong>do</strong> é o caminho<br />

indireto, é <strong>de</strong>svio. A representação como <strong>de</strong>svio é portanto a característica<br />

meto<strong>do</strong>lógica <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>.” Salienta ainda que o <strong>de</strong>svio se caracteriza também pelo<br />

eterno recomeço, como já fazia o trata<strong>do</strong> escolástico medieval, cuja <strong>do</strong>utrina era a<br />

representação da verda<strong>de</strong> divina, sem nenhum objetivo <strong>de</strong> ensinar um conhecimento<br />

<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s apreendidas. O recomeço, que significa interrupção, alu<strong>de</strong> à<br />

contemplação da verda<strong>de</strong> que junta os fragmentos, os elementos mais extremos na<br />

totalida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte da verda<strong>de</strong>. Benjamin cria, nesta exposição <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>svio (Metho<strong>de</strong> ist Umweg), uma imagem metafórica, também medieval: o mosaico.<br />

A técnica da representação plástica <strong>do</strong> mosaico consiste em justapor pedacinhos <strong>de</strong><br />

cerâmica colorida <strong>de</strong> esmalte brilhante, cujo resulta<strong>do</strong> final é um to<strong>do</strong> harmonioso <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminada <strong>figura</strong> sagrada. Benjamin (1984, p. 51) conclui: “Tanto o mosaico como<br />

a contemplação justapõem elementos isola<strong>do</strong>s e heterogêneos, e nada manifesta<br />

com mais força o impacto transcen<strong>de</strong>nte, quer da imagem sagrada, quer da<br />

14


verda<strong>de</strong>.” Conclusão importante <strong>de</strong>ste méto<strong>do</strong>: cada fragmento <strong>do</strong> mosaico é<br />

insubstituível, ou seja, os fenômenos são salvos na totalida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ia.<br />

É preciso retornar sempre a Origem <strong>do</strong> Drama Barroco Alemão, o ponto<br />

referencial <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Benjamin, como já foi menciona<strong>do</strong>, para enten<strong>de</strong>r os<br />

textos posteriores, especificamente os ensaios sobre Proust, Kafka, Bau<strong>de</strong>laire e os<br />

da Infância e da Crônica. Sem a compreensão <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>svio, seria difícil<br />

acompanhar os caminhos percorri<strong>do</strong>s pelo crítico nestes ensaios centra<strong>do</strong>s no<br />

rememorar a vida por quem a viveu. Ora, aqueles “personagens”, ou seja o<br />

sonha<strong>do</strong>r Proust, o narra<strong>do</strong>r Kafka, o “biógrafo” Benjamin, criança <strong>do</strong>s criativos jogos<br />

da mimese, não perseguem a linha reta em direção ao vivi<strong>do</strong>, mas se per<strong>de</strong>m em<br />

inumeráveis becos da rememoração, como Bau<strong>de</strong>laire melancólico que lamenta a<br />

Paris perdida nas ruelas e cantos esqueci<strong>do</strong>s, distantes das avenidas retas e<br />

espaçosas da opulenta metrópole <strong>do</strong> século XIX. Assim como em Origem <strong>do</strong> Drama<br />

Barroco Alemão, é o alegorista que apresenta, na cena teatral, toda a ruína e<br />

catástrofe da corte barroca, assim também o historia<strong>do</strong>r atualiza a história através<br />

da montagem <strong>do</strong> lixo joga<strong>do</strong> nas beiradas da metrópole. Este méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> Benjamin<br />

se distancia das pretensões científicas da explicação <strong>de</strong>finitiva, <strong>do</strong> fechamento cabal<br />

da pesquisa <strong>de</strong> soluções universalmente aceitas, para expor uma história via<br />

imagens, aberta a infinitas atualizações.<br />

Entregar-se ao sonho, perambular pela cida<strong>de</strong> com o olhar dirigi<strong>do</strong> apenas<br />

para o que restou <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, lembrar-se da infância naquilo em que ela acreditava<br />

e não se concretizou: eis o presente, pleno <strong>de</strong> tensões daquele que rememora, eis a<br />

única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção messiânica <strong>do</strong> futuro. Aqui fica claro o caráter<br />

melancólico <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>svio: o crítico, qual Ulisses que não se entrega ao<br />

canto sedutor das sereias <strong>do</strong> progresso e nem <strong>de</strong>sfruta das <strong>de</strong>lícias enganosas <strong>de</strong><br />

toda espécie <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>ria. Ele tece melancolicamente sua trama das lembranças<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> emergirá a con<strong>figura</strong>ção da idéia caracterizada pela coexistência <strong>do</strong>s<br />

elementos mais extremos.<br />

15


Mas, afinal das contas, por que o tédio, o sentimento <strong>de</strong> perda e <strong>de</strong>solação,<br />

se cada vez mais o homem dispõe <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> si mesmo e <strong>do</strong> universo, se<br />

ele dispõe <strong>de</strong> uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meios da técnica que lhe proporciona o bem estar?<br />

Por que a eterna busca por algo que o satisfaça, sem nunca atingir a satisfação? A<br />

resposta para estas questões, Benjamin <strong>de</strong>svenda através da arte, primeiramente no<br />

drama barroco, na história-natureza <strong>de</strong> final catastrófico, on<strong>de</strong> melancolia significa o<br />

mergulho nas profun<strong>de</strong>zas das coisas e <strong>de</strong> si mesmo, como meio <strong>de</strong> um<br />

conhecimento às avessas. A saída possível tem na poesia <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire a pós-<br />

história <strong>de</strong>ste drama, no spleen, o mal da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> estampa<strong>do</strong> na melancolia <strong>do</strong><br />

habitante da metrópole. No ensaio O narra<strong>do</strong>r, Benjamin (1985, p. 204) afirma: “o<br />

tédio é o pássaro <strong>de</strong> sonho que choca os ovos da experiência”, uma outra resposta<br />

po<strong>de</strong> estar no sonho que apazigua e instiga. Assim a <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> da Melancolia I <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong>, presa ao chão por conta <strong>do</strong> peso exagera<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu corpo e <strong>de</strong> sua mente e<br />

inerte diante <strong>do</strong>s objetos inúteis das conquistas humanas da técnica e da ciência, dá<br />

lugar ao <strong>anjo</strong> da história <strong>de</strong> <strong>Klee</strong>, suspenso no ar e castiga<strong>do</strong> pela ventania <strong>do</strong><br />

progresso que o arrasta para o futuro, olhos fixos melancolicamente sobre a<br />

civilização e suas ruínas.<br />

16


Capítulo I<br />

Trauerspiel: representação da imanência história-natureza<br />

Seu conteú<strong>do</strong>, seu objeto mais autêntico é a própria vida histórica,<br />

como aquela época a concebia. Nisso ele se distingue da tragédia,<br />

cujo objeto não é a história, mas o mito, e na qual a estatura<br />

trágica das dramatis personae não resulta da condição atual,<br />

radicada na monarquia absoluta, e sim <strong>de</strong> uma condição préhistórica,<br />

radicada no heroísmo passa<strong>do</strong>.<br />

W. BENJAMIN, ORIGEM DO DRAMA BARROCO ALEMÃO<br />

Na reflexão histórico-filosófica sobre o drama barroco alemão, Benjamin faz<br />

a distinção entre drama barroco e tragédia, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s esclarecimentos expostos<br />

nas questões introdutórias <strong>de</strong> crítica <strong>do</strong> conhecimento. O cerne <strong>de</strong>sta distinção é o<br />

objeto, o conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma e <strong>de</strong> outra forma artística: o drama barroco trata da vida<br />

histórica vivida naquele presente <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r absoluto <strong>do</strong> soberano, ou seja, o drama<br />

está cola<strong>do</strong> à realida<strong>de</strong> vivida, enquanto a tragédia diz respeito ao heroísmo <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> mítico. Benjamin (1984, p. 86) esclarece essa especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> drama<br />

citan<strong>do</strong> a poética <strong>de</strong> Opitz: “A tragédia é igual em majesta<strong>de</strong> à poesia heróica, com a<br />

diferença <strong>de</strong> que ela raramente tolera a introdução <strong>de</strong> personagens <strong>de</strong> baixa<br />

extração e <strong>de</strong> episódios medíocres: seus temas são a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s reis, assassínios,<br />

<strong>de</strong>sesperos, infanticídios e parricídios, incêndios, incestos, guerras e insurreições,<br />

lamentações, gemi<strong>do</strong>s e outros semelhantes.” Se para a crítica mo<strong>de</strong>rna o drama<br />

barroco não passaria <strong>de</strong> um espólio da poesia heróica, isto é, da tragédia clássica,<br />

pois é assim que ela enten<strong>de</strong> a afirmação <strong>de</strong> Opitz como enumeração <strong>de</strong> temas,<br />

para Benjamin, ao contrário, trata-se <strong>de</strong> seu núcleo, <strong>de</strong> seu objeto mais significativo.<br />

A luta <strong>de</strong>senfreada pelo po<strong>de</strong>r, conteú<strong>do</strong> e objeto próprios <strong>do</strong> drama barroco<br />

alemão, foi o que <strong>de</strong>terminou a escolha <strong>do</strong> crítico Benjamin por esta forma <strong>de</strong> arte,<br />

pois vislumbrou nela a riqueza <strong>de</strong> um jogo complexo <strong>de</strong> conflitos entre fenômenos<br />

extremos como fonte <strong>de</strong> reflexão filosófica sobre a história, ou concluin<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma<br />

forma mais abrangente, sobre a condição humana. 3 Se a cena teatral <strong>do</strong> drama<br />

barroco se espelhou na cena histórica naquilo que se refere à majesta<strong>de</strong> da vida<br />

3<br />

É importante enfatizar que a tradução <strong>de</strong> Trauerspiel da obra original <strong>de</strong> Benjamin é drama barroco. Porém esta<br />

palavra contém, em seu significa<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is fatores antitéticos: luto e jogo. Luto por uma perda irrecuperável e jogo<br />

como forma <strong>de</strong> suportar a radical perda. Esses <strong>do</strong>is extremos estão no mesmo espaço, sem que isso possa<br />

significar uma síntese harmoniosa, pelo contrário, é o conflito característico da mentalida<strong>de</strong> melancólica barroca.<br />

17


principesca, ao contrário <strong>do</strong> teatro pastoral 4 e da comédia <strong>de</strong>stinada a camponeses<br />

e burgueses respectivamente, ela evi<strong>de</strong>ncia o la<strong>do</strong> grotesco da luta política com to<strong>do</strong><br />

o rol <strong>de</strong> catástrofe <strong>de</strong>scrito na poética <strong>de</strong> Opitz. Os autores se <strong>de</strong>bruçavam<br />

exaustivamente sobre os relatos historiográficos, matéria prima <strong>de</strong> sua criação<br />

dramática.<br />

Deixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> critérios estéticos ou estilísticos utiliza<strong>do</strong>s pelos críticos<br />

que nada viram <strong>de</strong> significativo na forma <strong>do</strong> drama barroco, como busca Benjamin<br />

(1984, p. 204) “<strong>de</strong>spertar a beleza a<strong>do</strong>rmecida na obra”, a riqueza escondida para<br />

além da aparência ilusória, mais exatamente, da trama grotesca que envolve a<br />

“majestosa” <strong>figura</strong> <strong>do</strong> soberano. Sua pesquisa sobre a relação da teoria <strong>do</strong> drama<br />

alemão seiscentista com a Poética aristotélica, conclui, citan<strong>do</strong> vários teóricos <strong>do</strong><br />

drama como Gryphius, Lessing, Trissino e Birken, pelas diferenças estruturais entre<br />

drama e tragédia: primeiramente que o drama é influencia<strong>do</strong> pelo classicismo<br />

renascentista holandês e pelo teatro jesuítico. A partir <strong>de</strong>sta característica <strong>do</strong> teatro<br />

barroco, ressalta a importância da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação na valoração da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

tempo, dispensan<strong>do</strong> a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lugar. Quanto à influência <strong>do</strong> teatro jesuítico, fica<br />

clara a discrepância relativa aos efeitos da tragédia <strong>de</strong> que fala Aristóteles: o terror e<br />

a pieda<strong>de</strong> provoca<strong>do</strong>s no especta<strong>do</strong>r pela morte <strong>do</strong> vilão e pela morte <strong>do</strong> herói<br />

respectivamente são substituí<strong>do</strong>s, primeiro pelo objetivo <strong>de</strong> glorificar a Deus, e<br />

segun<strong>do</strong> por fomentar a edificação <strong>do</strong>s semelhantes pelo fortalecimento da virtu<strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio sobre as paixões. Benjamin <strong>de</strong>scarta assim qualquer interpretação <strong>do</strong><br />

drama barroco baseada em psicologismos subjetivistas. Se a crítica consi<strong>de</strong>rou<br />

<strong>de</strong>preciativamente o drama barroco comparan<strong>do</strong>-o com a tragédia através <strong>do</strong> “Rei<br />

heróico”, ficou claro que esta con<strong>figura</strong>ção é inteiramente outra. 5 Na distinção entre<br />

4<br />

Cf. Panofsky, E., Significa<strong>do</strong> nas artes visuais, p.377. O teatro pastoral apresenta a natureza no palco como<br />

refúgio e o paraíso intemporal, bem diversa da natureza-<strong>de</strong>stino das catástrofes. É interessante conferir a análise<br />

<strong>de</strong> Panofsky sobre a obra “Et in arcadia ego”da pintura pastoral <strong>de</strong> Poussin. Nesta análise, Panofsky revela os<br />

traços barrocos da arte pastoral ao i<strong>de</strong>ntificar na palavra Ego a <strong>figura</strong> da morte.<br />

5<br />

( Cf. Aristóteles, 2005, p. 33). Aristóteles afirma: “ Às vezes, os sentimentos <strong>de</strong> temor e pena proce<strong>de</strong>m <strong>do</strong><br />

espetáculo; às vezes, também, <strong>do</strong> próprio arr<strong>anjo</strong> das ações, como é preferível e próprio <strong>de</strong> melhor poeta. É<br />

mister, com efeito, arranjar a fábula <strong>de</strong> maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrências<br />

sinta arrepios e compaixão em conseqüência <strong>do</strong>s fatos; é o que experimentaria quem ouvisse a estória <strong>de</strong> Édipo.<br />

Obter esse efeito por meio <strong>do</strong> espetáculo é menos artístico e requer apenas recursos técnicos.” Segun<strong>do</strong><br />

Aristóteles, a tragédia provoca a pieda<strong>de</strong> e o terror. Os críticos mo<strong>de</strong>rnos i<strong>de</strong>ntificaram tragédia e drama,<br />

enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que ambos provocam o mesmo sentimento <strong>de</strong> luto. É interpretação psicologista errônea, pois o<br />

drama barroco objetiva provocar no especta<strong>do</strong>r uma emoção <strong>de</strong> luto e o luto não consta na Poética <strong>de</strong> Aristóteles.<br />

18


o mun<strong>do</strong> clássico e o Barroco, Benjamin (1984, p. 102s) compara as paisagens<br />

representadas na pintura renascentista e na pintura barroca:<br />

Pois o clima espiritual <strong>do</strong>minante, por maior que fosse sua tendência a<br />

acentuar os momentos <strong>de</strong> êxtase, via neles menos uma trans<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, que um céu nubla<strong>do</strong> se esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> sobre a superfície <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Os pintores da Renascença sabiam manter o céu em sua altitu<strong>de</strong><br />

inacessível, ao passo que nos quadros barrocos a nuvem se move, <strong>de</strong><br />

forma sombria ou radiosa, em direção à terra. Contrastada com o Barroco, a<br />

Renascença não aparece como uma era incrédula <strong>de</strong> paganismo, mas<br />

como uma era profana <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> religiosa, enquanto o espírito<br />

hierárquico da Ida<strong>de</strong> Média, através da Contra-Reforma, impunha-se num<br />

mun<strong>do</strong> incapaz <strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> forma imediata, a um plano transcen<strong>de</strong>nte.<br />

A questão da espiritualida<strong>de</strong> presente no drama barroco alemão <strong>de</strong>corre <strong>de</strong><br />

seu parentesco com o drama religioso medieval, entendi<strong>do</strong> não tanto como cópia<br />

pura e simples, porém como inclusão <strong>de</strong> elementos <strong>do</strong> pensamento medieval que o<br />

distingue fundamentalmente <strong>do</strong> classicismo renascentista. O grandioso espetáculo<br />

medieval <strong>do</strong> mistério, no que este diz respeito à salvação, coincidia com a crônica da<br />

história universal, cuja consumação era o Juízo Final, mais próximo da “tragédia”<br />

que <strong>do</strong> “mistério”. Essa é a fonte <strong>do</strong> teatro barroco. A secularização<br />

(Sekularisierung) <strong>do</strong> teatro <strong>do</strong>s mistérios, ou seja, a representação das “ações<br />

principais e <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>”, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia o <strong>de</strong>sespero radical, pois nem a moralida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

herói-mártir nem a justiça <strong>do</strong> tirano louco são suficientes para aliviar a tensão<br />

<strong>de</strong>corrente da história da salvação. Daí o artifício bem característico <strong>do</strong> barroco <strong>de</strong><br />

dar um acabamento repleto <strong>de</strong> ornamentos à estrutura da ação dramática. Cabe ao<br />

crítico revelar a tensão que se escon<strong>de</strong> sob as camadas <strong>do</strong> ornamento.<br />

Secularização não significa aqui que a espiritualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sapareceu: o espírito<br />

religioso permaneceu <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> tanto no âmbito da Reforma, quanto da Contra-<br />

Reforma e, ao mesmo tempo a vonta<strong>de</strong> da época impôs uma solução profana. Nisso<br />

consiste o conflito: nem se submeter nem se revoltar. O homem barroco se viu<br />

preso, sem po<strong>de</strong>r se confrontar com a orto<strong>do</strong>xia cristã e ter <strong>de</strong> mudar totalmente a<br />

Não se trata <strong>de</strong> sentimentos da psicologia empírica, mas da <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> luto. Esta dramaturgia preten<strong>de</strong> a<br />

satisfação <strong>do</strong> luto, ou seja, é feita para enluta<strong>do</strong>s. São peças para serem vistas, a ostentação lhes é inerente. É a<br />

herança <strong>do</strong>s trionfi, procissões dramatizadas da Renascença. Po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r assim o caráter itinerante <strong>do</strong>s<br />

espetáculos teatrais <strong>do</strong> barroco: flexível, virtual, dialético, esse teatro não é o topos cósmico- e harmoniosogrego.<br />

Em palco móvel, ele representa a história e peregrina como ela. A tragédia, porém, se <strong>de</strong>senvolve na<br />

fixi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um tribunal e no fato único da revisão <strong>de</strong> um processo ratificada pela comunida<strong>de</strong>. No drama, a<br />

situação <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> conturba<strong>do</strong> é ostensivamente apresentada ao enluta<strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r. O drama é ostentação e<br />

luto, ou seja, história como dialética dilacerada.<br />

19


própria concepção <strong>de</strong> vida, sem po<strong>de</strong>r expor às claras essa mudança revolucionária.<br />

Assim a espiritualida<strong>de</strong> se transforma em imanência, ou melhor, a transcendência se<br />

trans<strong>figura</strong>, como diz Benjamin (1984, p. 120): “...céu nubla<strong>do</strong> se esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> sobre<br />

a superfície <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”.<br />

Como tantas vezes, Benjamin recorre às imagens plásticas da arte, para expor<br />

este conceito <strong>de</strong> imanência história-natureza, comparan<strong>do</strong> a representação da<br />

paisagem renascentista com a barroca. O céu da representação renascentista é<br />

límpi<strong>do</strong> e meridiano expressan<strong>do</strong> o inatingível <strong>de</strong> uma religiosida<strong>de</strong> livre conviven<strong>do</strong><br />

com o profano, enquanto que no barroco este céu paira com pesadas e sombrias<br />

nuvens sobre o mun<strong>do</strong>, numa clara representação da sensação <strong>de</strong> ser impossível<br />

ace<strong>de</strong>r a um plano transcen<strong>de</strong>ntal. Nessa imanência radical, o drama barroco<br />

aban<strong>do</strong>na <strong>de</strong> vez qualquer idéia <strong>de</strong> escatologia que possa ir além <strong>do</strong>s mistérios,<br />

centralizan<strong>do</strong> toda a ação na <strong>figura</strong> catastrófica e apoteótica <strong>do</strong> príncipe.<br />

Apresentan<strong>do</strong> a imanência inerente ao drama barroco, na sua tensão essencial<br />

entre a urgência <strong>de</strong> uma solução profana e a hegemônica orto<strong>do</strong>xia cristã, Benjamin<br />

revela como a era barroca compreendia a história. Essa imanência é que engendra<br />

a con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> príncipe como paradigma <strong>do</strong> melancólico.<br />

1.1. Príncipe, conflito, história e melancolia<br />

E há quem queira reinar<br />

ven<strong>do</strong> que há <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar<br />

no negro sonho da morte?<br />

Cal<strong>de</strong>rón <strong>de</strong> la Barca, A vida é sonho<br />

Diferentemente das teorias mo<strong>de</strong>rnas sobre o absolutismo elaboradas <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Hobbes até Locke, a teoria benjaminiana da soberania barroca é caracterizada pelo<br />

conflito, pela tensão e pela melancolia. O soberano barroco, cujo i<strong>de</strong>al é a<br />

Restauração, ou seja, a garantia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> próspera em to<strong>do</strong>s os campos<br />

da ativida<strong>de</strong> humana, das artes às ciências e às técnicas militares, é marca<strong>do</strong> pela<br />

tensão conflituosa entre a estabilida<strong>de</strong> social e a anarquia provocada por toda sorte<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m e subversão. A preocupação fundamental <strong>do</strong> príncipe se volta para a<br />

20


manutenção da or<strong>de</strong>m como condição essencial da produção artística, científica e<br />

técnica. A catástrofe passa a ser a antítese da estabilida<strong>de</strong>. É exatamente aí que se<br />

fundamenta, segun<strong>do</strong> Benjamin (1984, p. 89), a teoria <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção. “Quem<br />

reina já está <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> a exercer po<strong>de</strong>res ditatoriais, num esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

exceção, quan<strong>do</strong> este é provoca<strong>do</strong> por guerras, revoltas ou outras catástrofes.”<br />

É importante <strong>de</strong>ixar claro entretanto que os propósitos que fundamentam a<br />

ação política <strong>do</strong> príncipe partem <strong>do</strong> pensamento teológico-jurídico, expresso no<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transcendência. Este pensamento resulta da contestação <strong>de</strong> uma teoria<br />

teocrática medieval em favor <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r supremo <strong>do</strong> soberano, culminan<strong>do</strong> no esta<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> exceção como o direito natural <strong>do</strong> século XVII. Para se enten<strong>de</strong>r o esta<strong>do</strong><br />

conflituoso <strong>do</strong> homem barroco não se <strong>de</strong>ve esquecer o espírito religioso <strong>do</strong><br />

“cristianismo incontesta<strong>do</strong>” <strong>do</strong>minante neste século, que também é completamente<br />

diverso <strong>do</strong> racionalismo teológico iluminista <strong>do</strong> século XVIII. O homem que habita o<br />

século XVII se sente como parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> perecível, submeti<strong>do</strong> às leis <strong>do</strong> tempo<br />

que tu<strong>do</strong> corrói e é por isso que ele se apega às coisas terrenas para exaltá-las. Se<br />

não há escatologia no Barroco e ninguém escapa da imanência, existe uma<br />

permanente tensão entre o mun<strong>do</strong> e a transcendência, bem evi<strong>de</strong>nte nas<br />

representações pictóricas <strong>de</strong> Rubens, nos temas <strong>de</strong> glorificação, on<strong>de</strong> se misturam<br />

personagens divinos e terrestres. Assim o príncipe aparece diviniza<strong>do</strong> em seu po<strong>de</strong>r<br />

absoluto.<br />

Benjamin expõe claramente a con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> soberano – e, não se <strong>de</strong>ve<br />

esquecer, ele representa a história – como conflituosa, e portanto melancólica, ao<br />

apresentá-lo caracteriza<strong>do</strong> pela dualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> inteiramente bom e <strong>do</strong> inteiramente<br />

mau. O Barroco só concebe o soberano ou como inteiramente bom ou como<br />

inteiramente mau. São suas faces <strong>de</strong> Janus. Aqui se esclarece, através <strong>de</strong>ste<br />

exemplo, a afirmação benjaminiana <strong>de</strong> que a i<strong>de</strong>ia é caracterizada pela coexistência<br />

significativa <strong>do</strong>s contrastes, tornan<strong>do</strong> claro o quanto este méto<strong>do</strong> se distancia <strong>do</strong><br />

racionalismo iluminista. Longe <strong>do</strong> princípio da não-contradição <strong>do</strong>s antigos, a<br />

condição da soberania <strong>do</strong> monarca é marcada pelas manifestações para<strong>do</strong>xais, o<br />

que equivale dizer: conflituosas e melancólicas.<br />

21


A representação <strong>do</strong> príncipe como tirano é uma característica obrigatória<br />

nos palcos barrocos: era vista como condição necessária da soberania e por isso<br />

admirada, mesmo quan<strong>do</strong> os po<strong>de</strong>res ditatoriais estavam envolvi<strong>do</strong>s em toda sorte<br />

<strong>de</strong> crimes, como fratricídios, incestos ou infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. Benjamin (1984, p. 93)se<br />

refere a um texto <strong>de</strong> Gryphius sobre Hero<strong>de</strong>s para mostrar a que extremo chega a<br />

submissão <strong>do</strong> homem barroco à tirania <strong>do</strong> soberano:<br />

Os trabalhos <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Griphius, em latim – as epopéias <strong>de</strong> Hero<strong>de</strong>s -<br />

, mostram com clareza o que fascinava os homens <strong>do</strong> seu tempo: o<br />

soberano <strong>do</strong> século XVII, o mais alto <strong>do</strong>s seres cria<strong>do</strong>s, irrompen<strong>do</strong> no<br />

<strong>de</strong>lírio como um vulcão, <strong>de</strong>struin<strong>do</strong>-se e <strong>de</strong>struin<strong>do</strong> toda a sua corte.<br />

Assim se completa a con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> príncipe na complementarida<strong>de</strong>, ou<br />

nas fronteiras, <strong>do</strong> drama <strong>do</strong> tirano e o terror e <strong>do</strong> drama <strong>do</strong> mártir e a pieda<strong>de</strong>, como<br />

conseqüência <strong>de</strong> <strong>do</strong>is polos extremos: a dignida<strong>de</strong> para governar que Deus lhe<br />

outorgou e a pequenez <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> simples mortal. Esse <strong>de</strong>lírio <strong>do</strong><br />

soberano simboliza a história, cujo <strong>de</strong>sfecho inexorável é a catástrofe. Qual é o<br />

elemento barroco <strong>de</strong>ste teatro? - No contraste entre dignida<strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r exige e<br />

miserável <strong>de</strong>gradação. Das contradições da con<strong>figura</strong>ção barroca <strong>do</strong> príncipe que<br />

representa a história – e a pré-história da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> –, vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> púrpura, com<br />

cetro e coroa, pratican<strong>do</strong> os atos mais <strong>de</strong>genera<strong>do</strong>s, surgem a tristeza, o <strong>de</strong>lírio, a<br />

loucura e, enfim, a melancolia.<br />

Este cenário <strong>de</strong> dispersão e <strong>de</strong>struição que o drama barroco representa está<br />

estampa<strong>do</strong> na Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, on<strong>de</strong> a <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> dirige o olhar para um<br />

ponto distante, perdi<strong>do</strong> entre o amontoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> objetos sem uso, que seriam úteis<br />

para a ciência e a técnica. É a melancolia que surge da <strong>figura</strong> principal <strong>do</strong> drama:<br />

aquele que garante o bem estar da comunida<strong>de</strong> mas reina absoluto no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

exceção, é bom e pie<strong>do</strong>so e ao mesmo tempo mau e tirano. Que outro olhar seria<br />

possível senão esse da <strong>de</strong>scrença e da <strong>de</strong>cepção? O que resta ao príncipe senão a<br />

sensação <strong>do</strong> vazio que nada vislumbra além da catástrofe? - No mais profun<strong>do</strong><br />

22


tédio, envolvi<strong>do</strong> que está no total perecimento das coisas terrenas, ele se vê diante<br />

da missão divina para governar. 6<br />

Benjamin observa ainda que, segun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina da soberania caracterizada<br />

pela distância que existe entre o po<strong>de</strong>r e a efetiva capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> governar <strong>do</strong><br />

príncipe, surge a in<strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> tirano. Para <strong>de</strong>monstrar esse traço <strong>do</strong> teatro barroco,<br />

faz a comparação com a pintura maneirista <strong>de</strong> El Greco, on<strong>de</strong> as <strong>figura</strong>s humanas<br />

alongadas são representadas com as cabeças pequenas e através <strong>de</strong> cores fortes.<br />

Assim é o tirano: age por impulsos e não pela pon<strong>de</strong>rada reflexão; suas or<strong>de</strong>ns<br />

nunca são dadas <strong>de</strong> maneira categórica e <strong>de</strong>finitiva. Titubeante, o tirano vacila, sem<br />

saber o que <strong>de</strong>ve ou não <strong>de</strong>ve ser executa<strong>do</strong> e sua hesitação parece transparecer o<br />

próprio sentimento <strong>de</strong> ser arbitrário.<br />

Se o tirano tem um fim catastrófico, disso não <strong>de</strong>riva a satisfação geral <strong>do</strong>s<br />

súditos, como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um julgamento moralizante; pelo contrário, o drama <strong>do</strong><br />

tirano se transforma em drama <strong>de</strong> martírio. O déspota, na sua função <strong>de</strong> governar a<br />

humanida<strong>de</strong> histórica, tem a a<strong>de</strong>são incontestada <strong>do</strong>s súditos e sua <strong>de</strong>struição e<br />

morte significa um julgamento que recai sobre eles também. O monarca que sofre, é<br />

generoso a ponto <strong>de</strong> morrer pela humanida<strong>de</strong>: essa é a tônica <strong>do</strong> teatro barroco<br />

como drama <strong>de</strong> martírio. Aqui se revela seu estoicismo, o pensamento mais anti-<br />

histórico da filosofia. Benjamin ressalta que não existe uma divisão <strong>de</strong>limitan<strong>do</strong><br />

claramente drama <strong>de</strong> tirano e drama <strong>de</strong> martírio: os <strong>do</strong>is se mesclam. Esclarece<br />

ainda que o martírio se dá neste mun<strong>do</strong>, ou seja, nas lutas em <strong>de</strong>fesa da coroa ou<br />

por questões religiosas. O martírio em si não tem nenhum senti<strong>do</strong> religioso.<br />

Benjamin (1984, p. 97) aponta os objetivos das ações <strong>do</strong> soberano:<br />

A função <strong>do</strong> tirano é a restauração da or<strong>de</strong>m, durante o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção:<br />

uma ditadura cuja vocação utópica será sempre a <strong>de</strong> substituir as incertezas<br />

6<br />

Em 1917, Freud publica o estu<strong>do</strong> Luto e melancolia, termos que correspon<strong>de</strong>riam ao Trauer e Melancolie <strong>de</strong><br />

Benjamin. Para Freud, o luto é reação natural à perda <strong>de</strong> um ente queri<strong>do</strong>, uma pessoa ou algo que o represente,<br />

como um país, um i<strong>de</strong>al, etc. Se o luto <strong>de</strong>saparece com o tempo, a melancolia é algo mais radical: é um esta<strong>do</strong><br />

patológico, on<strong>de</strong> a pessoa se sente culpada pela perda e, sem a auto-estima, se mostra como alguém <strong>de</strong>sprezível.<br />

Com a perda da libi<strong>do</strong>, o melancólico tem a aparência <strong>de</strong> apático e preguiçoso. Evi<strong>de</strong>ntemente que as conclusões<br />

<strong>de</strong> Freud não se aplicam diretamente à categoria <strong>de</strong> melancolia <strong>de</strong> Benjamin. Essa apatia e inativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

fala Freud po<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>r, em Benjamin, à acedia que leva à empatia com os vence<strong>do</strong>res. ( Cf. Freud, S.<br />

Luto e melancolia. Novos estu<strong>do</strong>s Cebrap, 1992, p.128ss ).<br />

23


da história pelas leis <strong>de</strong> ferro da natureza. Mas a técnica estóica também dá<br />

forças para a estabilização interna equivalente: o controle das emoções<br />

num esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção <strong>de</strong>ntro da alma.<br />

A crítica <strong>do</strong> drama barroco alemão que perdurou por um século e meio, não<br />

levou em consi<strong>de</strong>ração a complementarida<strong>de</strong> tirano-mártir e mártir-tirano, reduzin<strong>do</strong>-<br />

o simplesmente a uma tragédia <strong>de</strong> martírio. Esse julgamento partia<br />

fundamentalmente da análise <strong>do</strong>s efeitos psicológicos sobre os especta<strong>do</strong>res,<br />

concluin<strong>do</strong> que o que faltava neste teatro era o conflito e culpabilida<strong>de</strong> trágica<br />

capazes <strong>de</strong> provocar o suspense. O mérito <strong>de</strong> Benjamin está no fato <strong>de</strong> ter lança<strong>do</strong><br />

um olhar totalmente diverso sobre o Barroco através <strong>de</strong> uma teoria <strong>do</strong> conhecimento<br />

e <strong>de</strong> um méto<strong>do</strong> próprios, bem distintos da tradição filosófica. Ele <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a<br />

comparação com a teoria da poética aristotélica, a rejeição pelos enre<strong>do</strong>s<br />

grosseiros, para <strong>de</strong>scobrir nesta forma a emergência da con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia<br />

caracterizada pela coexistência <strong>do</strong>s extremos. Nisto consiste a história filosófica: o<br />

príncipe é tirano e é mártir. Reduzí-lo simplesmente a mártir seria ignorar toda a<br />

dinâmica <strong>do</strong> drama que evi<strong>de</strong>ncia o caráter tirânico <strong>do</strong> príncipe. Este caráter é<br />

representa<strong>do</strong> no palco <strong>de</strong> forma natural sem a preocupação moralizante <strong>de</strong> mostrar<br />

o la<strong>do</strong> perverso das práticas <strong>de</strong>spóticas, ou seja, já faz parte das incumbências<br />

políticas <strong>do</strong> soberano. O enre<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste drama se <strong>de</strong>senvolve sob luz intensa e cores<br />

fortes, sem a mínima necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicar as motivações <strong>de</strong> seus atos como<br />

crimes infames.<br />

Para tal avaliação crítica que leva em consi<strong>de</strong>ração a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> efeito<br />

psicológico <strong>do</strong> suspense nos especta<strong>do</strong>res, falta ao drama <strong>de</strong> martírio o conflito<br />

interno próprio da culpabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mártir. Realmente, no drama barroco não existe<br />

esta necessida<strong>de</strong> característica da tragédia clássica: os personagens não tem a<br />

mínima preocupação <strong>de</strong> expor os motivos <strong>de</strong> suas ações. No enre<strong>do</strong> <strong>do</strong> drama não<br />

há lugar para explicações <strong>do</strong>s atos tirânicos.<br />

Benjamin enfoca as várias relações que <strong>de</strong>finem historicamente o drama<br />

barroco a fim <strong>de</strong> esclarecer sua especificida<strong>de</strong>, o que significa refutar as críticas que<br />

perduraram por séculos. Esta contextualização culmina com a abordagem da<br />

categoria da imanência, essencial para a compreensão da con<strong>figura</strong>ção central <strong>do</strong><br />

24


drama: o príncipe melancólico. A primeira <strong>de</strong>stas relações é o parentesco <strong>do</strong> drama<br />

barroco com o drama religioso da Ida<strong>de</strong> Média e <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>do</strong> sob o ponto <strong>de</strong><br />

vista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual medieval: a concepção da história da humanida<strong>de</strong> como<br />

tragédia. Com efeito, os cronistas medievais viam a história universal como uma<br />

gran<strong>de</strong> tragédia e o apocalipse como um fim trágico. Crônica como espetáculo<br />

teatral significa: a historiografia é <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> drama. Nisto consiste a forma <strong>do</strong><br />

barroco. Benjamin, entretanto, ressalta um <strong>do</strong>s cruzamentos <strong>de</strong>ssa relação: se na<br />

Ida<strong>de</strong> Média se tratava da história universal e sua re<strong>de</strong>nção, no século XVII não<br />

havia a preocupação com o tema da salvação. Dividi<strong>do</strong> em múltiplos reinos, o<br />

mun<strong>do</strong> barroco se volta para o drama cristão seculariza<strong>do</strong>, estigmatiza<strong>do</strong> por um<br />

<strong>de</strong>sespero radical, sem apocalipse, sem escatologia, sem perspectiva <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção.<br />

Como ponto fundamental da caracterização <strong>do</strong> drama barroco, Benjamin<br />

introduz o conceito <strong>de</strong> imanência <strong>de</strong>ntro da “hegemonia cristã incontestada”, <strong>do</strong><br />

Deus absconso, que o homem barroco <strong>de</strong>sconhece, uma vez que ignora a<br />

provi<strong>de</strong>ncia divina. A imanência significa afastar-se <strong>do</strong> divino, entregar-se ao <strong>de</strong>stino<br />

e, ao mesmo tempo ser observa<strong>do</strong> por um Deus escondi<strong>do</strong>. Secularizar, profanar o<br />

mun<strong>do</strong> espiritual equivale dizer: entregar-se ao <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> um conflito insolúvel.<br />

Não existe explicação possível para as contradições da con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> drama: nem<br />

a aceitação estóica <strong>do</strong> martírio nem a exigência da justiça como causa da loucura <strong>do</strong><br />

tirano. A verda<strong>de</strong>ira causa das forças conflitantes <strong>do</strong> barroco está escondida sob a<br />

superfície saturada <strong>de</strong> ricos ornamentos. Eles escon<strong>de</strong>m o núcleo das tensões<br />

dramáticas: ter <strong>de</strong> encontrar uma solução profana sem abdicar das convicções<br />

espirituais <strong>do</strong> objetivo da salvação presente no drama medieval <strong>do</strong>s mistérios.<br />

Na contextualização <strong>do</strong> barroco, faz-se necessário consi<strong>de</strong>rar três momentos<br />

históricos e suas características próprias: a Renascença, a Reforma e a Contra-<br />

Reforma. O Barroco passa a ter o mesmo aspecto unifica<strong>do</strong> na Europa a partir da<br />

opção da Contra-Reforma pela secularização <strong>do</strong> drama <strong>do</strong>s mistérios. Essa<br />

<strong>de</strong>finição pelo profano, a partir das exigências <strong>do</strong>utrinais cristãs, se distingue <strong>do</strong><br />

pensamento renascentista que opta pelo profano com total liberda<strong>de</strong> religiosa.<br />

Como conciliar a solução mundana com a orto<strong>do</strong>xia religiosa? Parece um conflito<br />

25


insolúvel, <strong>de</strong> uma imanência radical, on<strong>de</strong> a transcendência não passa <strong>de</strong> um céu<br />

ameaça<strong>do</strong>r pairan<strong>do</strong> sobre o mun<strong>do</strong>.<br />

É sobre esta postura imanentista que Benjamin (1984, p. 103) apresenta a<br />

concepção da filosofia da história <strong>do</strong> Barroco:<br />

Sua filosofia da história tinha como i<strong>de</strong>al o apogeu, uma ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro da<br />

paz e das artes, instaurada e garantida in aeternum pela espada da Igreja e<br />

estranha a qualquer dimensão apocalíptica. A influência <strong>de</strong>sta concepção<br />

se esten<strong>de</strong> à dramaturgia sobrevivente.<br />

É certo que Benjamin não se refere somente ao espírito da Contra-Reforma ou,<br />

principalmente, ao empreendimento jesuítico <strong>de</strong> impor a nova era <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>,<br />

através <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político da Igreja, mas ao espírito barroco europeu como um to<strong>do</strong>.<br />

A filosofia da história da Restauração <strong>do</strong>mina assim o drama profano que se<br />

distanciou <strong>do</strong>s temas da re<strong>de</strong>nção <strong>do</strong> drama <strong>do</strong>s mistérios, no afã da evangelização.<br />

Dentro <strong>de</strong>ste cenário religioso, político e filosófico europeu, o drama barroco<br />

alemão se restringe aos enre<strong>do</strong>s <strong>de</strong> total imanência, cujos temas giram em torno da<br />

con<strong>figura</strong>ção principesca, em tu<strong>do</strong> o que nela existe <strong>de</strong> extravagante, exagera<strong>do</strong> e<br />

até grotesco. Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma solução profana para o drama <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sem<br />

perspectiva escatológica: é nesta confluência para<strong>do</strong>xal <strong>de</strong> conflitos que o drama<br />

barroco alemão volta os olhos para a <strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> príncipe, poço <strong>de</strong> conflitos,<br />

<strong>de</strong>screven<strong>do</strong>-o como representação da própria história, e por isso mesmo, como<br />

paradigma <strong>do</strong> melancólico. O drama profano, influencia<strong>do</strong> pela filosofia da história<br />

da Restauração, faz da realida<strong>de</strong> mundana da corte seu principal enre<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> o<br />

príncipe encarna a melancólica condição humana. 7<br />

A pintura barroca, <strong>de</strong> Rembrandt a Velázquez, testemunha esta visão da<br />

condição <strong>do</strong> ser humano, quan<strong>do</strong> representa <strong>figura</strong>s envelhecidas, em cujos corpos<br />

7<br />

Cf. Maravall, J.A., p. 197. Maravall, em sua pesquisa sobre o barroco espanhol, ressalta os conceitos<br />

fundamentais <strong>do</strong> espírito imanentista característico <strong>do</strong> século XVII, mostran<strong>do</strong> como, para o homem barroco,<br />

tu<strong>do</strong> passa pelo mun<strong>do</strong> da experiência empírica, mesmo quan<strong>do</strong> este homem fala <strong>de</strong> transcendência. É<br />

importante esclarecer que imanência não significa negação ou redução <strong>do</strong> campo da transcendência, que, pelo<br />

contrário, expan<strong>de</strong>-se, sempre trata<strong>do</strong>s com os meios <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da experiência. O homem barroco é um homem<br />

preso à estrutura mundana da vida.<br />

26


está evi<strong>de</strong>nte a passagem <strong>do</strong> tempo. É a própria experiência individual <strong>do</strong> artista<br />

diante <strong>de</strong> um objeto ou <strong>de</strong> uma pessoa, ou seja, diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> concreto e longe<br />

<strong>de</strong> um objetivo universalizante. Os barrocos enten<strong>de</strong>m a ciência como algo<br />

fantasmagórico que consiste na contradição da evidência <strong>do</strong>s fatos singulares que<br />

se repetem e o que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste singular como algo generaliza<strong>do</strong>.<br />

A primeira e mais importante consequência <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong>sta mentalida<strong>de</strong> é a<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> movimento, como princípio fundamental <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e principalmente <strong>do</strong><br />

homem. Tal relevância <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> cambiante em constante transformação se<br />

<strong>de</strong>lineia a partir da crise social <strong>do</strong> final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> renascentista, cuja postura<br />

maneirista já contém muitos elementos barrocos; basta lembrar <strong>Dürer</strong> e El Greco.<br />

Sem as categorias <strong>de</strong> movimento e mudança, é impossível compreen<strong>de</strong>r o senti<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> barroco. Nisto consiste a cultura barroca: expressar a radical condição <strong>de</strong><br />

transitorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> em crise, através da força <strong>de</strong> uma linguagem dinâmica<br />

e transitiva. Tu<strong>do</strong> é movimento, tu<strong>do</strong> se precipita no drama da realida<strong>de</strong> em trânsito.<br />

Para o homem barroco, o peregrino <strong>do</strong> ser, mutante e movediço, o perene, o<br />

imutável ou o perpétuo são vocábulos que não lhe dizem nada.<br />

A mudança, tema <strong>do</strong> barroco por excelência, é lei da natureza, <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> qual<br />

não escapa nem o homem nem o universo. O que hoje é um edifício imponente,<br />

amanhã se converterá em ruínas. Ou ainda: o que aparece como novo já traz em si<br />

a própria <strong>de</strong>struição. O barroco significou uma ameaça à tradição <strong>do</strong> pensamento<br />

aristotélico-escolástico, firmemente funda<strong>do</strong> na imutabilida<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>m ontológica e<br />

no princípio da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O homem barroco exterioriza em imagens o sentimento<br />

<strong>de</strong> viver em um mun<strong>do</strong> que se <strong>de</strong>sloca, se levanta e se amontoa, se altera entre a<br />

restauração e a caducida<strong>de</strong>. São recorrentes na pintura barroca as representações<br />

<strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> mudança e fragilida<strong>de</strong> como as nuvens, a água, o arco-íris,<br />

sinalizan<strong>do</strong> o confronto dramático com aquilo que parece firme. Os moralistas<br />

aproveitavam-se <strong>de</strong>sse sentimento <strong>de</strong> insegurança para alertar sobre as incertezas<br />

<strong>de</strong> um fim <strong>do</strong>s tempos, principalmente para a incipiente mentalida<strong>de</strong> burguesa.<br />

Benjamin (1984, p. 77) observa o fundamento <strong>de</strong>sta tendência barroca: “Como o<br />

27


expressionismo, o Barroco é menos a era <strong>de</strong> um fazer artístico, que <strong>de</strong> um querer<br />

artístico. É o que sempre ocorre nas chamadas épocas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência.”<br />

Benjamin compreen<strong>de</strong> o drama barroco como forma que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

cada obra individual, <strong>de</strong>termina seu valor próprio, sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer às<br />

comparações com a tragédia clássica. Esta forma, e somente ela, é capaz da<br />

vonta<strong>de</strong> artística, pois ela nasce <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um cenário <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência e todas as<br />

obras individuais, não importa se artisticamente pobres ou perfeitas, têm o mesmo<br />

valor enquanto i<strong>de</strong>ia. Tu<strong>do</strong> o que se po<strong>de</strong>ria falar <strong>do</strong> estilo linguístico, grotesco ou<br />

grosseiro, só po<strong>de</strong> ser feito a partir <strong>do</strong> momento histórico <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, pois o drama<br />

barroco está cola<strong>do</strong> neste momento histórico e, como ele tem um estilo lingüístico<br />

violento. Ele <strong>de</strong>ixa claro que o drama barroco alemão tem essa especificida<strong>de</strong>: <strong>de</strong><br />

uma forma autônoma e, enquanto i<strong>de</strong>ia, está inseri<strong>do</strong> em um tempo histórico.<br />

Benjamin (1984, p. 86) afirma que o drama tem relevância enquanto i<strong>de</strong>ia<br />

caracterizada pela coexistência significativa <strong>de</strong> todas as obras individuais: Seu<br />

conteú<strong>do</strong>, seu objeto mais autêntico, é a própria vida histórica, como aquela época a<br />

concebia.”<br />

O príncipe, <strong>figura</strong>ção central <strong>do</strong> drama, é o representante da história e se<br />

mostra com to<strong>do</strong>s os vícios e as virtu<strong>de</strong>s das ações políticas. Enfim, o objeto <strong>do</strong><br />

drama é a história e não o heroísmo mítico. Aqui o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> filosofia da história<br />

compreen<strong>de</strong> a tensão entre história e natureza e entre imanência e transcendência.<br />

Benjamin nota que existe uma relação <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> entre os enre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> drama e<br />

o processo histórico, ou seja, o homem barroco via nas encenações sua própria<br />

história.<br />

É o tempo mo<strong>de</strong>rno da ciência e <strong>do</strong> conhecimento acumula<strong>do</strong> nas bibliotecas.<br />

Um jogo conflitante <strong>de</strong> elementos complementares se instala entre a caducida<strong>de</strong> e a<br />

renovação: transformar em novo o que já é caduco. Os mitos <strong>de</strong> Circe e <strong>de</strong> Proteu,<br />

<strong>figura</strong>s multiformes, são temas que atraem o mutável e variável homem barroco.<br />

Assim se forma a mentalida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna a partir da confusa postura barroca fundada<br />

na imanência, isto é, na prisão ao mun<strong>do</strong> empírico mutante, e na hegemonia cristã<br />

entendida como o Deus absconso.<br />

28


Além da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> movimento que engendrou tantos conceitos barrocos, há a<br />

obsessão pelo tempo, principalmente na tentativa <strong>de</strong> medí-lo, como forma <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>miná-lo. A temporalida<strong>de</strong> é elemento constitutivo da realida<strong>de</strong>, visto que esta<br />

realida<strong>de</strong> é um processo. O tempo faz e refaz, <strong>de</strong>compõe e muda. O tempo,<br />

entendi<strong>do</strong> como o passar, o mover-se é o único que permanece: nele as coisas se<br />

fazem e <strong>de</strong>saparecem. O homem é flui<strong>de</strong>z contínua na realida<strong>de</strong> que passa. O que<br />

permanece é o ser <strong>de</strong> sua flui<strong>de</strong>z, isto é, o tempo. A obsessão pelo tempo é um<br />

tema presente no drama barroco. Para o homem barroco interessa revelar a<br />

estrutura que fundamenta o fluir: sua fugacida<strong>de</strong>, ou seja, a interminável substituição<br />

das coisas que vão se transforman<strong>do</strong> em ruínas. Benjamin (1984, p. 199) mostra<br />

que a história-natureza é o verda<strong>de</strong>iro enre<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste teatro: “Quan<strong>do</strong>, com o drama<br />

barroco, a história penetra no palco, ela o faz enquanto escrita. A palavra história<br />

está gravada, com os caracteres da transitorieda<strong>de</strong>, no rosto da natureza”.<br />

Benjamin trata o tema da ruína no drama barroco como a fisionomia alegórica<br />

da natureza-história: o conceito <strong>de</strong> história está vincula<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong> o que a natureza<br />

tem <strong>de</strong> transitório. A ruína é o cenário <strong>de</strong>ste drama, on<strong>de</strong> história é um processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>clínio. A esta realida<strong>de</strong> das coisas como ruína, a mentalida<strong>de</strong> barroca <strong>de</strong>senvolve<br />

o pensamento através da alegoria <strong>de</strong> escombros <strong>de</strong> uma antiguida<strong>de</strong> clássica. Note-<br />

se que a representação renascentista <strong>do</strong> nascimento <strong>de</strong> Cristo – impregnada <strong>do</strong><br />

i<strong>de</strong>alismo clássico – tinha como cenário as ruínas como reminiscência da<br />

antiguida<strong>de</strong>, diferente da representação medieval cujo cenário era a manje<strong>do</strong>ura. Na<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> barroca, conclui Benjamin (1984, p. 200), este cenário representa a<br />

transitorieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo. “O que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o<br />

estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca.” O barroco constrói seu<br />

edifício a partir <strong>do</strong> que restou <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> clássico: o novo é a mistura <strong>de</strong>sses<br />

elementos remanescentes. Não há trans<strong>figura</strong>ção da natureza como na era<br />

renascentista. O drama trabalha com as coisas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes da história. Assim, ao<br />

tratar <strong>do</strong> problema da fragmentação da linguagem, Benjamin se refere a uma<br />

passagem teatral <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>rón em que Mariamne, mulher <strong>de</strong> Hero<strong>de</strong>s, encontra<br />

fragmentos <strong>de</strong> uma carta cujo conteú<strong>do</strong> era a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> matar a esposa, caso ele<br />

29


morresse. Tal sentença <strong>de</strong> morte iria salvar a honra manchada pela suposta traição<br />

<strong>de</strong>la. Nos fragmentos ela lê: morte, honra, Mariamne, secretamente, dignida<strong>de</strong>,<br />

or<strong>de</strong>na, ambição, morro. Em cada fragmento, em cada palavra está uma expressão<br />

muito intensa. Desta fragmentação, <strong>de</strong>stes resíduos é que surge a alegoria barroca,<br />

como esclarece Benjamin (1984, p. 201):<br />

Para eles, a natureza é o eternamente efêmero, e só nesse efêmero o olhar<br />

saturnino daquelas gerações reconhecia a história. Nos monumentos<br />

<strong>de</strong>ssas gerações, as ruínas, estão aloja<strong>do</strong>s os animais <strong>de</strong> Saturno, segun<strong>do</strong><br />

Agrippa Von Nettesheim. Com o <strong>de</strong>clínio, e somente com ele, o<br />

acontecimento histórico diminui e entra no teatro. A quintessência <strong>de</strong>ssas<br />

coisas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes é o oposto extremo <strong>do</strong> conceito renascentista da<br />

natureza trans<strong>figura</strong>da.<br />

Natureza, história e o olhar melancólico: estes são os elementos barrocos. O<br />

olhar melancólico enten<strong>de</strong> a história como o eternamente efêmero, transitório, on<strong>de</strong><br />

um majestoso passa<strong>do</strong> jaz em ruínas, constituin<strong>do</strong> a matéria prima para a arte<br />

dramática, ou melhor, para a arte como um to<strong>do</strong>. Benjamin, no texto póstumo Sobre<br />

o conceito da história, se refere ao melancólico <strong>anjo</strong> da história que volta o olhar<br />

para o passa<strong>do</strong> e só consegue ver catástrofes que acumulam montanhas <strong>de</strong> ruínas.<br />

Aqui é o progresso que está em relação direta com a natureza trans<strong>figura</strong>da<br />

renascentista e o extremo oposto <strong>de</strong> ambos não passa <strong>de</strong> ruínas.<br />

Introduz-se aqui o conceito <strong>de</strong> fortuna, a partir da noção <strong>de</strong> tempo como o<br />

passar, o alterar, o mover-se. Fortuna, que para os antigos era o <strong>de</strong>stino e para os<br />

medievais a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m permitida pela providência divina, significa para o homem<br />

barroco a marcha das coisas <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong>, fora <strong>do</strong> esquema racional: um acaso que<br />

o homem sagaz po<strong>de</strong> enfrentar com estratégia visan<strong>do</strong> o sucesso. A fortuna se dá<br />

ao acaso, que é o mo<strong>do</strong> como tu<strong>do</strong> aparece. O ser temporal e cambiante das coisas<br />

fornece leis à natureza e se mostra ao acaso. Diante disto o homem <strong>de</strong>ve agir com<br />

sabe<strong>do</strong>ria para contar com o mo<strong>do</strong> fugaz <strong>de</strong> a realida<strong>de</strong> se manifestar.<br />

A fortuna vai se resolver num jogo, cujo <strong>de</strong>sfecho tem muita probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ser a catástrofe, pois ela, como tu<strong>do</strong> que é barroco, pertence ao plano <strong>do</strong><br />

conflituoso: conflito entre vencer e ser <strong>de</strong>rrota<strong>do</strong>, estar por cima e estar por baixo,<br />

30


lucrar e per<strong>de</strong>r. A Europa <strong>do</strong> século XVII joga em to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> humana: na<br />

política, na economia, na arte. Testemunham esta realida<strong>de</strong> as sangrentas guerras<br />

entre príncipes, as especulações financeiras, o jogo pelo lucro <strong>do</strong> capitalismo<br />

mercantil e a técnica <strong>do</strong> trompe-l’oeil das artes visuais.<br />

A compreensão <strong>de</strong>ste cenário complexo da cultura barroca esclarece o<br />

senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> título da obra <strong>de</strong> Walter Benjamin, on<strong>de</strong> drama barroco é tradução <strong>de</strong><br />

Trauespiel, literalmente jogo <strong>do</strong> luto. O tema <strong>do</strong> jogo no drama barroco é introduzi<strong>do</strong><br />

quan<strong>do</strong> se faz a distinção entre o drama alemão e o drama espanhol <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>rón <strong>de</strong><br />

la Barca. Ambos renunciam ao esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Graça – próprio <strong>do</strong> espírito medieval – e<br />

regressam ao esta<strong>do</strong> original <strong>de</strong> Criação, uma vez constatada a ausência total da<br />

escatologia, como ficou exposto na abordagem <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> imanência.<br />

Se o drama alemão mergulha no abismo da <strong>de</strong>sesperança, o drama espanhol<br />

– e a isso se <strong>de</strong>ve sua superiorida<strong>de</strong> – consegue criar artifícios para resolver este<br />

conflito entre a catástrofe inevitável e uma possível re<strong>de</strong>nção. Assegurar-se <strong>de</strong><br />

alguma forma <strong>de</strong> transcendência passou a ser para Cal<strong>de</strong>rón o meio para a solução<br />

<strong>do</strong> problema. Mas <strong>de</strong> que maneira, se a opção pelo esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Criação, isto é, opção<br />

pela imanência exclui qualquer trans<strong>figura</strong>ção na transcendência? Cal<strong>de</strong>rón dá a<br />

resposta: através <strong>do</strong> jogo. Jogo, <strong>de</strong>svio ou sonho, representa<strong>do</strong>s nas encenações<br />

pelos espelhos, cristais e fantoches, artifícios bem claros na obra A vida é sonho,<br />

cujo objetivo é incluir indiretamente a transcendência. Pelo sonho, a realida<strong>de</strong> se<br />

redime, ou melhor, a vida <strong>de</strong>sperta tem a sua garantia. Benjamin conclui: Cal<strong>de</strong>rón<br />

consegue harmonizar o jogo e o luto. Nesse jogo, o catolicismo espanhol se impõe<br />

na solução <strong>do</strong> conflito, quan<strong>do</strong> Segismun<strong>do</strong>, no final <strong>de</strong> A vida é sonho. Cal<strong>de</strong>rón<br />

(2008, p. 91) escreve:<br />

lustre corte da Polônia, que és testemunha <strong>de</strong> fatos tão surpreen<strong>de</strong>ntes,<br />

escuta o que <strong>de</strong>termina o teu príncipe! Deus escreveu tu<strong>do</strong> o que o céu<br />

<strong>de</strong>termina e que, cifra<strong>do</strong> nos espaços azuis, nunca engana ou mente.<br />

Engana e mente, sim, quem <strong>de</strong>cifrar as <strong>de</strong>terminações <strong>do</strong> céu para usar em<br />

seu benefício.<br />

31


O sonho que paira como um céu azul sobre a realida<strong>de</strong> – e com ela se<br />

confun<strong>de</strong> – <strong>de</strong>ixa transparecer a presença <strong>de</strong> Deus e assim o homem barroco po<strong>de</strong><br />

se assegurar da transcendência e resolver seus conflitos nos enigmas <strong>de</strong>ste céu,<br />

graças ao príncipe, arauto <strong>de</strong>ssa verda<strong>de</strong>. Mas não se <strong>de</strong>ve esquecer que essa<br />

transcendência é a última instância da alegoria, em outras palavras, tu<strong>do</strong> não vai<br />

além <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> alegorista e portanto <strong>do</strong> âmbito da subjetivida<strong>de</strong>. A<br />

transcendência, sentenciada pelo príncipe, é ilusória e não ultrapassa os muros da<br />

imanência: fantasmagoria, ilusão, sonho e nada mais.<br />

Benjamin, ao analisar a gravura Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, resgata a simbologia<br />

da visão renascentista, expressa nos mais varia<strong>do</strong>s objetos espalha<strong>do</strong>s diante da<br />

<strong>figura</strong> <strong>alada</strong>. Entre esses objetos, jaz um cão que <strong>do</strong>rme. Como tu<strong>do</strong> que representa<br />

o esta<strong>do</strong> melancólico se baseia na imponente dialética <strong>do</strong>s extremos, o cão<br />

simboliza a falta <strong>de</strong> alegria <strong>do</strong> raivoso e, por outro la<strong>do</strong>, o faro <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r. E<br />

mais: o cão <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> significa os sonhos, bons e maus. O melancólico sonha um<br />

sonho que atinge o âmago das coisas. Disso <strong>de</strong>corre sua sabe<strong>do</strong>ria: <strong>do</strong> olhar<br />

volta<strong>do</strong> para a terra, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> brotam as sementes. Sonho, meditação, contemplação<br />

são as características <strong>do</strong> príncipe melancólico, as únicas capazes <strong>de</strong> frutificar a<br />

sabe<strong>do</strong>ria que se sustenta em raízes profundas. Benjamin (1984, p. 175) como o<br />

drama <strong>de</strong>screve essas <strong>figura</strong>ções: “ Esses sonhos comuns aos príncipes e aos<br />

mártires, são bem conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> drama barroco.”<br />

O príncipe barroco sonha e o faz por ser um melancólico. Sua melancolia lhe<br />

possibilita atingir o âmago das coisas, escondi<strong>do</strong> nas profun<strong>de</strong>zas férteis da terra, ou<br />

seja, sonhar a natureza como refúgio paradisíaco, como o fazia o drama pastoral. O<br />

sonho <strong>de</strong> Segismun<strong>do</strong> lhe possibilitou a sabe<strong>do</strong>ria, asseguran<strong>do</strong>-lhe a<br />

transcendência e, ao mesmo tempo, a solução <strong>do</strong> conflito radical da existência<br />

humana. Nisto consiste a perfeição da arte dramática <strong>de</strong> Cal<strong>de</strong>rón: por meio <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>svios, como num jogo <strong>de</strong> espelhos e cristais, po<strong>de</strong>r vislumbrar a transcendência<br />

na solução profana <strong>do</strong>s conflitos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, só possível no sonho <strong>do</strong> príncipe<br />

melancólico.<br />

32


1.2. O soberano, paradigma <strong>do</strong> melancólico<br />

No início <strong>do</strong> capítulo III <strong>de</strong> Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão, Benjamin<br />

<strong>de</strong>monstra como o luto é parte constituinte <strong>do</strong> drama barroco, entendi<strong>do</strong> como jogo<br />

<strong>do</strong> luto (Trauerspiel). Ele parte da contextualização <strong>de</strong> cunho religioso <strong>do</strong> drama<br />

alemão, diferencian<strong>do</strong>-o <strong>do</strong> drama <strong>do</strong> resto da Europa. A <strong>do</strong>utrina luterana,<br />

professada pelos dramaturgos alemães, se distancia da <strong>do</strong>utrina católica da Contra-<br />

Reforma, cuja moral se baseava nas boas ações como meio váli<strong>do</strong> para a salvação.<br />

O luteranismo exclui as boas ações e elege a fé em Deus, única garantia <strong>de</strong><br />

salvação.<br />

Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta constatação fundamental, Benjamin <strong>de</strong>senvolve a reflexão que<br />

coloca o conceito <strong>de</strong> Trauerspiel no contexto filosófico mo<strong>de</strong>rno. 8 Uma vida baseada<br />

unicamente na fé, sem motivação alguma <strong>de</strong> realizações concretas e <strong>de</strong> incentivo <strong>do</strong><br />

fazer construtivo que visem a uma satisfação compensatória, cai inevitavelmente no<br />

vazio e no tédio. Este é o <strong>de</strong>stino da classe que tinha acesso ao conhecimento e ao<br />

po<strong>de</strong>r. Os súditos, entretanto, eram convenci<strong>do</strong>s a se <strong>de</strong>dicarem ao cumprimento <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>ver, cujas recompensas estavam prescritas na mentalida<strong>de</strong> burguesa.<br />

É interessante como Benjamin passa a usar termos <strong>do</strong> iluminismo, como<br />

“apriorístico”, “meditação” e “<strong>de</strong>ver”, termos que pertencem ao vocabulário<br />

cartesiano e Kantiano. Se o barroco é marca<strong>do</strong> pelo conflito, aqui está o<br />

paradigmático conflito – e sua solução – elementos fundantes da obra benjaminiana,<br />

resumi<strong>do</strong> em tragédia e tristeza. Como a fé não consegue dar uma resposta para o<br />

vazio da existência humana, o homem, que se apavorava ao pensar na morte como<br />

fim inexorável, encontra refúgio no jogo lutuoso.Conclui Benjamin (1984, p. 162): “O<br />

luto é o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito em que o sentimento reanima o mun<strong>do</strong> vazio sob a forma<br />

<strong>de</strong> uma máscara, para obter da visão <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong> uma satisfação enigmática.”<br />

8<br />

( Cf. Matos, O. Discretas esperanças, p.101ss). Olgária Matos revela o alcance <strong>de</strong>ste texto <strong>de</strong> Benjamin<br />

exatamente no que ele tem <strong>de</strong> referência à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> iluminista. Sua pesquisa mostra a relação entre o<br />

Trauerspiel e a melancolia escondida e subentendida em Descartes e em Kant: o po<strong>de</strong>roso sujeito, única fonte <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong> iluminista, sente o vazio imenso e, num jogo lutuoso, expressa o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> voltar seu olhar para o objeto.<br />

33


O Tauerspiel se revela aqui no autêntico senti<strong>do</strong> filosófico: o sentimento da<br />

vacuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito só se supera por meio <strong>de</strong> um jogo – <strong>de</strong>svio ou máscara – on<strong>de</strong><br />

ele se volta para os objetos, ou melhor, o sujeito melancólico volta inteiramente seu<br />

olhar para o mun<strong>do</strong>. Em resumo, é nisto que consiste o drama barroco alemão ou o<br />

jogo <strong>do</strong> luto, em tu<strong>do</strong> o que ele significa <strong>de</strong> inteiramente outro da tragédia, ou se<br />

quiser, da tradição e <strong>do</strong> racionalismo iluminista.<br />

Este jogo só é possível na e pela melancolia e tem <strong>de</strong> contar com o<br />

sentimento, antitético da razão pura, único capaz da representação objetiva <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. Pelo sentimento, não entendi<strong>do</strong> aqui como afetivida<strong>de</strong>, o jogo consegue<br />

chegar à plenitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> objeto. Benjamin se refere a uma tenacida<strong>de</strong> da intenção que<br />

caminha sem recuo para <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> objeto, pois o enluta<strong>do</strong> compensa a sensação <strong>de</strong><br />

vazio e o taedium vitae no jogo da meditação ou no mergulho cada vez mais<br />

profun<strong>do</strong> no objeto. Disso <strong>de</strong>corre o saber que tem como exigência a renúncia das<br />

paixões. O estoicismo está estampa<strong>do</strong> no comportamento político das duas<br />

con<strong>figura</strong>ções centrais <strong>do</strong> drama barroco: <strong>do</strong> soberano e, mais abertamente, <strong>do</strong><br />

cortesão. Benjamin (984, p. 120) expõe o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> estoicismo barroco:<br />

Nessa e em outras <strong>de</strong>scrições, os autores introduzem o alto funcionário da<br />

corte, o Conselheiro Priva<strong>do</strong>, cujo po<strong>de</strong>r, saber e vonta<strong>de</strong> atingem<br />

proporções <strong>de</strong>moníacas, e que tem livre acesso ao gabinete <strong>do</strong> Príncipe,<br />

on<strong>de</strong> se arquitetam projetos <strong>de</strong> alta política ...Assim concebi<strong>do</strong>, esse i<strong>de</strong>al<br />

<strong>do</strong> perfeito homem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>sperta na criatura, privada <strong>de</strong> todas as<br />

emoções ingênuas uma sensação <strong>de</strong> luto.<br />

É interessante notar que, neste texto, Benjamin repete o termo<br />

profundamente: “Pois os que exploravam mais profundamente as coisas se viam na<br />

existência como num campo <strong>de</strong> ruínas”, ou: “Ela (a vida) sente profundamente que<br />

não está aqui para ser <strong>de</strong>svalorizada pela fé”, ou ainda: “Sente um terror profun<strong>do</strong><br />

pela i<strong>de</strong>ia da morte”. E ele conclui: “...o luto é capaz <strong>de</strong> intensificar e aprofundar sua<br />

intenção.” (Origem, 162, 163). Neste jogo <strong>do</strong> melancólico, a ostentação e a pompa,<br />

característica da linguagem barroca, não passam <strong>de</strong> contraponto da profunda<br />

meditação e <strong>do</strong> confinamento.<br />

34


A categoria da melancolia se con<strong>figura</strong> no contexto <strong>do</strong> drama barroco alemão<br />

a partir da hegemonia da fé, vista como um <strong>de</strong>stino, que <strong>de</strong>spreza as boas ações<br />

provocan<strong>do</strong> assim o taedium vitae, ou seja, o vazio da existência humana. Ora,<br />

<strong>de</strong>sprezar as boas ações significa se <strong>de</strong>sligar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ter <strong>de</strong> amortecer os afetos<br />

e as paixões, em última análise, as coisas <strong>do</strong> corpo. O esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> luto, <strong>de</strong>corrência<br />

<strong>do</strong> corpo aliena<strong>do</strong> e <strong>do</strong> sujeito <strong>de</strong>spersonaliza<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> significar a força motriz <strong>do</strong><br />

instante dialético. Benjamin (1984, p. 164) expõe a extensão das possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong> melancólico:<br />

Na medida em que esse sintoma <strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalização é visto como um<br />

esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> luto extremo, o conceito <strong>de</strong>sta condição patológica (na qual as<br />

coisas mais insignificantes aparecem como cifras <strong>de</strong> uma sabe<strong>do</strong>ria<br />

misteriosa, porque não existe com elas nenhuma relação natural e cria<strong>do</strong>ra)<br />

é coloca<strong>do</strong> num contexto incomparavelmente fecun<strong>do</strong>.<br />

Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> luto extremo é o âmago da arte alemã <strong>do</strong> século XVII, isto é, a<br />

categoria da melancolia, parte integrante da con<strong>figura</strong>ção da idéia – ou da origem –<br />

<strong>do</strong> drama barroco alemão. O luto consiste na relação in<strong>de</strong>lével <strong>do</strong> sujeito com o<br />

mun<strong>do</strong> empírico, por mais que esse sujeito tente reduzir o exterior a um da<strong>do</strong> a si<br />

mesmo, por mais que tente se livrar <strong>do</strong>s afetos. O mun<strong>do</strong> das coisas está sempre ali<br />

presente e o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> homem barroco <strong>de</strong> dirigir seu olhar para ele é irresistível e<br />

insuperável. O luto está no conflito <strong>de</strong> um sujeito <strong>de</strong>spersonaliza<strong>do</strong> e, ao mesmo<br />

tempo, obriga<strong>do</strong> a assumir sua totalida<strong>de</strong>. A solução é o jogo lutuoso, em que o<br />

melancólico se volta para o exterior, <strong>de</strong>ntro da apatia estóica, para conseguir algum<br />

tipo <strong>de</strong> satisfação, algum sentimento positivo, ainda que obscuro, <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong><br />

vazio <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>.<br />

O esta<strong>do</strong> melancólico é <strong>de</strong>corrência direta da situação conflituosa <strong>de</strong> um<br />

sujeito dividi<strong>do</strong> e dilacera<strong>do</strong>: quanto mais ele introjeta o mun<strong>do</strong> das coisas para<br />

garantir o conhecimento <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong>, mais se revela a tristeza, o <strong>de</strong>sengano e a<br />

frustração por afastar-se <strong>de</strong>le. Alienar o corpo, neutralizar as paixões por uma<br />

estóica apatia – no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação para o barroco – ren<strong>de</strong> ao sujeito o esta<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> luto extremo. Na pretensa busca da posse <strong>do</strong> conhecimento, este luto significa a<br />

ocasião fecunda da insatisfação <strong>do</strong> homem barroco que procura a solução da<br />

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existência no saber absoluto. Ao tratar da alegoria, forma própria da linguagem<br />

barroca, Benjamin (1984, p. 252) esclarece que a busca <strong>do</strong> conhecimento não passa<br />

<strong>de</strong> pura curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um mero saber: “A intenção alegórica é tão oposta à voltada<br />

para a verda<strong>de</strong>...” O terreno fecun<strong>do</strong> da melancolia é <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m: a premência<br />

<strong>de</strong> uma solução ao taedium vitae po<strong>de</strong> significar um longo caminho em busca da<br />

resposta nunca encontrada pelo Barroco. Toda a energia <strong>de</strong>sta forma dramática vem<br />

da <strong>do</strong>r física <strong>do</strong> corpo tortura<strong>do</strong>, pois essa <strong>do</strong>r força o contato <strong>do</strong> espírito com o<br />

mun<strong>do</strong> exterior. Benjamin (1984, p. 241) cita Descartes para evi<strong>de</strong>nciar o po<strong>de</strong>r das<br />

paixões, isto é, das influências corporais:<br />

O dualismo não é o único elemento barroco em Descartes; sua teoria das<br />

paixões é altamente significativa, como conseqüência da <strong>do</strong>utrina das<br />

influências entre corpo e alma. Como o espírito é razão pura e fiel a si<br />

mesma, e somente as influências corporais po<strong>de</strong>m pô-lo em contato com o<br />

mun<strong>do</strong> exterior, a <strong>do</strong>r física constitui uma base mais imediata para a<br />

emergência <strong>de</strong> afetos fortes que os chama<strong>do</strong>s conflitos trágicos. Se, com a<br />

morte, portanto, o espírito se libera, o corpo atinge, nesse momento, a<br />

plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus direitos.<br />

Benjamin pergunta: “Antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>: qual a significação das cenas <strong>de</strong> martírio e<br />

cruelda<strong>de</strong> com que se <strong>de</strong>licia o Barroco?” O Barroco, respon<strong>de</strong>, segue a lei da<br />

emblemática, isto é, o organismo <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>spedaça<strong>do</strong> e em cada fragmento <strong>de</strong>ve<br />

estar estampada, fixa e claramente, a escrita da significação. Isto se dá na<br />

natureza, porém é principalmente no ser humano que a significação se apo<strong>de</strong>ra da<br />

physis aban<strong>do</strong>nada e fragmentada. Neste contexto fica explicada a presença da <strong>do</strong>r<br />

física e <strong>do</strong> martírio, elementos característicos <strong>de</strong>sta dramaturgia. Os personagens<br />

barrocos morrem e os cadáveres que <strong>de</strong>les restam são a garantia da plenitu<strong>de</strong> da<br />

significação alegórica, como enfatiza Benjamin (1984, p. 242): “O cadáver é o<br />

supremo a<strong>de</strong>reço cênico, emblemático, <strong>do</strong> drama barroco <strong>do</strong> século XVII”. Desta<br />

maneira se enten<strong>de</strong> como barroca a relação cartesiana entre corpo e alma: só a <strong>do</strong>r<br />

física constitui a base da emergência <strong>do</strong>s afetos que colocam o espírito em contato<br />

com o mun<strong>do</strong> exterior.<br />

Essa passagem <strong>de</strong> Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão ajuda elucidar a<br />

questão da melancolia em Benjamin: a morte e o <strong>de</strong>spedaçamento da physis,<br />

condição única da significação, engendra o luto. É preciso morrer e a morte é<br />

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impensável como o fim da vida, pois não há apoteose barroca sem cadáveres.<br />

Trata-se, em última análise, da visão teológica, <strong>de</strong> uma teologia da história, pois a<br />

concepção alegórica <strong>do</strong> Barroco tem suas raízes no cristianismo medieval. Na<br />

poética <strong>do</strong>s autores barrocos – que aliás não tinham uma avaliação crítica <strong>de</strong> sua<br />

própria criação artística – po<strong>de</strong>-se notar um vivo interesse pelos textos medievais<br />

sobre a apologia da alegoria e <strong>do</strong> sacrifício <strong>do</strong> corpo, e, ao mesmo tempo,<br />

caracteriza<strong>do</strong> por acentua<strong>do</strong> anti-paganismo. A fundamentação histórica é evi<strong>de</strong>nte,<br />

conclui Benjamin (1984, p. 245): “Porque o me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mônios fazia a<br />

corporalida<strong>de</strong> aparecer como suspeita e particularmente angustiante”.<br />

O olhar, o senti<strong>do</strong> da visão que pertence ao corpo e põe o homem em contato<br />

direto com o mun<strong>do</strong> empírico e com os fenômenos é a obsessão <strong>do</strong> melancólico.<br />

Assim está representada a melancolia na gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>: com os olhos bem<br />

abertos e paralisa<strong>do</strong>s, em meio a utensílios sem serventia. Po<strong>de</strong>-se afirmar que a<br />

melancolia em Descartes resi<strong>de</strong> no conflito insolúvel da dualida<strong>de</strong> entre corpo e<br />

alma.<br />

A compreensão <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> jogo <strong>do</strong> luto (Trauerspiel) só é completa se for<br />

levada em conta a concepção <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> exposta por Benjamin nas Questões<br />

introdutórias <strong>de</strong> Crítica <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão.<br />

Benjamin (1984, p. 58s) ao afirmar “...a verda<strong>de</strong> é a morte da intenção...”, ele está<br />

mostran<strong>do</strong> o quanto é lutuoso o jogo triunfal da intenção em direção ao saber e como<br />

essa “...procissão solene caminha em senti<strong>do</strong> oposto ao da verda<strong>de</strong>. O luto é capaz<br />

<strong>de</strong> intensificar e aprofundar sua intenção. A meditação é própria <strong>do</strong> enluta<strong>do</strong>”. O<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vidência <strong>do</strong> melancólico jamais atinge a verda<strong>de</strong>, pois esta se representa<br />

por si mesma. Quan<strong>do</strong> muito ele po<strong>de</strong> atingir um saber enigmático, e por isso,<br />

fragmentário e inacaba<strong>do</strong>. O olhar melancólico diz respeito à intenção, à relação com<br />

a empiria, como afirma Benjamin (1984, p. 58), na introdução da obra sobre o drama<br />

barroco alemão: “...a verda<strong>de</strong> é uma essência não intencional, formada por idéias”.<br />

Mas esse abismo é também o precipício sem fun<strong>do</strong> da meditação. Os da<strong>do</strong>s que ela<br />

produz são incapazes <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar-se em con<strong>figura</strong>ções filosóficas. Benjamin (1984, p.<br />

37


254) conclui: “Por isso, eles agem como simples estoques <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à<br />

ostentação da pompa, nos livros emblemáticos <strong>do</strong> Barroco. “<br />

Assim se con<strong>figura</strong> o príncipe em sua profunda melancolia: no limiar da<br />

complementarida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tirano e <strong>do</strong> mártir, da fé e <strong>do</strong> jogo lutuoso <strong>do</strong> saber, <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r<br />

sobre a história e <strong>do</strong> mais anti-histórico estoicismo. Ao tratar <strong>do</strong> problema <strong>do</strong>s<br />

afetos, tal como ele aparece no drama barroco, Benjamin faz uma observação<br />

importante: existe a proposta didática neste drama ao apresentar o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s<br />

afetos e das paixões sobre as ações políticas. A sensibilida<strong>de</strong> enfraquece a vonta<strong>de</strong><br />

e o soberano enlouquece. O conflito <strong>do</strong> príncipe entre sensibilida<strong>de</strong> e vonta<strong>de</strong> (que<br />

Michelangelo expressou plasticamente nas esculturas <strong>de</strong> <strong>figura</strong>s com cabeças<br />

<strong>de</strong>sproporcionalmente menores que o corpo, <strong>do</strong> túmulo <strong>do</strong>s Medici) está presente no<br />

drama barroco on<strong>de</strong> as paixões <strong>de</strong>terminam o comportamento <strong>do</strong> tirano. Nisto<br />

consiste mais uma distinção entre tragédia clássica e drama barroco, que consegue<br />

conciliar o trágico com o cômico.<br />

Benjamin, ao afirmar que o príncipe é o paradigma <strong>do</strong> melancólico, leva em<br />

conta toda a herança cultural <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is milênios transmitida ao Barroco, via<br />

Renascença. Esse fato possibilita um comentário mais preciso sobre o drama, pois<br />

parte daqueles pensamentos filosóficos e convicções políticas que estão na base da<br />

concepção da história como uma drama. A ciência como herança renascentista se<br />

fun<strong>de</strong> ao saber obti<strong>do</strong> pela ruminação <strong>do</strong> melancólico, isto é, a ruminação diz<br />

respeito a tu<strong>do</strong> que o homem conquistou em sua pesquisa sobre o universo. Essa<br />

imponente herança <strong>do</strong> pensamento filosófico e da ação política tem seu contraponto<br />

na <strong>figura</strong> <strong>do</strong> príncipe, frágil e melancólico. A fragilida<strong>de</strong> da con<strong>figura</strong>ção central <strong>do</strong><br />

drama barroco é ilustrada por um texto <strong>de</strong> Pascal, mais precisamente nos<br />

Pensamentos: Um rei que se vê é um homem cheio <strong>de</strong> misérias. Ele precisa estar<br />

em constante distração, em jogos e divertimentos. Se ficar só, sentirá extrema<br />

tristeza, ao pensar em si.<br />

Mas por que tanta infelicida<strong>de</strong> partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> quem tem a dignida<strong>de</strong> real, a mais<br />

alta entre as criaturas? É justamente porque na confluência entre realeza e miséria,<br />

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po<strong>de</strong>r e fragilida<strong>de</strong>, resi<strong>de</strong> a essência <strong>do</strong> Barroco. Conflito radical que Benjamin<br />

(984, p. 167) enten<strong>de</strong> como essencial ao drama: “O drama barroco alemão ecoa e re-<br />

ecoa esse pensamento, <strong>de</strong> mil maneiras”. Benjamin já se referia às camadas <strong>de</strong><br />

estuque ornamental: a exteriorização é a saída <strong>do</strong> conflito. Ao rei vesti<strong>do</strong> com o<br />

manto <strong>de</strong> púrpura, com o cetro e a coroa, se opõe o rei nu, só com o far<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua<br />

imagem <strong>de</strong> miserável, e melancólico. Assim ele encarna a história da imponente<br />

herança e da reflexão profunda da ruminação.<br />

A exteriorização no jogo <strong>do</strong> divertimento não significa estar num paraíso <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong>. Os cortesãos sofrem o mesmo conflito. A corte, como o príncipe e o<br />

intrigante, aparece na fronteira entre o paraíso e o inferno. O tirano po<strong>de</strong> mergulhar<br />

<strong>de</strong> tal forma no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> tristeza, que se <strong>de</strong>sliga <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a sua volta e se entrega<br />

ao <strong>de</strong>sespero e à loucura. Benjamin insere a melancolia entre os fenômenos <strong>do</strong><br />

drama e o faz seguin<strong>do</strong> fielmente sua meto<strong>do</strong>logia para que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sta forma <strong>de</strong><br />

arte se represente. É por isso que ao tema da tristeza <strong>do</strong> príncipe se junta seu<br />

extremo oposto da pompa, das solenes procissões <strong>do</strong>s governantes – que aos<br />

súditos só resta seguir - a ou ainda, da pomposa herança renascentista. Em resumo,<br />

são os extremos entre a ostentação e o luto, entre a exteriorização e a gravida<strong>de</strong>,<br />

enfim, o príncipe no limiar <strong>do</strong> triunfante e <strong>do</strong> melancólico. É o que enfatiza Benjamin<br />

(1984, p. 69): “A representação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> maneira alguma ser vista<br />

como bem sucedida, enquanto o ciclo <strong>do</strong>s extremos nela possíveis não for<br />

percorri<strong>do</strong>”. Nesse senti<strong>do</strong>, o Barroco não po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> unilateralmente, como<br />

símbolo da expressão da riqueza por exemplo, pois ele tem sempre seu duplo<br />

extremo complementar, numa tensão coberta por ricos ornamentos.<br />

É exatamente este o procedimento <strong>de</strong> Benjamin ao percorrer pacientemente as<br />

obras da dramaturgia barroca e <strong>de</strong>screver os fenômenos em seus extremos.<br />

Exemplo <strong>de</strong>ste méto<strong>do</strong> é a citação da obra <strong>de</strong> Gryphius, Leo Armenius, on<strong>de</strong> os<br />

objetos evi<strong>de</strong>nciam a melancolia e seus antagonismos: tremer <strong>de</strong> me<strong>do</strong> com a<br />

espada, sonhos terríveis <strong>de</strong> pavor com marfim, púrpura e escarlate, ou ainda, coroa<br />

com sofrimento e morte.<br />

39


Sem preten<strong>de</strong>r traçar um histórico das teorias sobre a melancolia, Benjamin<br />

focaliza nessas teorias os aspectos que <strong>de</strong>spertaram o interesse <strong>do</strong>s dramaturgos<br />

alemães <strong>do</strong> século XVII. Dessa herança assimilada pelo Barroco, <strong>de</strong>staca a<br />

dualida<strong>de</strong> loucura e genialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> melancolia exposto no trata<strong>do</strong> De<br />

Problemata <strong>de</strong> Aristóteles e ainda no De Divinatione Somnium <strong>do</strong> mesmo Aristóteles,<br />

sobre o po<strong>de</strong>r profético <strong>do</strong> melancólico. Consi<strong>de</strong>ra também a visão teológica, e<br />

igualmente dualista, <strong>de</strong> Paracelso, segun<strong>do</strong> a qual Adão, primeira criatura, é o<br />

porta<strong>do</strong>r da tristeza e Eva criada para alegrar Adão. Tristeza e alegria se misturam<br />

na formação das criaturas humanas. Do perío<strong>do</strong> medieval, a escola médica <strong>de</strong><br />

Salerno, com sua teoria da bílis negra (atrabilis) da melancolia, como a patologia da<br />

preguiça e da acídia, entre todas, é a que impressiona mais o Barroco que tinha claro<br />

o <strong>de</strong>stino da miserável criatura. É a visão medieval <strong>de</strong>monológica <strong>de</strong> fundamento<br />

cristão, para a qual melancolia significava avareza, ganância, inveja, <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> e<br />

tristeza.<br />

Os árabes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média, herdaram da antiguida<strong>de</strong> grega mais um<br />

elemento importante na formulação <strong>do</strong> conceito da patologia <strong>do</strong> melancólico. Nesta<br />

teoria, a melancolia está sujeita às influências <strong>do</strong>s astros, <strong>de</strong>ntre os quais Saturno é<br />

o planeta que rege o melancólico. Analisan<strong>do</strong> as características <strong>de</strong>ste astro, como<br />

sua distância da terra e sua órbita, suas influências são interpretadas positivamente,<br />

pois elas explicam a propensão ao meditar profun<strong>do</strong> <strong>do</strong> melancólico. Assim o planeta<br />

distante convida a criatura para a contemplação, mediante uma vida interior afastada<br />

das coisas cotidianas; daí <strong>de</strong>corre o saber superior e o po<strong>de</strong>r divinatório. Essa<br />

interpretação astrológica se aproxima da teoria aristotélica por sua dialética inerente:<br />

ela também contém o conflito – essência <strong>do</strong> barroco – pois Saturno representa a<br />

inércia e a preguiça por um la<strong>do</strong> e, por outro, a inteligência e a contemplação das<br />

coisas superiores.<br />

Na con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> príncipe, paradigma <strong>do</strong> melancólico, Benjamin não tem a<br />

intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir melancolia e seu significa<strong>do</strong> para o drama barroco, o que já seria<br />

algo incompatível com seu méto<strong>do</strong>. Ele, ao invés, junta todas as confluências para<br />

esta con<strong>figura</strong>ção, on<strong>de</strong> se mostra aquilo que é próprio <strong>do</strong> barroco: os aspectos<br />

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extremos complementares <strong>do</strong> fenômeno. Fica claro assim, segun<strong>do</strong> as palavras <strong>de</strong><br />

Benjamin (1984, p. 172), em todas essas teorias, que este fenômeno está no limiar<br />

entre a acedia e a força da inteligência:<br />

O histórico <strong>do</strong> problema da melancolia se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra no espaço <strong>de</strong>sta<br />

dialética. Seu clímax é alcança<strong>do</strong> na magia renascentista. Enquanto as<br />

intuições aristotélicas sobre a ambivalência da disposição melancólica,<br />

assim como o caráter antitético das influências saturninas haviam cedi<strong>do</strong><br />

lugar, na Ida<strong>de</strong> Média, a uma versão puramente <strong>de</strong>monológica <strong>de</strong> ambos os<br />

temas, coerentemente com a especulação cristã, a Renascença foi buscar<br />

novamente em suas fontes toda a riqueza das antigas meditações.<br />

Klabinsky, Panofsky e Saxl 9 <strong>de</strong>senvolveram uma exaustiva pesquisa – o que<br />

será visto a seguir – sobre a representação plástica da melancolia, ressaltan<strong>do</strong> como<br />

este tema fascinou artistas durante séculos. É no século XVI entretanto que surge a<br />

visão renovada das teorias antigas sobre a melancolia – da qual, a Melancolia I <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong> é um ícone - em contraste com a teoria moralizante <strong>do</strong> cristianismo medieval.<br />

De fato, o caráter antitético da visão astrológica havia sucumbi<strong>do</strong> a esse espírito<br />

cristão. A Renascença resgata e <strong>de</strong>ixa como herança para o Barroco o leque <strong>de</strong><br />

significações próprio <strong>do</strong> sentimento melancólico. Benjamin (1984, p. 149) conseguiu<br />

vislumbrar neste elemento o ingrediente básico da dramaturgia barroca alemã – para<br />

a formulação da história filosófica - e, na pós-história da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o mesmo<br />

elemento na poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire:<br />

Com o intrigante, o cômico penetra no drama barroco, mas ele não é um<br />

simples episódio. O cômico, ou melhor, a pura pilhéria, é obrigatoriamente o<br />

la<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> luto; ele aparece <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong> como o forro <strong>de</strong> um<br />

vestuário, na barra ou na lapela.<br />

Benjamin <strong>de</strong>scobre uma vertente <strong>do</strong> drama barroco alemão: as ações principais<br />

e <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, um teatro popular que fugia <strong>do</strong>s gêneros solenes e prolixos e<br />

enveredava para a paródia. Com temas escolhi<strong>do</strong>s no Velho Testamento, na<br />

antiguida<strong>de</strong> e no Oriente, este teatro apresenta príncipes, generais, princesas e<br />

ministros em suas virtu<strong>de</strong>s e vícios, entre palhaços e bobos da corte, que, para<br />

incômo<strong>do</strong> <strong>do</strong>s personagens, sempre revelam a farsa. Há uma estreita relação entre<br />

este teatro popular e o teatro <strong>de</strong> fantoches, pois as ações principais e <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> se<br />

9 Cf. Klibansky et al., 1989.<br />

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miniaturizam e o drama barroco tem muito <strong>do</strong> espírito cômico das marionetes.<br />

Benjamin cita Lohenstein 10 (apud Benjamin 1984, p. 148): “...que tem tão pouca<br />

veneração pelos símbolos da soberana magistratura, como se eles fossem<br />

manequins”. A majesta<strong>de</strong> <strong>do</strong> governante barroco tem, na representação, seu la<strong>do</strong><br />

jocoso da brinca<strong>de</strong>ira da teatralização por meio <strong>de</strong> marionetes, on<strong>de</strong> o bobo da corte<br />

parodia a função divina <strong>do</strong> soberano.<br />

Mas é o intrigante que, nas ações, fica mais à vonta<strong>de</strong> em suas<br />

maquinações: ele dá o tom jocoso. É por meio <strong>de</strong>le que o cômico entra no drama<br />

barroco e no jogo <strong>do</strong> luto, ele é o la<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma roupa, que aparece <strong>de</strong> vez<br />

em quan<strong>do</strong>. O intrigante faz parte <strong>do</strong> jogo. Mas este jogo tem os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s: a pilhéria<br />

e a cruel intransigência. Não se trata porém da simplicida<strong>de</strong> ingênua <strong>do</strong> cômico. Pelo<br />

contrário, o intrigante tem a sabe<strong>do</strong>ria <strong>de</strong>moníaca e é com ela que ele arquiteta a<br />

frustração das ações políticas <strong>do</strong> soberano. O drama barroco transforma a<br />

comicida<strong>de</strong> e a astúcia <strong>do</strong> intrigante bufão das ações <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> na alegria perversa<br />

<strong>do</strong> conselheiro, que se junta ao luto <strong>do</strong> príncipe. São as emoções próprias <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> Satã.<br />

Esta análise <strong>de</strong> Benjamin acrescenta ao jogo <strong>do</strong> luto as sutilezas <strong>do</strong> cômico,<br />

<strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> teatro popular das ações principais e <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> príncipes e reis<br />

tentam convencer o público <strong>de</strong> como se sentem tristes com o far<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas<br />

responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> governar. A paródia atinge seu ponto alto na <strong>figura</strong> <strong>do</strong> bufão,<br />

nada ingênuo, que, com sabe<strong>do</strong>ria satânica, trai o soberano e <strong>de</strong>smascara a farsa. O<br />

drama alemão não se aproveitou inteiramente <strong>de</strong>sta relação entre o cômico e o luto,<br />

permanecen<strong>do</strong> no enre<strong>do</strong> <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> sério e rígi<strong>do</strong>. Shakespeare e Cal<strong>de</strong>rón<br />

souberam utilizar este jogo, on<strong>de</strong> o cômico se miniaturiza e o personagem tem a<br />

capacida<strong>de</strong> da reflexão, isto é, ele próprio se vê como miniatura. Nestes autores se<br />

alternam a comédia e a tragédia e nesta alternância <strong>do</strong>s extremos consiste a<br />

superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste drama , que a gravida<strong>de</strong> <strong>do</strong> drama alemão nunca chegou a<br />

atingir.<br />

10 Apud Benjamin, 1984, p. 148.<br />

42


É quanto à melancolia <strong>do</strong> príncipe que Benjamin (1984, p. 180) aponta a<br />

gran<strong>de</strong> diferença entre o drama alemão e o drama shakespeareano: “O drama<br />

alemão não soube adquirir uma verda<strong>de</strong>ira alma, nem <strong>de</strong>spertar em seu interior a<br />

clara luz da autocompreensão.” Autocompreensão e reflexão estão contidas no jogo<br />

das miniaturas, lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> teatro <strong>de</strong> fantoches, on<strong>de</strong> o personagem se vê refleti<strong>do</strong>.<br />

Em Hamlet, Benjamin <strong>de</strong>staca a obsessão melancólica pelo <strong>de</strong>stino. Somente este<br />

príncipe, em to<strong>do</strong> o drama barroco, vislumbra as graças <strong>de</strong> Deus, on<strong>de</strong> sua profunda<br />

melancolia se dissolve, exatamente no momento em que ela se <strong>de</strong>para consigo<br />

mesma, pela autocompreensão e reflexão. O príncipe melancólico <strong>do</strong> drama alemão<br />

tem uma compreensão confusa <strong>de</strong> si mesmo. Sua melancolia, segun<strong>do</strong> esta<br />

dramaturgia está presa aos exageros da teoria medieval <strong>do</strong>s temperamentos.<br />

Benjamin (1984, p. 180) estabelece uma estreita relação entre a imagem <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> e<br />

o drama barroco alemão: “As imagens apresentadas nesse drama são <strong>de</strong>dicadas ao<br />

gênio da melancolia <strong>alada</strong> <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>. A vida interna <strong>de</strong>ste teatro grosseiro começa em<br />

presença daquele gênio.”<br />

O emblema representa uma forma <strong>de</strong> controle <strong>de</strong>sse esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> alma <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

Ida<strong>de</strong> Média: a corporalida<strong>de</strong> redimida, pura, livre da materialida<strong>de</strong> pagã e<br />

<strong>de</strong>moníaca. Para os medievais, a representação da nu<strong>de</strong>z, na arte, era interpretada<br />

como símbolo da ausência da virtu<strong>de</strong>, ou porque o vício não po<strong>de</strong> ser escondi<strong>do</strong> ou<br />

porque os viciosos per<strong>de</strong>m tu<strong>do</strong> o que têm. Trata-se sempre <strong>de</strong> uma explicação<br />

alegórica, que em resumo, é expor a natureza <strong>de</strong>moníaca <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses pagãos e<br />

pregar a negação <strong>do</strong> corpo. Eis uma vertente <strong>do</strong> emblemático a<strong>de</strong>reço <strong>do</strong> drama<br />

barroco: o cadáver. O alegórico da perspectiva religiosa medieval tinha a pretensão<br />

<strong>de</strong> expulsar o que restava <strong>do</strong> paganismo. Mas por outro la<strong>do</strong>, o intuito da utilização<br />

da alegoria é salvar para a eternida<strong>de</strong> coisas que estão con<strong>de</strong>nadas ao perecimento.<br />

O alegórico representa tu<strong>do</strong> o que existe <strong>de</strong> efêmero, o que vale tanto ao espírito<br />

medieval como ao barroco. Benjamin (1984,p. 248) conclui:<br />

Por outro la<strong>do</strong>, quanto mais a natureza e a Antiguida<strong>de</strong> são vividas como<br />

culpadas, mais imperativa se torna sua interpretação alegórica, que<br />

representa apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> a única re<strong>de</strong>nção possível. Pois ao <strong>de</strong>svalorizar<br />

conscientemente o objeto, a intenção alegórica se mantém<br />

incomparavelmente fiel à condição <strong>de</strong> coisa daquele objeto.<br />

43


Benjamin introduz, para a con<strong>figura</strong>ção da alegoria, um outro elemento, além<br />

da efemerida<strong>de</strong>: a culpa. A culpa <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses, da matéria, e mais significativamente,<br />

<strong>do</strong> corpo. A culpa se fundamenta na queda da criatura e, juntamente com ela, <strong>de</strong><br />

toda a natureza, que, por isso, se torna triste, muda e incomunicável. Isso acarreta o<br />

luto: sentir-se conheci<strong>do</strong> pelo incognoscível, isto é, pelo divino ou pelo alegórico. A<br />

alegoria não diz respeito a um mun<strong>do</strong> antigo diretamente, ela é anti-antiga: Benjamin<br />

(1984, p. 248) mostra a substituição <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> clássico antigo pelos emblemas: “As<br />

vestes olímpicas são <strong>de</strong>ixadas para trás, e com a passagem <strong>do</strong> tempo os emblemas<br />

se agrupam em torno <strong>de</strong>las”. É a criatura culpada que substitui os <strong>de</strong>uses, herdan<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> negativo que o culto <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>uses representava. A representação<br />

alegórica, já que se trata da linguagem <strong>do</strong> drama barroco, acrescenta palavras e<br />

nomes, além <strong>do</strong>s emblemas. Como são alegóricos, esses nomes e palavras<br />

adquirem novos conteú<strong>do</strong>s. Benjamin (1984, p. 249) expõe a função da alegoria: “A<br />

extinção das <strong>figura</strong>s e a abstração <strong>do</strong>s conceitos constituem assim os pressupostos<br />

para a transformação alegórica <strong>do</strong> Pantheon num mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> criaturas mágico-<br />

conceituais”.<br />

Esta análise <strong>de</strong> Benjamin se refere ao surgimento da linguagem alegórica a<br />

partir <strong>do</strong> embate conflituoso entre paganismo e cristianismo, mais exatamente como<br />

o mun<strong>do</strong> pagão vai se distancian<strong>do</strong> e se transforman<strong>do</strong> em imagens <strong>de</strong> criaturas, ou<br />

seja, em conceitos mágicos. Plasticamente a arte testemunha, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média<br />

até o Barroco, essa transformação alegórica: objetos, animais, paisagens, <strong>figura</strong>s<br />

humanas, enfim, toda sorte <strong>de</strong> elementos da natureza estão representa<strong>do</strong>s na arte,<br />

com nítida intenção alegórica. Benjamin (1984, p. 256) enfatiza o caráter fugaz da<br />

visão alegórica:<br />

Os vícios absolutos, encarna<strong>do</strong>s pelos tiranos e intrigantes, são alegorias.<br />

Não tem existência real, e o que apresentam só tem realida<strong>de</strong> sob o olhar<br />

subjetivo da melancolia; extinto o olhar, seus produtos também se<br />

extinguem, porque só anunciam a cegueira <strong>de</strong>sse olhar.<br />

Em Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão, Benjamin se utiliza <strong>do</strong> cruzamento <strong>de</strong><br />

várias vertentes para a con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong> príncipe como paradigma <strong>do</strong> melancólico.<br />

44


Esses pontos são analisa<strong>do</strong>s em passagens distintas da obra, sempre vistos na sua<br />

complementarieda<strong>de</strong>: o cômico e o saber satânico, o mal e o saber, a espiritualida<strong>de</strong><br />

absoluta e a matéria, o mal e o luto; tu<strong>do</strong> convergin<strong>do</strong> para a <strong>figura</strong> <strong>do</strong> tirano e <strong>do</strong><br />

intrigante. O soberano, paradigma <strong>do</strong> melancólico, representa a história. Esta<br />

concepção barroca da história está presente nas Teses sobre o conceito da história,<br />

on<strong>de</strong> Benjamin (1985, p. 232) critica contun<strong>de</strong>ntemente o historicismo e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a<br />

historiografia fundada na concepção da dialética na imobilida<strong>de</strong>:<br />

Ele capta a con<strong>figura</strong>ção em que sua própria época entrou em contato com<br />

uma época anterior, perfeitamente <strong>de</strong>terminada. Com isso, ele funda um<br />

conceito <strong>do</strong> presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços <strong>do</strong><br />

messiânico.<br />

Benjamin (1985, p. 231) <strong>de</strong>ixa bem clara a convergência <strong>de</strong> forças, num<br />

senti<strong>do</strong> revolucionário, para o momento presente, em que “o pensamento pára,<br />

bruscamente, numa con<strong>figura</strong>ção saturada <strong>de</strong> tensões...” Essa revolução entretanto<br />

não visa um futuro escatologicamente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, como garantia <strong>de</strong> um processo<br />

pretensamente científico. Ela tem o senti<strong>do</strong> teológico da re<strong>de</strong>nção <strong>do</strong> passa<strong>do</strong><br />

marca<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>minação <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res. A tensão, a força dialética fulgurante <strong>do</strong><br />

choque que paralisa, não surge em um presente qualquer, mas naquele presente<br />

que visa, pela rememoração, o passa<strong>do</strong>, em um salto tigrino ou em direção a ele.<br />

Benjamin (1985, p. 223) esclarece a importância <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> nessa dialética: “O<br />

passa<strong>do</strong> traz consigo um índice misterioso, que o impele à re<strong>de</strong>nção”.<br />

A crítica <strong>de</strong> Benjamin tem particularmente um alvo exemplar: a social<br />

<strong>de</strong>mocracia da República <strong>de</strong> Weimar e sua crença na marcha triunfal <strong>do</strong> progresso<br />

em direção ao paraíso <strong>de</strong> justiça e felicida<strong>de</strong>. Essa marcha e sua promessa <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong> é pura falácia pois se dá no tempo vazio e homogêneo, preenchi<strong>do</strong> com<br />

um amontoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> fatos. Benjamin (1985, p. 227) concebe a história como avessa<br />

ao grandiloqüente, às i<strong>de</strong>ologias arrebata<strong>do</strong>ras que prometem às massas um futuro<br />

<strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>: “Os temas que as regras <strong>do</strong> claustro impunham à meditação <strong>do</strong>s<br />

monges tinham como função <strong>de</strong>sviá-los <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e das suas pompas. Nossas<br />

reflexões partem <strong>de</strong> uma preocupação semelhante”. A preocupação <strong>de</strong> Benjamin é<br />

ficar bem longe da cumplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s políticos com a pompa profana <strong>do</strong>s<br />

45


vence<strong>do</strong>res, cumplicida<strong>de</strong> que ele <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> empatia (Einfahlung in <strong>de</strong>n Siegn).<br />

Na realida<strong>de</strong> isso não passa da <strong>de</strong>silusão da verda<strong>de</strong>ira imagem histórica, em<br />

outras palavras, a pompa escon<strong>de</strong> a inércia <strong>do</strong> coração, a acedia e a tristeza. Para<br />

o crítico materialista histórico, esse processo se torna claro: a tristeza <strong>do</strong> historicista<br />

provém da visão <strong>do</strong> cortejo triunfal <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res sobre os corpos <strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s.<br />

(Unterdrückten) A barbárie se completa com a posse <strong>do</strong>s bens, transforma<strong>do</strong>s em<br />

monumentos culturais. A melancolia está presente tanto na visão <strong>do</strong> historicista,<br />

como no Barroco. Isso significa que Benjamin mantém, nas Teses sobre o conceito<br />

da história, a mesma postura meto<strong>do</strong>lógica da obra sobre o Barroco: o historicista é<br />

tão melancólico como o príncipe <strong>do</strong> drama.<br />

Nessa equivalência, o senti<strong>do</strong> da melancolia se torna mais transparente: ela<br />

se con<strong>figura</strong> na tentativa, <strong>de</strong> antemão fracassada, da posse <strong>do</strong> conhecimento, que<br />

resulta em <strong>de</strong>silusão e catástrofe. A ostentação, o estuque ornamental fazem parte<br />

<strong>de</strong>ste jogo lutuoso. É assim que a melancolia <strong>de</strong>sempenha seu papel neste drama.<br />

Na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, como no Barroco, Benjamin <strong>de</strong>senvolve sua reflexão sobre esse<br />

jogo, seja na esfera <strong>do</strong> conhecimento, seja na política. O homem mo<strong>de</strong>rno crê no<br />

po<strong>de</strong>r da ciência e da técnica, capazes <strong>de</strong> engendrar a marcha triunfal <strong>do</strong><br />

progresso. Mais que isso: crê na subjetivida<strong>de</strong> como única força legítima para<br />

indicar o movimento em flecha e espiral da história, da mesma maneira que o<br />

alegorista se alia aos po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>moníacos para atingir o conhecimento e a<br />

espiritualida<strong>de</strong> absolutos. Do ponto <strong>de</strong> vista filosófico, é esta subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

homem <strong>de</strong>sencarna<strong>do</strong> que está em discussão; é a dialética morte vida.<br />

É muito significativa a afinida<strong>de</strong> entre as Teses, obra póstuma que tem a<br />

importância <strong>de</strong> um testamento, e sua obra sobre o Barroco. Isso é percebi<strong>do</strong><br />

através <strong>de</strong> uma leitura atenta que revela os conceitos subentendi<strong>do</strong>s nos <strong>do</strong>is<br />

textos. Nas Teses é o Benjamin que se expõe por inteiro, como um monge que foge<br />

<strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, arrogância, ostentação e se refugia no silêncio <strong>de</strong> um<br />

mosteiro. A reflexão o faz optar pelas pequenas coisas, pelo marginaliza<strong>do</strong>, pelo<br />

rejeita<strong>do</strong>, pelas ruínas, pelas imagens oníricas e crer na força <strong>do</strong> instante, das<br />

frestas por on<strong>de</strong> surge a luz messiânica.<br />

46


O homem barroco jogava um jogo <strong>de</strong> sobrevivência. Se não houvesse esse<br />

jogo, ele se entregaria ao <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> morte e aniquilamento, mas por causa da<br />

consciência que ele tinha <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>stino, o jogo era lutuoso e assim ele se<br />

equilibrava no limiar entre o brilho <strong>do</strong> mais pomposo otimismo e o mais negro<br />

sentimento <strong>de</strong> tristeza. A melancolia era ingrediente indispensável nesta receita <strong>de</strong><br />

sobrevivência. Da mesma forma o homem mo<strong>de</strong>rno, <strong>do</strong> mais alto <strong>de</strong>grau <strong>de</strong> sua<br />

subjetivida<strong>de</strong> arrogante, joga o mesmo jogo lutuoso e sofre <strong>do</strong> mesmo mal: a<br />

tristeza, a melancolia. Ele é o príncipe barroco, paradigma <strong>do</strong> melancólico.<br />

1. 3. Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>: uma <strong>figura</strong> alegórica<br />

A filosofia da história para Benjamin é a ciência da origem e a categoria da<br />

melancolia perpassa to<strong>do</strong>s os escritos, não somente a tese sobre o Barroco. Ela<br />

está presente nos ensaios sobre a arte <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, <strong>de</strong> Proust e <strong>de</strong> Kafka, na<br />

crítica da violência ou no ensaio sobre a reprodução da obra <strong>de</strong> arte; enfim, para o<br />

filósofo, falar <strong>de</strong> história, dialética e re<strong>de</strong>nção é falar <strong>de</strong> melancolia. Seu pensamento<br />

propõe o cessar <strong>do</strong> curso contínuo da história linear e repetitiva, cuja lei é a<br />

<strong>do</strong>minação, <strong>do</strong> eterno retorno mítico, exposto no ensaio sobre violência e po<strong>de</strong>r. O<br />

que mantém o statu quo, o que arrasta as massas para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses <strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res é a crença incondicional no progresso. Esse entusiasmo ufanista <strong>do</strong><br />

apelo em um futuro promissor <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> total, sustenta<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ologia, <strong>de</strong>scobrirá, mais ce<strong>do</strong> ou mais tar<strong>de</strong>, que tal futuro nunca chega. Existe<br />

sempre o espectro da catástrofe rondan<strong>do</strong> este sonho enganoso, por mais que a<br />

ciência e a técnica criem sem cessar coisas inacreditáveis, num processo que<br />

parece não ter fim, tanto nos aparatos <strong>de</strong> comunicação, como no po<strong>de</strong>r da medicina<br />

ou na <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> universo, on<strong>de</strong> o homem acredita que será <strong>de</strong>us.<br />

Ora, o fascínio por um futuro <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> plena é a característica da história<br />

<strong>do</strong> contínuo vazio, que amontoa ruínas, uma vez que os extremos <strong>do</strong> bem estar<br />

consegui<strong>do</strong> pela ciência e pela tecnologia convivem com os extremos da miséria, da<br />

<strong>do</strong>r e da morte. Para este cenário, o homem só po<strong>de</strong> lançar um olhar melancólico, o<br />

47


olhar <strong>de</strong> tristeza, único capaz <strong>de</strong> provocar o processo dialético <strong>de</strong> cessar o<br />

movimento linear vazio, <strong>do</strong> sempre igual <strong>do</strong> progresso, on<strong>de</strong> só existe lugar para os<br />

extremos <strong>de</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> vence<strong>do</strong>res e venci<strong>do</strong>s. Assim Benjamin<br />

(1985, p. 227) <strong>de</strong>screve a crença no progresso:<br />

O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social <strong>de</strong>mocracia,<br />

não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias<br />

econômicas. É uma das causas <strong>de</strong> seu colapso posterior. Nada foi mais<br />

corruptor para a classe operária alemã que a opinião <strong>de</strong> que ela nadava<br />

com a corrente. O <strong>de</strong>senvolvimento técnico era visto como o <strong>de</strong>clive da<br />

corrente, na qual ela supunha estar nadan<strong>do</strong>. Daí só havia um passo para<br />

crer que o trabalho, que parecia sob os traços <strong>do</strong> progresso técnico,<br />

representava uma gran<strong>de</strong> conquista política.<br />

Nesta tese 11 <strong>do</strong> ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin comenta a<br />

situação alemã sob a <strong>de</strong>sastrosa política da social <strong>de</strong>mocracia. Não se trata, porém,<br />

<strong>de</strong> análise pontual sobre uma situação particular, mas <strong>de</strong> um exemplo da sua<br />

concepção <strong>de</strong> história. Conformismo, supor estar nadan<strong>do</strong> nas correntezas <strong>do</strong><br />

progresso, corromper a classe operária com promessas <strong>de</strong> conquistas políticas,<br />

essas são as características da história oficial, on<strong>de</strong> o progresso é a i<strong>de</strong>ia obsessiva.<br />

A questão não é a conquista da ciência e da técnica em si, mas a relação <strong>de</strong>sta<br />

conquista com a redução da história à eterna luta pelo po<strong>de</strong>r, através da violência,<br />

afirma Benjamin (1985, p. 224ss):<br />

Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer<br />

apo<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong>la. Pois o Messias não vem apenas como salva<strong>do</strong>r; ele vem<br />

também como vence<strong>do</strong>r <strong>do</strong> AntiCristo. O <strong>do</strong>m <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar no passa<strong>do</strong> as<br />

centelhas <strong>de</strong> esperança é privilégio exclusivo <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r convenci<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

que também os mortos não estão em segurança se o inimigo vencer. E<br />

esse inimigo não tem cessa<strong>do</strong> <strong>de</strong> vencer.<br />

A resposta <strong>de</strong> Benjamin contra o historicismo – a história <strong>do</strong> continuum da<br />

<strong>do</strong>minação – é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar, pela rememoração <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, as forças<br />

que os venci<strong>do</strong>s legaram ao presente revolucionário.<br />

Em seu méto<strong>do</strong>, Benjamin privilegia a arte: a forma artística permite a<br />

emergência da con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia. Ele afirma que ao filósofo cabe <strong>de</strong>screver o<br />

mun<strong>do</strong> das idéias, on<strong>de</strong> se dissolvem os fenômenos; é uma ativida<strong>de</strong> elevada que<br />

está entre a investigação e a arte, pois o artista cria imagens para representar o<br />

48


mun<strong>do</strong> das idéias e o investiga<strong>do</strong>r trabalha com conceitos para organizar o mun<strong>do</strong><br />

ten<strong>do</strong> em vista a dispersão no reino das i<strong>de</strong>ias.<br />

O interesse e a admiração <strong>de</strong> Benjamin pela gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> Melancolia I<br />

<strong>de</strong>vem se analisa<strong>do</strong>s nesta perspectiva. Representar as i<strong>de</strong>ias é tarefa primordial da<br />

filosofia e nisto consiste a importância da arte que produz imagens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das<br />

i<strong>de</strong>ias. A gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> é impregnada <strong>de</strong> símbolos e, ao mesmo tempo, envolta<br />

em atmosfera alegórica <strong>de</strong> múltiplas significações. As análises <strong>de</strong> Klibansky (1989,<br />

p. 540) o caráter alegórico <strong>de</strong> Melancolia I:<br />

Aqui nos <strong>de</strong>paramos com a última questão vital: saber a atitu<strong>de</strong> fundamental<br />

sobre a vida que se acha na gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, sob a genealogia<br />

complicada ao infinito, sob sua fusão <strong>de</strong> vários tipos, sob sua modificação –<br />

digamos francamente sua inversão – <strong>de</strong> velhas formas <strong>de</strong> expressão, e sob<br />

seu <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um esquema alegórico. É a questão da significação<br />

fundamental <strong>de</strong> Melancolia I. (Trad. Livre). 11<br />

O luto <strong>do</strong> Barroco, diferente da apatia estóica, se insere no contexto <strong>do</strong><br />

cristianismo, ou seja, um estoicismo no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação perante a condição<br />

humana e não tem o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> pessimismo racional. As energias <strong>do</strong> corpo são<br />

exteriorizadas quan<strong>do</strong> os afetos são reprimi<strong>do</strong>s. Há a <strong>de</strong>spersonalização, a<br />

alienação <strong>do</strong> corpo. O luto é conseqüência disso: o homem <strong>de</strong>spersonaliza<strong>do</strong>, no<br />

esta<strong>do</strong> patológico, se relacionan<strong>do</strong> com o mun<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> as coisas, por mais<br />

insignificantes que sejam, transformam-se em fonte <strong>de</strong> sabe<strong>do</strong>ria misteriosa.<br />

Se fosse possível procurar uma <strong>de</strong>finição da gravura Melancolia I em<br />

Benjamin, ela estaria na <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> luto extremo <strong>do</strong> Trauerspiel, na condição<br />

patológica da <strong>de</strong>spersonalização resultante da alienação <strong>do</strong> corpo. Com efeito, no<br />

Barroco existe o espírito estóico, o espírito da <strong>de</strong>solação. Essa espécie <strong>de</strong><br />

estoicismo reprime os afetos, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>an<strong>do</strong> a exteriorização das energias<br />

11 Nous voici <strong>do</strong>nc amenés à la <strong>de</strong>rnière question, à la question vitale; savoir, l‟attitu<strong>de</strong> fondamentale<br />

envers la vie qui se trouve sous la gravure <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, sous sa généalogie compliquée à l‟infini, sous sa<br />

fusion <strong>de</strong>s vieux types, sous sa modification – disons carrément son inversion – <strong>de</strong>s vieux formes<br />

d‟expressions, et sous son développement d‟un schéma allégorique. C‟est la question <strong>de</strong> la<br />

signification fondamentale <strong>de</strong> Mélancolia I.<br />

49


presentes no corpo que se aliena. É este homem barroco <strong>de</strong>spersonaliza<strong>do</strong> que se<br />

relaciona com o mun<strong>do</strong>, em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> luto extremo. As menores coisas passam a<br />

ser para ele fonte <strong>de</strong> sabe<strong>do</strong>ria misteriosa. Benjamin atinge aqui o ponto alto <strong>de</strong> sua<br />

pesquisa sobre o Barroco, o que é condizente com seu méto<strong>do</strong>: a fonte fecunda da<br />

sabe<strong>do</strong>ria está em outra relação homem-mun<strong>do</strong> que aquela da tradição racionalista<br />

<strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s indutivos e <strong>de</strong>dutivos. Foi assim a fresta barroca que ele viu na<br />

<strong>de</strong>spersonalização cartesiana. O Barroco tem a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar para tu<strong>do</strong> o<br />

que o homem conseguiu realizar, pois seu interesse <strong>de</strong> pesquisa está no acervo das<br />

bibliotecas, enquanto a Renascença buscava <strong>de</strong>scobrir as leis <strong>do</strong> universo. O objeto<br />

<strong>de</strong> meditação <strong>do</strong> homem barroco está no livro. Benjamin (1984, p. 164) enfatiza a<br />

relação da Melancolia I com a mentalida<strong>de</strong> barroca:<br />

É consistente com este conceito que em torno <strong>do</strong> personagem <strong>de</strong> Albert<br />

<strong>Dürer</strong>, na Melancolia, estejam dispersos no chão os utensílios da vida ativa,<br />

sem qualquer serventia, como objeto <strong>de</strong> ruminação. Esta gravura antecipa<br />

sob vários aspectos o Barroco.<br />

A imagem <strong>de</strong> Melancolia I é o ponto <strong>de</strong> cruzamento <strong>do</strong> pensamento<br />

benjaminiano: está presente nos ensaios sobre Bau<strong>de</strong>laire, Proust, sobre o teatro<br />

épico <strong>de</strong> Brecht, a narrativa, o cinema e sobretu<strong>do</strong> nas teses sobre o conceito da<br />

história. Sobre o passa<strong>do</strong> só é possível <strong>do</strong>is olhares: o olhar <strong>do</strong> historicista<br />

entusiasta <strong>do</strong> progresso e o olhar <strong>do</strong> melancólico. É este que interessa a Benjamin,<br />

pois é o único capaz da sabe<strong>do</strong>ria misteriosa <strong>do</strong> momento <strong>de</strong> ruptura revolucionária.<br />

Que sabe<strong>do</strong>ria afinal revela a Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>? Benjamin cita a<br />

exaustiva pesquisa <strong>de</strong> Panofsky e Saxl, que reconhecem o alcance <strong>de</strong>sta imagem<br />

além <strong>do</strong>s símbolos visuais da linguagem renascentista. <strong>Dürer</strong> vai além <strong>do</strong><br />

estabeleci<strong>do</strong> convencionalmente em sua época. Os pesquisa<strong>do</strong>res falam em<br />

inversões e modificações <strong>de</strong> velhas formas, em genealogia multiplicada ao infinito,<br />

ou seja, em tu<strong>do</strong> o que a gravura tem <strong>de</strong> linguagem alegórica. O que é próprio <strong>de</strong><br />

Melancolia I se <strong>de</strong>ve não só à utilização <strong>do</strong>s símbolos convencionais da<br />

representação da Melancolia, mas à maneira como <strong>Dürer</strong> os utiliza. Panofsky e Saxl<br />

comentam a visão neoplatônica <strong>do</strong> renascentista Ficinus, que nega à melancolia a<br />

natureza imaginativa e só lhe admite a mens contemplativa. Para o pensa<strong>do</strong>r<br />

50


enascentista, a melancolia é própria <strong>do</strong> grau mais alto da vida intelectual, a mens<br />

contemplativa, cessada a faculda<strong>de</strong> imaginativa, própria <strong>do</strong>s matemáticos.<br />

Se <strong>Dürer</strong> dá o título <strong>de</strong> Melancolia I à sua gravura, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> claro que se<br />

tratava da faculda<strong>de</strong> imaginativa, então surge uma questão: por que não criou a<br />

sequência II,III?<br />

Os pesquisa<strong>do</strong>res (Klibansky et al., 1989, p. 545) respon<strong>de</strong>m:<br />

Nisso consiste a gran<strong>de</strong>za da obra <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>: ela vai além das distinções da<br />

medicina, graças a uma imagem on<strong>de</strong> se unem em um to<strong>do</strong>, os fenômenos,<br />

cheios <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> emoção, que as noções convencionais <strong>de</strong><br />

temperamento e <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença tinham retira<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua vitalida<strong>de</strong>; ele concebeu<br />

a melancolia <strong>do</strong>s intelectuais com um <strong>de</strong>stino visível on<strong>de</strong> as diferenças<br />

entre temperamento, <strong>do</strong>ença, e esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito melancólico<br />

<strong>de</strong>saparecem e on<strong>de</strong> a tristeza que <strong>de</strong>prime e o entusiasmo cria<strong>do</strong>r são<br />

igualmente extremos <strong>de</strong> uma única e mesma disposição. (Trad. Livre). 12<br />

A gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> é significativa nesta singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar em uma<br />

imagem forte e convincente os objetos impregna<strong>do</strong>s da vitalida<strong>de</strong>, absolutamente<br />

impossível nas representações convencionais que seguiam as antigas divisões <strong>de</strong><br />

temperamentos, humores ou <strong>do</strong>enças. Esta imagem, enten<strong>de</strong>-se agora, <strong>de</strong>spertou<br />

tanta admiração <strong>de</strong> Benjamin pela totalida<strong>de</strong> da disposição melancólica por ela<br />

representada: a tristeza ou o <strong>de</strong>sgosto que se recolhe e a euforia <strong>do</strong> ato criativo são,<br />

na realida<strong>de</strong>, os extremos <strong>de</strong>sta mesma disposição. Deste mo<strong>do</strong> não haveria motivo<br />

para criar a sequência, uma vez que as faculda<strong>de</strong>s intelectual e contemplativa estão<br />

presentes .Segun<strong>do</strong> a Oculta philosophia <strong>de</strong> Agrippa <strong>de</strong> Nettesheim 13 , o pensa<strong>do</strong>r<br />

12 En cela rési<strong>de</strong> la gran<strong>de</strong>ur <strong>de</strong> l‟oeuvre <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>: Il a surmonté les distintions médicales, grâce à une image ou s‟unissent en<br />

un tout, pleins <strong>de</strong> vie et d‟émotion, les phénomenes que les notions convenues <strong>de</strong> tempérament et <strong>de</strong> maladie avaient<br />

dépouillées <strong>de</strong> leur vitalité; Il a conçu la mélancolie <strong>de</strong>s intellectuels comme une <strong>de</strong>stinée invisible où les differences entre<br />

tempérament, maladie et état d‟esprit mélancolique s‟evanouissent, et où Le chagrin qui couve et l‟enthousiasme créateur ne<br />

sont, à égalité, que les extremes d‟une seule et même disposition.<br />

13<br />

Cf. Klibansky et al., 1989, p. 547ss. Oculta philosophia, impressa e publicada em 1531, é para Panofsky e<br />

Saxl a verda<strong>de</strong>ira fonte interpretativa da Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>. Segun<strong>do</strong> a teoria <strong>de</strong> Agrippa, há três <strong>de</strong>graus <strong>de</strong><br />

inspiração, a saturnina e a melancólica e <strong>do</strong>is <strong>do</strong>mínios em que cada uma opera, o criativo e o profético. O nível<br />

I correspon<strong>de</strong> à imaginação (imaginatio), <strong>do</strong>s espiritos inferiores, cujo <strong>do</strong>mínio criativo é o das artes mecânicas,<br />

como a pintura, a arquitetura, e o <strong>do</strong>m profético <strong>de</strong>ste nível se refere aos acontecimentos naturais, como<br />

terremotos e enchentes. O nível II correspon<strong>de</strong> à razão (Ratio), <strong>do</strong>s espíritos médios, cujo <strong>do</strong>mínio criativo é o<br />

<strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong>s seres naturais e humanos, ou seja, das ciências. O <strong>do</strong>m profético <strong>de</strong>ste nível é <strong>do</strong>s<br />

acontecimentos políticos. O nível III correspon<strong>de</strong> à mente (mens), aos espíritos superiores, cujo <strong>do</strong>mínio criativo<br />

é o <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s divinos, da angeologia e teologia. O <strong>do</strong>m profético <strong>de</strong>ste nível se refere a<br />

acontecimentos religiosos, como o aparecimento <strong>de</strong> novos profetas e novas religiões. A Oculta philosophia, obra<br />

51


alemão intermediário entre a escola florentina <strong>de</strong> Ficinus e <strong>Dürer</strong>, Melancolia I seria<br />

correspon<strong>de</strong>nte à faculda<strong>de</strong> imaginativa. Esta obra é composta pelas i<strong>de</strong>ias<br />

neoplatônicas <strong>de</strong> Ficinus e das teorias antigas, como a das profissões mecânica,<br />

política e filosófica e, ao mesmo tempo, a teoria da tríplice faculda<strong>de</strong> da alma,<br />

compatível com o <strong>do</strong>gma Cristão da Trinda<strong>de</strong>. Para que haja a perfeita realização <strong>de</strong><br />

todas as faculda<strong>de</strong>s é preciso que a alma esteja livre <strong>de</strong> qualquer ocupação. Só<br />

assim a alma toma as três formas indispensáveis a esta realização: <strong>do</strong> sonho, da<br />

contemplação e <strong>do</strong> furor da iluminação. O furor é o humor melancólico <strong>do</strong> corpo<br />

humano que provém da cândida bílis natural; ele conduz à sabe<strong>do</strong>ria e à profecia,<br />

sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> conspira com influência celeste <strong>de</strong> Saturno, astro frio e seco,<br />

mestre da contemplação oculta. É o astro mais alto que eleva a alma pela ciência e<br />

a profecia. Por isso Aristóteles, em Problemata, afirma que, graças à melancolia<br />

certas pessoas são como seres divinos capazes <strong>de</strong> prever o futuro. Klibansky<br />

(Klibansky et al., 1989, p. 567) mostra como a representação <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> transcen<strong>de</strong> o<br />

espírito renascentista:<br />

Agrippa ampliava a autoglorificação <strong>do</strong> círculo exclusivo <strong>do</strong>s humanista em uma<br />

<strong>do</strong>utrina universal <strong>do</strong> gênio, muito antes <strong>do</strong>s teóricos italianos da arte; ele variava o<br />

tema <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ns da melancolia distinguin<strong>do</strong>-os entre seus aspectos subjetivos e seus<br />

efeitos objetivos; equivale dizer, colocan<strong>do</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> o <strong>do</strong>m <strong>de</strong> profecia e o po<strong>de</strong>r<br />

cria<strong>do</strong>r, a visão e a obra acabada. (Trad. Livre). 14<br />

O mérito <strong>de</strong> Agrippa, contrarian<strong>do</strong> o neoplatonismo italiano, foi ampliar a<br />

noção <strong>de</strong> melancolia e <strong>de</strong> gênio saturnino além <strong>do</strong> círculo restrito aos literatos<br />

humanistas renascentistas, juntan<strong>do</strong> os gênios da ação e da visão artística, ou seja,<br />

o <strong>do</strong>m da profecia e o po<strong>de</strong>r cria<strong>do</strong>r, nos três <strong>de</strong>graus ascen<strong>de</strong>ntes. O arquiteto e o<br />

<strong>de</strong>senhista não são inferiores ao religioso ou ao nobre político.<br />

Aqui se coloca a questão: qual é a representação visual que correspon<strong>de</strong> à<br />

teoria <strong>de</strong> Agrippa <strong>de</strong> Nettesheim? Primeiro, seria necessário que tal representação<br />

divida em três livros, conforme os três níveis, trata <strong>de</strong> todas as ativida<strong>de</strong>s que abrangem os espíritos inferiores,<br />

médios e superiores: da feitiçaria àcontemplação religiosa, passan<strong>do</strong> pela astrologia, cabalística, magia, tu<strong>do</strong><br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como a ca<strong>de</strong>ia natural <strong>do</strong> mais ínfimo ao mais superior.<br />

14 Agrippa amplifiait l‟autoglorification du cercle exclusif <strong>de</strong>s humanistes en une <strong>do</strong>ctrine universelle du génie, bien<br />

avant que les théoriciens <strong>de</strong> l‟art italiens n‟en fissent autant; et il variait le thème <strong>de</strong>s <strong>do</strong>ns <strong>de</strong> la mélancolie en<br />

distinguant entre leurs aspects subjectifs et leurs effets objectifs; c‟est-à-dire, en plaçant côte à côte le <strong>do</strong>n <strong>de</strong><br />

prophétie et le pouvoir créateur, la vision et l‟oeuvre accomplie.<br />

52


tivesse uma <strong>figura</strong> sob nuvens, uma vez que é melancólica; essa <strong>figura</strong> <strong>de</strong>veria ser<br />

capaz <strong>de</strong> criar e ser profética, visto que tem o furor contemplativo; ela <strong>de</strong>veria ter o<br />

<strong>do</strong>mínio próprio das artes mecânicas; <strong>de</strong>veria ter o olhar profético capaz <strong>de</strong> prever<br />

catástrofes pela sua faculda<strong>de</strong> imaginativa; uma <strong>figura</strong> que tivesse consciência da<br />

limitação <strong>de</strong> seus po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> conhecer, porque lhe falta a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> receber os<br />

efeitos das capacida<strong>de</strong>s superiores.Esta representação é a própria Melancolia I <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong>. A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Agrippa é a sua <strong>de</strong>scrição.<br />

O esta<strong>do</strong> melancólico é parte integrante <strong>do</strong> drama barroco alemão, como se a<br />

<strong>figura</strong> <strong>alada</strong> da alegoria <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> fosse personagem constante <strong>de</strong>ste teatro. De<br />

to<strong>do</strong>s os símbolos, o que mais interessa a Benjamin é Saturno, representa<strong>do</strong> no<br />

último plano, ao fun<strong>do</strong> da gravura, como um ponto luminoso sem contornos, <strong>do</strong> qual<br />

emana uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> raios, em forma circular. Interessa-lhe sobretu<strong>do</strong> pela<br />

dualida<strong>de</strong> em extremos das influências saturninas. Se o cristianismo medieval havia<br />

reduzi<strong>do</strong> o antigo <strong>de</strong>us <strong>do</strong>s ciclos das sementeiras, das colheitas e <strong>do</strong> <strong>de</strong>scanso em<br />

<strong>de</strong>mônio ceifa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> vidas, no ciclo da morte, a Renascença restaura os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong><br />

Saturno na mais radical dualida<strong>de</strong>.<br />

As pesquisas <strong>de</strong> Panofsky e Saxl, precedidas pelos estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Giehlow,<br />

mostram a relação entre o temperamento melancólico e Saturno: na melancolia<br />

existe, como em Saturno, a dualida<strong>de</strong> característica, num extremo, apatia e preguiça<br />

e em outro, a inteligência e a contemplação. Os saturninos po<strong>de</strong>m tanto sofrer a<br />

mais profunda <strong>de</strong>pressão como o mais eufórico entusiasmo. Saturno, o astro,<br />

correspon<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>us Cronos, sábio e engana<strong>do</strong>, soberano e miserável, fértil e<br />

estéril. Da mesma maneira, o astro pesa<strong>do</strong>, frio e seco, torna as pessoas inclinadas<br />

ao trabalho pesa<strong>do</strong> na terra e, por outro la<strong>do</strong>, como astro mais alto e distante,<br />

<strong>de</strong>sperta os conhecimentos espirituais mais eleva<strong>do</strong>s.<br />

O mérito <strong>de</strong>stas pesquisas é a <strong>de</strong>scoberta da reinterpretação da melancolia<br />

pela magia renascentista, segun<strong>do</strong> a teoria <strong>do</strong> gênio. Afirma Benjamin (1984, p.<br />

173): “O histórico <strong>do</strong> problema da melancolia se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra no espaço <strong>de</strong>sta<br />

dialética.” A magia renascentista consiste em colocar o esta<strong>do</strong> melancólico em<br />

53


consonância astrológica com Saturno, em tu<strong>do</strong> o que o astro tem <strong>de</strong> conflituoso,<br />

situa<strong>do</strong> nas fronteiras entre o mais material e o mais divino. No estu<strong>do</strong> sobre o<br />

drama barroco alemão, Benjamin (1984, p. 173) não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> observar a<br />

força dialética representada na gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>.<br />

Mas a imagem <strong>do</strong> melancólico confrontava uma época que tentava a to<strong>do</strong><br />

preço ace<strong>de</strong>r às fontes <strong>do</strong> saber natural oculto com a questão <strong>de</strong> como<br />

extrair <strong>de</strong> Saturno suas forças espirituais, sem sucumbir à loucura. Era<br />

preciso dissociar a melancolia sublime, a melancolia illa heroica <strong>de</strong> Marcilius<br />

Ficinus e Melanchton, da melancolia vulgar e <strong>de</strong>strutiva.<br />

Para completar a interpretação da representação gráfica <strong>de</strong> Saturno na<br />

alegoria <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, <strong>de</strong>ve-se observar o quadra<strong>do</strong> mágico, sobre a cabeça da <strong>figura</strong><br />

<strong>alada</strong> e, a seu la<strong>do</strong>, a balança. Diante <strong>do</strong> dualismo entre material e espiritual, entre<br />

corpo e alma, sobrepõe-se a força conciliatória <strong>de</strong> Júpiter, simboliza<strong>do</strong> pela balança<br />

e pelo quadra<strong>do</strong>, seu signo planetário. A astrologia <strong>de</strong>svenda as influências<br />

facilita<strong>do</strong>ras conjuntas <strong>do</strong>s astros que permitem ao esta<strong>do</strong> melancólico ace<strong>de</strong>r aos<br />

conhecimentos sublimes.<br />

A gravura Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> apresenta mais <strong>de</strong> trinta objetos <strong>de</strong><br />

simbologia antiga. Esses símbolos <strong>de</strong>vem a interpretação <strong>de</strong> sua conflituosa força<br />

significativa aos humanistas da Renascença. O cão, presente em várias gravuras <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong>, é susceptível à <strong>do</strong>ença da raiva pela <strong>de</strong>generescência <strong>do</strong> baço. Assim ele<br />

simboliza a tristeza <strong>do</strong> melancólico. Mas, por outro la<strong>do</strong>, tem o faro aguçadíssimo e<br />

como tal simboliza a tenacida<strong>de</strong>. A imagem <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> sugere <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> sonho<br />

<strong>de</strong>ste animal que <strong>do</strong>rme: os pesa<strong>de</strong>los e os sonhos proféticos. Os sonhos são a<br />

fonte da sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> melancólico, que provém <strong>do</strong>s abismos da terra, <strong>do</strong> mergulho<br />

para <strong>de</strong>ntro das coisas. Saturno é o <strong>de</strong>us das semeaduras: é da terra que brota a<br />

sabe<strong>do</strong>ria. Para o saturnino nada vem da intuição das superfícies. Os teóricos<br />

renascentistas conseguiram aliar a gravida<strong>de</strong> com a concentração para enten<strong>de</strong>r o<br />

significa<strong>do</strong> da profunda meditação, própria da disposição melancólica, ou seja,<br />

enten<strong>de</strong>r a busca <strong>do</strong> ponto central da circunferência, lugar das verda<strong>de</strong>s mais<br />

profundas.<br />

54


Num plano mais avança<strong>do</strong> ainda <strong>de</strong>sta representação, está a esfera que se<br />

relaciona com o símbolo da meditação profunda. Se para os antigos, a forma<br />

esférica significa as força da concentração e por isso tem lugar privilegia<strong>do</strong> no<br />

universo, para os renascentistas, sua representação nesta gravura significa o<br />

homem contemplativo. É neste símbolo que Benjamin (1984, p. 176) vê “...a<br />

semente que contém toda a riqueza alegórica <strong>do</strong> Barroco, pronta para explodir, mas<br />

ainda refreada pela força <strong>do</strong> gênio.” Gênio, símbolos, beleza são vocábulos <strong>do</strong><br />

classicismo renascentista. Nesta linguagem porém po<strong>de</strong>-se vislumbrar o germe da<br />

complexida<strong>de</strong> da linguagem alegórica barroca. <strong>Dürer</strong> antecipou, sob vários aspectos,<br />

o Barroco, diz Benjamin.<br />

A pedra se <strong>de</strong>staca na gravura pelo seu tamanho, pelas faces lisas e<br />

escorregadias, que não absorvem líqui<strong>do</strong>s. Simboliza a dureza e amargura <strong>do</strong><br />

coração, mas sobretu<strong>do</strong> a inércia e a acedia, sob a influência <strong>de</strong> Saturno, astro frio e<br />

seco, cuja característica é tornar o homem in<strong>de</strong>ciso. No Barroco, o tirano, como um<br />

cão raivoso, é <strong>de</strong>rrota<strong>do</strong> por sua in<strong>de</strong>cisão e o cortesão se torna infiel ao senhor, a<br />

quem trai pelos mesmos efeitos <strong>de</strong>ssa disposição melancólica. A inércia <strong>do</strong> coração<br />

<strong>do</strong> saturnino faz <strong>do</strong> cortesão um trai<strong>do</strong>r. Tal comportamento, comenta Benjamin<br />

(1984, p. 178) é próprio <strong>do</strong>s fracos sujeitos às forças impenetráveis, assumin<strong>do</strong> um<br />

caráter reifica<strong>do</strong>.<br />

Coroa, púrpura e cetro são em última instância a<strong>de</strong>reços cênicos no senti<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> drama <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, e encarnam um Fatum a que se submete em primeiro<br />

lugar o cortesão, áugure <strong>de</strong>ste fa<strong>do</strong>. Sua <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> para com os homens<br />

correspon<strong>de</strong> a uma <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong> impregnada <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção contemplativa,<br />

para com esses objetos. O conceito subjacente a esse comportamento só<br />

po<strong>de</strong> realizar-se a<strong>de</strong>quadamente no contexto <strong>de</strong>ssa fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> sem<br />

esperança à vida da criatura e às leis <strong>de</strong> sua existência culpada. Todas as<br />

<strong>de</strong>cisões essenciais que dizem respeito ao homem po<strong>de</strong>m transgredir os<br />

princípios da lealda<strong>de</strong>, pois tais <strong>de</strong>cisões estão sujeitas a leis mais altas. A<br />

lealda<strong>de</strong> só é completamente apropriada na relação entre o homem e o<br />

mun<strong>do</strong> das coisas.<br />

A melancolia que já existia na beleza clássica renascentista, controlada pelo<br />

gênio através da simbologia – disso a gravura <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> é o exemplo mais perfeito –<br />

realmente explodiu no Barroco na complexida<strong>de</strong> das significações alegóricas. A<br />

forma <strong>do</strong> drama barroco é a expressão <strong>do</strong> homem dilacera<strong>do</strong> viven<strong>do</strong> o embate<br />

55


conflituoso entre extremos; um <strong>de</strong>us <strong>de</strong> duas faces, in<strong>de</strong>ciso entre estar nas<br />

profun<strong>de</strong>zas <strong>do</strong>s abismos e alçar os vôos mais altos ao sublime da espiritualida<strong>de</strong>.<br />

Nisso consiste seu esta<strong>do</strong> melancólico, feito daquela melancolia trans<strong>figura</strong>da que o<br />

classicismo apresentou pelos símbolos, como elemento fundamental <strong>do</strong> gênio<br />

cria<strong>do</strong>r. No Barroco porém ela está escancarada nas <strong>figura</strong>ções <strong>do</strong> drama: a<br />

in<strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> soberano, que mesmo em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exceção, é paralisa<strong>do</strong>, não<br />

consegue <strong>de</strong>cidir. O cortesão, por sua vez, trai o soberano e este comportamento é<br />

significativo na medida em que transfere o foco da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> para o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />

objetos: o homem barroco se torna fiel <strong>de</strong>voto <strong>do</strong>s a<strong>de</strong>reços cênicos: a coroa, o cetro<br />

e a púrpura. Tal apego às coisas não passa da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> sem esperança à vida,<br />

própria da existência culpada da criatura. É uma lealda<strong>de</strong> reificada, isto é, entre<br />

homem e coisa e não entre homens. Eis o espírito da melancolia: trair pelo saber e<br />

contemplar as coisas mortas para tentar salvá-las, o que se inscreve na dialética <strong>do</strong><br />

conflito entre fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao mun<strong>do</strong> material no qual se reflete a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao sublime.<br />

<strong>Dürer</strong> está <strong>de</strong> certa forma preso à tradição humoral e astrológica da Ida<strong>de</strong><br />

Média, o que exige um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>rivação histórica da gravura Melancolia I. Não<br />

se trata <strong>de</strong> saber o que <strong>Dürer</strong> fez da tradição, mas <strong>do</strong>s elementos que ele incorporou<br />

em sua obra. Um <strong>de</strong>sses elementos pesquisa<strong>do</strong>s por Klibansky, Panofsky e Saxl é o<br />

rosto apoia<strong>do</strong> sobre a mão, cujas significações primeiras são o <strong>de</strong>sgosto, o cansaço<br />

e a meditação. A estas se acrescenta a avareza, típica <strong>do</strong> temperamento<br />

melancólico, uma vez que o punho está cerra<strong>do</strong>.<br />

O artista pô<strong>de</strong> encontrar muita representação <strong>do</strong> aspecto <strong>do</strong>entio <strong>do</strong><br />

melancólico, como o rosto entristeci<strong>do</strong> <strong>do</strong>n<strong>de</strong> se projeta um olhar fixo, a cor terrosa<br />

<strong>do</strong> corpo, a face negra. Mas o semblante <strong>de</strong> sua melancolia comunica, acima <strong>de</strong><br />

tu<strong>do</strong>, uma emoção, um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito. A alegoria <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> supera a tradição em<br />

to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, diz Klibansky (klibansky et al., 1989, p. 569), “...mais la femme <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong>, que seules ses ailes distinguent <strong>de</strong> toutes les autres représentations, est une<br />

réalisation symbolique <strong>de</strong> “Melancholia” 15 , é a imagem concreta que dispensa a<br />

legenda “a melancolia é assim.” Dentro da concepção da harmonia renascentista<br />

15 Mas a mulher <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, cujas asas a diferenciam <strong>de</strong> todas as outras representaçoes, é uma realização simbólica<br />

<strong>de</strong> “Melancolia”. (Trad. Livre ).<br />

56


não po<strong>de</strong>ria haver a perfeição da ativida<strong>de</strong> racional sem a capacida<strong>de</strong> cotidiana.<br />

Esta é a significação da <strong>figura</strong> <strong>do</strong> putto, 16 igualmente <strong>alada</strong>, porém, diferentemente<br />

da Melancolia, esta criança é representada em plena ação. Este é o fundamento da<br />

arte: não existe ciência sem prática. O putto significa o próprio artista absorto na<br />

prática criativa e nisso sua postura corporal contrasta com a <strong>figura</strong> da Melancolia: é<br />

reflexivo, o olhar atento ao trabalho, mãos soltas, em tu<strong>do</strong> completamente o oposto<br />

da paralisia melancólica.<br />

Segun<strong>do</strong> ainda os pesquisa<strong>do</strong>res, a característica essencial da Melancolia I<br />

<strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> é que ela é absolutamente indiferente aos utensílios que estão a sua volta,<br />

como auxiliares <strong>do</strong> espírito e das mãos. Esses objetos não existem para ela, pois<br />

seu olhar os ignora. A serra a seus pés, a roda quebrada e encostada na pare<strong>de</strong>, o<br />

livro fecha<strong>do</strong> por um fecho sobre seu joelho, a esfera no chão , o compasso, tu<strong>do</strong><br />

isso não serve para nada. Isso leva a crer que Melancolia I se refere à melancolia<br />

preguiçosa, <strong>de</strong> uma tristeza <strong>de</strong>smedida. <strong>Dürer</strong> conhecia as representações <strong>de</strong>ste<br />

tipo inferior <strong>de</strong> melancolia. Se <strong>Dürer</strong> utilizou certos elementos tradicionais, a gravura,<br />

no conjunto, é a síntese simbólica. Panofsky inclui inteiramente a Melancolia I <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>do</strong> espírito renascentista ao ver na obra a harmonia <strong>do</strong> símbolo, a realização<br />

simbólica e imagem concreta <strong>de</strong> algo abstrato. Benjamin (1984, p. 184) confirma:<br />

Este consiste , numa palavra, em <strong>de</strong>nunciar a alegoria ven<strong>do</strong> nela um mo<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> ilustração, e não uma forma <strong>de</strong> expressão. As paginas seguintes<br />

tentarão <strong>de</strong>monstrar, pelo contrário, que a alegoria não é frívola técnica <strong>de</strong><br />

ilustração por imagens, mas expressão, como a linguagem, e como a<br />

escrita.<br />

Benjamin discute a questão da alegoria como expressão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong><br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> concisão <strong>do</strong> símbolo, que, como um relâmpago ilumina a noite escura. O<br />

símbolo diz respeito ao momentâneo instante místico, em que recebe o senti<strong>do</strong>. A<br />

dialética da alegoria consiste no aprofundamento <strong>de</strong>ntro da distância entre a imagem<br />

e sua significação. Benjamin (1984, p. 188) revela o alcance da alegoria:“O estu<strong>do</strong><br />

16<br />

A palavra putto se refere a uma <strong>figura</strong> <strong>de</strong> criança nua, geralmente <strong>do</strong> sexo masculino, que na Melancolia I <strong>de</strong><br />

<strong>Dürer</strong> aparece <strong>alada</strong>. Esta <strong>figura</strong> é representada principalmente no perío<strong>do</strong> renascentista e barroco das artes<br />

visuais.<br />

57


da forma <strong>do</strong> drama barroco revela, mais claramente que qualquer outro, a violência<br />

<strong>de</strong>sse movimento dialético, no interior <strong>do</strong>s abismos alegóricos.”<br />

A <strong>figura</strong> coroada e <strong>alada</strong>, <strong>de</strong> alegórica foi elevada à condição <strong>de</strong> símbolo,<br />

significan<strong>do</strong> a fusão da arte cria<strong>do</strong>ra com o homem melancólico. Po<strong>de</strong>-se dizer que<br />

existe o movimento em duas direções: elevar o temperamento triste, terroso às<br />

alturas <strong>do</strong>s problemas intelectuais e o rebaixamento da capacida<strong>de</strong> intelectual ao<br />

fracasso humano. É o que evi<strong>de</strong>nciam os objetos dispersos e sem utilida<strong>de</strong>. O<br />

semblante <strong>de</strong>sta <strong>figura</strong> é <strong>de</strong> um espírito preocupa<strong>do</strong> com as visões interiores e não<br />

tem intenção <strong>de</strong> utilizar esses utensílios. Significa enfim a combinação da ativida<strong>de</strong><br />

intelectual da arte com o sofrimento da alma humana, ou seja, <strong>do</strong> gênio ala<strong>do</strong>. Cada<br />

<strong>de</strong>talhe <strong>do</strong>s símbolos toma<strong>do</strong>s da tradição, na Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> adquirem um<br />

significa<strong>do</strong> novo: por exemplo, o punho cerra<strong>do</strong> que sustenta o rosto <strong>de</strong>ixa<br />

transparecer que existe um problema não resolvi<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> entendi<strong>do</strong>.<br />

O olhar da Melancolia, com gran<strong>de</strong>s olhos bem abertos, fitam o reino <strong>do</strong><br />

invisível da mesma maneira que sua mão procura enten<strong>de</strong>r o impalpável. O branco<br />

<strong>do</strong>s olhos contrasta com a sombra que cai sobre a face, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

espírito, típico <strong>do</strong> pensamento profun<strong>do</strong>. A paisagem é <strong>de</strong> uma atmosfera in<strong>de</strong>finida<br />

entre a luz e a sombra. A <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> é igualmente in<strong>de</strong>finida, coroada <strong>de</strong> louros<br />

mas sem vitória, sentada diante da casa inacabada, cercada <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong><br />

trabalho e indiferente a eles. De cabelos mal pentea<strong>do</strong>s, com chaves que não abrem<br />

nada, é a imagem <strong>do</strong>s limiares em que se <strong>de</strong>tém este gênio ala<strong>do</strong>, sem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cidir<br />

entre a luz e a sombra. Benjamin (1984, p. 179) expõe o objeto da contemplação<br />

alegórica: “A melancolia trai o mun<strong>do</strong> pelo saber. Mas em sua tenaz autoabsorção, a<br />

melancolia inclui as coisas mortas em sua contemplação, para salvá-las.”<br />

A Melancolia I se explica pelos símbolos <strong>de</strong> Saturno e pelos símbolos da<br />

geometria. Os símbolos associa<strong>do</strong>s a Saturno, punho cerra<strong>do</strong> apoian<strong>do</strong> a cabeça,<br />

bolsa e chaves, semblante sombrio, são da tradição. Além <strong>de</strong>sses, há outros<br />

conheci<strong>do</strong>s da tradição, como o cão, associa<strong>do</strong> muitas vezes à disposição saturnina,<br />

o morcego, como símbolo da <strong>do</strong>ença e da vigilância noturna. O mar com pequenos<br />

58


arcos tem várias referencias às viagens <strong>de</strong> Saturno, o arco-íris e a enchente que<br />

inunda as árvores significam o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s melancólicos <strong>de</strong> prever catástrofes. A<br />

coroa ostentada na fronte significa os po<strong>de</strong>res intelectuais da melancolia como<br />

antí<strong>do</strong>to da própria melancolia; outro antí<strong>do</strong>to é o quadra<strong>do</strong> <strong>do</strong> número quatro, como<br />

talismã para atrair as influências curativas <strong>de</strong> Júpiter, representa<strong>do</strong><br />

matematicamente. Esses antí<strong>do</strong>tos não são suficientes para <strong>de</strong>sviar a melancolia <strong>do</strong><br />

triste <strong>de</strong>stino.<br />

Os utensílios espalha<strong>do</strong>s, como o compasso, o martelo, a plaina, o prédio<br />

inacaba<strong>do</strong>, o bloco <strong>de</strong> pedra, dizem respeito à ciência da geometria, astrologia e<br />

astrologia, isto é, para a construção e para a interpretação <strong>do</strong>s astros. A balança<br />

significa a medida <strong>do</strong> peso e <strong>do</strong> tempo. Essa alusão às profissões tem relação com a<br />

influência que Saturno exerce sobre as pessoas, ou seja, a tristeza e a melancolia.<br />

To<strong>do</strong>s os símbolos pertencem à geometria e à melancolia ao mesmo tempo, pois é<br />

Saturno que as governa. Assim a gravura é a <strong>figura</strong> simbólica unificada em Saturno-<br />

geometria-melancolia.<br />

Depois da análise da gravura Melancolia I, em que privilegia o símbolo,<br />

Panofsky distingue o <strong>Dürer</strong> da juventu<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Dürer</strong> da velhice. O <strong>Dürer</strong> já velho e<br />

<strong>do</strong>ente se <strong>de</strong>dica aos temas religiosos, principalmente a partir da obra “Os Quatro<br />

Apóstolos” que retrata João, Pedro, Marcos e Paulo. Essa representação pictórica<br />

correspon<strong>de</strong> aos quatro temperamentos da tradição. Paulo é o melancólico. No<br />

espírito da Reforma, sua melancolia porém não simboliza o espírito da arte, cujo<br />

po<strong>de</strong>r advém da imaginação, mas é o símbolo <strong>do</strong> homem espiritual, <strong>do</strong> herói da fé.<br />

Assim a melancolia, para <strong>Dürer</strong>, sofre uma profunda transformação, como se fosse a<br />

Melancolia III, a <strong>do</strong> conhecimento religioso, como se a Melancolia I não fosse<br />

suficiente para exprimir a gran<strong>de</strong>za humana. Panofsky (Klibansky et al., 1989, p.<br />

628) observa o amálgama religioso-humano da Renascença:<br />

Para Aristóteles, o valor da disposição melancólica residia na sua aptidão às<br />

gran<strong>de</strong>s realizações em to<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio possível; a benção que a Ida<strong>de</strong> Média<br />

viu na “<strong>do</strong>ença melancólica” foi um bem moral mais <strong>do</strong> prático, assim<br />

protegia o homem das tentações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Na Renascença, e<br />

particularmente em <strong>Dürer</strong>, a consciência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r criativo humano<br />

59


misturava-se pela primeira vez com a aspiração da plenitu<strong>de</strong> religiosa.<br />

(Trad. Livre). 17<br />

A exaustiva pesquisa <strong>de</strong> Panofsky sobre to<strong>do</strong>s os cruzamentos históricos<br />

conti<strong>do</strong>s na gravura Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> e principalmente sobre a gênese e o<br />

significa<strong>do</strong> da multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> símbolos, não consegue <strong>de</strong>svendar por completo a<br />

intenção <strong>do</strong> artista; isso os autores <strong>de</strong>ixam transparecer quan<strong>do</strong> tratam da relação<br />

entre símbolo e alegoria, on<strong>de</strong> fica claro que não reconhecem a potencialida<strong>de</strong> da<br />

linguagem alegórica.<br />

A tarefa <strong>de</strong> reconhecer a amplitu<strong>de</strong> da linguagem alegórica coube a Benjamin,<br />

na obra Origem <strong>do</strong> Barroco Alemão. O entusiasmo com o qual ele se refere à<br />

Melancolia I se explica exatamente por esta potencialida<strong>de</strong>. A linguagem barroca é<br />

alegórica, isto é, dizer várias coisas através <strong>de</strong> uma coisa só. Nisso ela se distingue<br />

<strong>do</strong> símbolo. A própria pesquisa <strong>de</strong> Panofsky conclui, por exemplo, que Saturno tem<br />

uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s.<br />

Se o símbolo diz respeito ao momentâneo instante místico em que recebe o<br />

senti<strong>do</strong>, a dialética da alegoria, afirma Benjamin, consiste no aprofundamento <strong>de</strong>ntro<br />

da distância entre o visual e sua significação. “O estu<strong>do</strong> da forma <strong>do</strong> drama barroco<br />

revela mais claramente que qualquer outro a violência <strong>de</strong>ste movimento dialético, no<br />

interior <strong>do</strong>s abismos alegóricos.” (BENJAMIN, 1984, p. 188). Tal violência dialética<br />

não po<strong>de</strong>ria ocorrer no âmbito <strong>do</strong> espírito <strong>de</strong> harmoniosa perfeição <strong>do</strong> belo, <strong>do</strong> bom<br />

e <strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro renascentista, por isso Benjamin enfatiza que Melancolia I já<br />

continha tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> alegórico que iria explodir no Barroco. Enfim, conclui, esta obra<br />

antecipa em muitos senti<strong>do</strong>s a linguagem alegórica barroca. Benjamin reconceitua a<br />

alegoria em Bau<strong>de</strong>laire.<br />

17 Pour “Aristote”, la valeur <strong>de</strong> la disposition mélancolique avait résidé dans son aptitu<strong>de</strong> aux grands accomplissements en tout<br />

<strong>do</strong>maine possible; la bénédiction que le Moyen Âge avait vue dans la “maladie mélancolique” avait été un bien moral plutôt que<br />

pratique, en ce qu‟elle protégeait l‟homme <strong>de</strong>s tentations du mon<strong>de</strong>. À la Renaissance, et particulièrement chez <strong>Dürer</strong>, la<br />

conscience <strong>de</strong> la puissance créatice humaine s‟amalgamait pour la première fois avec l‟aspiration à la plenitu<strong>de</strong> religieuse.”<br />

60


2.1. O nome e a escrita<br />

Capítulo II<br />

Melancolia e linguagem<br />

A i<strong>de</strong>ia é algo linguístico, o elemento<br />

simbólico presente na essência da palavra.<br />

W. BENJAMIN ORIGEM DO DRAMA BARROCO<br />

ALEMÃO<br />

Os conteú<strong>do</strong>s espirituais (e a vida espiritual) <strong>de</strong>terminam, segun<strong>do</strong> Benjamin,<br />

a linguagem em senti<strong>do</strong> amplo e não apenas a comunicação pela palavra. Quan<strong>do</strong><br />

se fala da linguagem da música, da escultura ou da técnica, não se trata <strong>de</strong><br />

conteú<strong>do</strong> imediato e específico <strong>de</strong> cada objeto, mas <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> espiritual das<br />

ativida<strong>de</strong>s humanas. Se a língua é sempre expressão humana <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>s<br />

espirituais , tu<strong>do</strong> o que existe na natureza, até os seres inanima<strong>do</strong>s, participam da<br />

linguagem como expressão <strong>de</strong>sses conteú<strong>do</strong>s. Afirma Benjamin (2000, p. 143):<br />

“Nesse contexto, a linguagem é o princípio que serve para comunicar conteú<strong>do</strong>s<br />

espirituais nos objetos em questão, técnica, arte, justiça e religião.” (trad. Livre). 18<br />

Tu<strong>do</strong> se expressa e expressa sua essência espiritual. Nesse senti<strong>do</strong>, conclui<br />

Benjamin (2000, p. 144s), toda expressão é linguagem:<br />

O que é comunicável em uma essência espiritual é sua essência lingüística.<br />

A linguagem comunica as respectivas essências lingüísticas das coisas,<br />

mas suas essências espirituais só são comunicadas na medida em que se<br />

encontrem encerradas em sua essência lingüística, na medida em que elas<br />

sejam comunicáveis. (Trad. Livre). 19<br />

Benjamin faz assim a distinção entre essência espiritual e essência da<br />

linguagem. Em uma língua, por exemplo, o que se comunica é algo que se diferencia<br />

<strong>de</strong>la: a essência espiritual. Entre essência espiritual e essência linguística existe<br />

18<br />

“Dans ce contexte, le langage est le príncipe qui sert à communiquer <strong>de</strong>s contenus spirituels dans les <strong>do</strong>maines envisagés,<br />

technique, art, justice ou religion.”<br />

19<br />

“ Ce qui est communicable dans une essence spirituelle, c‟est son essence linguistique. Le langage, par consequent,<br />

communiqué quelle qu‟elle puisse être, l‟essence linguistique <strong>de</strong>s choses, mais ne communique leur essence spirituelle que<br />

dans la mesure où cette <strong>de</strong>rnière est immediatament contenue dans l‟essence linguistique, dans la mesure où elle peut être<br />

communiqué.”<br />

61


apenas o elo que as une ou que as i<strong>de</strong>ntifica: o que é comunicável. E o filósofo chega<br />

ao primeiro ponto fundamental da reflexão sobre a linguagem: a essência espiritual se<br />

comunica na língua e não através da língua. A essência espiritual é expressa naquilo<br />

que ela é essência <strong>de</strong> linguagem, comunicável portanto. A essência espiritual <strong>de</strong> uma<br />

coisa, enquanto comunicável, não é a própria coisa, mas a coisa na expressão e na<br />

comunicação, a coisa-língua. A linguagem é aquilo que é comunicável em sua<br />

essência espiritual e o que é comunicável é a própria língua, sem mediações. A<br />

imediaticida<strong>de</strong> da comunicação lhe confere o senti<strong>do</strong> mágico da língua, sua infinitu<strong>de</strong>,<br />

algo incomensurável e único. 20 Toda língua comunica-se a si mesma e em si mesma.<br />

Ela é a essência espiritual comunicável das coisas. A essência lingüística das coisas<br />

e <strong>do</strong> ser humano é a sua linguagem.<br />

Quanto ao ser humano entretanto existe a especificida<strong>de</strong> da expressão em<br />

palavras. Sua essência espiritual é comunicada quan<strong>do</strong> ele nomeia todas as coisas.<br />

Nomear é a característica própria da língua humana, é a essência <strong>de</strong> sua linguagem.<br />

Benjamin enfatiza a questão <strong>do</strong> nomear como central na reflexão sobre a linguagem:<br />

as coisas se comunicam ao homem, por isso ele as nomeia, ou melhor, ele se<br />

comunica ao nomeá-las, o que se dá no conhecimento e na arte, por exemplo. E a<br />

questão central se explicita, segun<strong>do</strong> Benjamin (2000, p. 147), da seguinte forma:<br />

“...no nome a essência espiritual <strong>do</strong> homem se comunica a Deus.” (Trad. Livre). 21<br />

20 Benjamin voltaria ao tema da magia na linguagem através <strong>do</strong> ensaio A <strong>do</strong>utrina das semelhanças, escrito<br />

<strong>de</strong>zessete anos <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> ensaio Sobre a linguagem em geral e a linguagem <strong>do</strong> homem. Sobre as semelhanças,<br />

Benjamin afirma que existe a semelhança extra-sensível, aproximan<strong>do</strong>-se das teorias místicas e teológicas, não<br />

significan<strong>do</strong> com isso <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o âmbito empírico da linguagem. Ele dá o exemplo <strong>de</strong> palavras, em várias<br />

línguas, com o mesmo significa<strong>do</strong>, que são semelhantes quanto ao significa<strong>do</strong> central, apesar <strong>de</strong> não terem<br />

nenhuma semelhança quanto ao aspecto empírico. Basta lembrar a relação entre a palavra oral e a escrita, entre<br />

o fala<strong>do</strong> e o intenciona<strong>do</strong> (significa<strong>do</strong>), entre o escrito e o intenciona<strong>do</strong> e entre o fala<strong>do</strong> e o escrito. Essas<br />

ligações se dão pelas semelhanças extra-sensíveis. A gênese da escrita e da linguagem oral advém das<br />

semelhanças localizadas no inconsciente <strong>do</strong> autor. É a dimensão mágica da linguagem. “O contexto significativo<br />

conti<strong>do</strong> nos sons da frase é o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual emerge o semelhante, num instante, com a velocida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

relâmpago.” (BENJAMIN, 1985, p. 112). Existe uma leitura que vai além da significação profana para atingir a<br />

significação mágica: o astrólogo, além da leitura da posição <strong>do</strong>s astros, ele lê também o futuro e o <strong>de</strong>stino a<br />

partir daquela leitura. É algo supra-sensível, ou seja, é o <strong>do</strong>m mimético que está presente na linguagem, em<br />

forma <strong>de</strong> semelhanças extra-sensíveis. A força primitiva da percepção <strong>do</strong> semelhante está na linguagem, o<br />

médium on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> se relaciona <strong>de</strong> forma mágica, isto é, em sua essência: a magia latente na re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

correspondências extra-sensíveis, como “substancias mais fugazes e <strong>de</strong>licadas”. (Benjamin, 1985, p. 112).<br />

21 “[...]dans le nom l‟essence spirituelle <strong>de</strong> l‟homme se communique à Dieu”.<br />

62


Benjamin <strong>de</strong>scarta assim a concepção burguesa que consi<strong>de</strong>ra a linguagem uma troca<br />

<strong>de</strong> merca<strong>do</strong>ria, on<strong>de</strong> a palavra é o meio, a coisa é o objeto e o ser humano o<br />

<strong>de</strong>stinatário. Para a concepção teológica da linguagem entretanto não se trata <strong>de</strong><br />

meio, objeto e <strong>de</strong>stinatário e sim <strong>de</strong> uma imediatez da comunicação <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> próprio<br />

nome, essência da língua.<br />

Para Benjamin (2000, p. 148), o nome é a palavra-chave da linguagem, nele a<br />

língua se comunica <strong>de</strong> forma absoluta e a linguagem se <strong>de</strong>fine como a essência<br />

espiritual <strong>do</strong> homem comunicável.<br />

Por isso o homem é o senhor da natureza e capaz <strong>de</strong> nomear as coisas.<br />

Somente por meio da essência lingüística das coisas chega ele a conhecêlas,<br />

partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> si mesmo – no nome. A criação <strong>de</strong> Deus completa-se no<br />

momento em que as coisas recebem seus nomes <strong>do</strong> homem, a partir <strong>de</strong><br />

quem, no nome, só a língua fala. (Trad. Livre). 22<br />

A essência espiritual é a língua que se comunica no nome, em outras palavras,<br />

a comunicabilida<strong>de</strong> da essência espiritual se efetiva <strong>de</strong> forma absoluta no nome. A<br />

capacida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> nomear, diferentemente da linguagem das coisas, torna o<br />

homem o centro da linguagem, uma vez que toda a natureza comunica-se na língua.<br />

Por esta mesma capacida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>-se afirmar que o homem é o único que fala.<br />

Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> principio <strong>de</strong> que não existe um conteú<strong>do</strong> da linguagem pois ela comunica<br />

uma essência espiritual, ou seja, é comunicabilida<strong>de</strong> pura e simples, Benjamin expõe o<br />

problema da diferença entre as línguas. Para o filósofo essas diferenças estão nos<br />

meios que se distinguem pela <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>do</strong> nomea<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> nome. São esferas que,<br />

distintas, se correspon<strong>de</strong>m.<br />

Equiparadas a essência espiritual e a essência lingüística, Benjamin lança mão<br />

<strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> revelação da filosofia da religião. Tal procedimento argumentativo não<br />

tem caráter <strong>de</strong> exegese e nem se fundamenta para Benjamin (2000, p. 152),<br />

objetivamente na Bíblia como base <strong>de</strong> sua reflexão:<br />

22 “C‟est pourquoi l‟homme est le maître <strong>de</strong> la nature et peut dénommer les choses. C‟est seulement par l‟essence linguistique<br />

<strong>de</strong>s choses qu‟il atteint <strong>de</strong> lui-même à leur conaissance – dans le nom. La création divine s‟achève lorsque les choses reçoivent<br />

leur nom <strong>de</strong> l”homme. Cet homme à partir duquel, dans le nom, le langue parle.”<br />

63


[...] e a Bíblia é, por ora, insubstituível nesse projeto, somente porque a<br />

presente reflexão a segue, segun<strong>do</strong> o princípio <strong>de</strong> que, nela, a língua é<br />

pressuposta como uma realida<strong>de</strong> última, passível <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração somente<br />

em seu <strong>de</strong>senvolvimento, inexplicável e mística. (Trad. Livre). 23<br />

O conceito <strong>de</strong> revelação expõe o conflito da estrutura lingüística entre o<br />

expresso (exprimível) e o inexprimível (inexpresso). Assim Benjamin (2000, p. 151) o<br />

resolve: “Eis pois nossa tese: quanto mais profun<strong>do</strong>, isto é, quanto mais existente e<br />

real for o espírito, tanto mais exprimível e expresso...” (Trad. Livre). 24 “...no nome a<br />

essência espiritual <strong>do</strong> homem se comunica a Deus.” (Trad. Livre). 25<br />

Esse é o senti<strong>do</strong> da revelação: tornar o mais expresso em puramente espiritual<br />

através da íntima relação entre espírito e língua. A essência espiritual expressa tem a<br />

característica divina da intangibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Verbo. É exatamente no nome que se<br />

expressa aquilo que é o espiritual mais eleva<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> a revelação. A linguagem <strong>do</strong><br />

homem, conforme a religião e segun<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> revelação, significa a essência<br />

espiritual mais elevada. Benjamin, ao distinguir a língua das coisas e a linguagem<br />

humana, observa que o som, nega<strong>do</strong> às coisas, é o puro princípio formal da<br />

linguagem. Ainda que as coisas se comuniquem materialmente, há um relacionamento<br />

mágico entre elas. Mas, pelo som, a linguagem humana é imaterial e espiritual em sua<br />

comunicação com as coisas. O homem, segun<strong>do</strong> a Bíblia, recebeu <strong>de</strong> Deus o sopro da<br />

vida, isto é, vida, língua e espírito. No relato bíblico, Deus, no próprio ato <strong>de</strong> criação,<br />

diferencia o homem das <strong>de</strong>mais criaturas: ele é feito <strong>de</strong> barro e <strong>de</strong>pois recebe o <strong>do</strong>m<br />

da linguagem, tornan<strong>do</strong>-se superior a elas. Benjamin enfatiza a íntima relação,<br />

existente no relato bíblico, entre ato cria<strong>do</strong>r e linguagem, entre o “faça-se” e “ele<br />

chamou”. Benjamin (2000, p. 153) diz: “Ele principia com a onipotência da<br />

linguagem,e, ao final: a linguagem, por assim dizer, incorpora o cria<strong>do</strong>, nomean<strong>do</strong>-o.”<br />

(Trad. Livre). 26<br />

23 [...]” et la Bible n’est au <strong>de</strong>part indispensable à notre projet que parce que nous la suivrons ici dans son<br />

príncipe en préssupposant avec elle le langage comme une réalité <strong>de</strong>rnière, inexplicable, mystique, qui ne peut<br />

être observée que dans son développement.”<br />

24 “Car ici la thèse <strong>de</strong>clare que plus l‟esprit est profon<strong>de</strong>, c‟est à dire existent et réel, plus Il est exprimable et exprimé”.<br />

25 “[...]dans le nom l‟essence spirituelle <strong>de</strong> l‟homme se communique à Dieu”.<br />

26 “Il commence avec la toute-puissance créatice du langage, et pour finir le langage s‟incorpore em quelque sorte le créé, Il le<br />

dénomme.”<br />

64


Linguagem é palavra e nome, o acabamento da criação, ela mesma o elemento<br />

cria<strong>do</strong>r. Palavra e nome engendra conhecimento e ato cria<strong>do</strong>r que só em Deus<br />

existem <strong>de</strong> forma absoluta. Benjamin (2000, p. 154) chega então à conclusão<br />

fundamental <strong>de</strong> sua teoria da linguagem: “Isso significa que Deus fez com que as<br />

coisas fossem cognoscíveis em seus nomes. O homem, porém, as nomeia à medida<br />

<strong>do</strong> conhecimento.” (Trad. Livre). 27<br />

Deus como que outorga ao homem o <strong>do</strong>m <strong>de</strong> nomear, isto é, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criar e<br />

o <strong>de</strong> conhecer. Ele entrega ao homem a língua pela qual havia cria<strong>do</strong> e nomea<strong>do</strong> a<br />

natureza. Conclui-se pois que a essência espiritual <strong>do</strong> homem é a língua que<br />

possibilita a criação. Há porém que se fazer aqui a distinção seguinte: o ato cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />

Deus ocorreu no Verbo, na palavra que é a essência linguística <strong>de</strong> Deus. A linguagem<br />

humana é reflexo <strong>do</strong> Verbo (cria<strong>do</strong>r) no nome (conhecimento). A infinitu<strong>de</strong> da<br />

linguagem humana não é absoluta, não tem o po<strong>de</strong>r cria<strong>do</strong>r da palavra <strong>de</strong> Deus. Ela<br />

se restringe ao conhecimento, ou seja, ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nomear. Eis a distinção que<br />

Benjamin estabelece entre palavra e nome.<br />

O nome é o ponto em que a linguagem humana participa da infinitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> puro<br />

Verbo divino, como palavra finita e conhecimento. Dentre as criaturas, o homem é o<br />

único que nomeia – po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> por Deus – e o único que não foi nomea<strong>do</strong>. O<br />

homem nomeia seus filhos e este nome não correspon<strong>de</strong> ao conhecimento <strong>do</strong><br />

nomea<strong>do</strong>, mas significa a palavra cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Deus, ou seja, sua criação expressa<br />

pelo homem. Nesta ligação com a palavra cria<strong>do</strong>ra, conclui Benjamin (2000, p. 156), o<br />

homem se une à língua das coisas. “A palavra humana é o nome das coisas.” (Trad.<br />

Livre). 28<br />

É uma outra comunhão com a palavra cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Deus. Por isso Benjamin refuta a<br />

concepção burguesa <strong>de</strong> linguagem, que não passa <strong>de</strong> convenções <strong>de</strong> signos<br />

inventa<strong>do</strong>s. Por outro la<strong>do</strong>, observa o filósofo (2000,p. 156), a palavra não é a<br />

essência da coisa. Assim ele esclarece este ponto fundamental <strong>de</strong> sua teoria:<br />

27 “C‟est-a-dire: Dieu en leur <strong>do</strong>nnant un nom, a rendu les choses connaissables; mais c‟est dans la<br />

mesure ou Il les connaît que l‟homme leur <strong>do</strong>nne um nom”.<br />

28 “Le verbe humain est le nom <strong>de</strong>s choses”.<br />

65


[...] pois a coisa em si não tem a palavra, ela foi criada da<br />

palavra <strong>de</strong> Deus e reconhecida em seu nome segun<strong>do</strong> a palavra<br />

<strong>do</strong> homem. Esse conhecimento da coisa não é, contu<strong>do</strong>, uma<br />

criação espontânea, ele não acontece, como a criação, a partir<br />

da língua , <strong>de</strong> maneira absoluta, ilimitada e infinita; o nome que o<br />

homem dá à coisa repousa sobre a maneira com que ela se<br />

comunica a ele.” (Trad. Livre). 29<br />

Desta maneira a palavra <strong>de</strong> Deus se irradia das coisas, não como criação,<br />

mas como magia muda no nome: é como a natureza se comunica ao homem.<br />

Benjamin introduz neste contexto o conceito <strong>de</strong> tradução, no senti<strong>do</strong> da tradução da<br />

linguagem das coisas na linguagem <strong>do</strong>s homens. Ela é linguisticamente a conexão<br />

entre concepção e espontaneida<strong>de</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um conceito amplo que abrange os<br />

estratos mais profun<strong>do</strong>s da teoria da linguagem . Não se trata portanto <strong>de</strong><br />

igualda<strong>de</strong>s e semelhanças abstratas e fixas, afirma Benjamin (2000, p. 157), “A<br />

tradução é a transposição <strong>de</strong> uma linguagem para outra por meio <strong>de</strong> um continuum<br />

<strong>de</strong> transformações.” (Trad. Livre). 30 A tradução da língua das coisas para a língua<br />

<strong>do</strong>s homens agrega conhecimento, pois esta é mais perfeita, não é muda e, além<br />

disso, é tradução <strong>do</strong> nome para o que não tem nome. A tradução agregada <strong>de</strong><br />

conhecimento é possível porque as coisas contêm a palavra cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Deus que<br />

as nomeou. O homem também nomeia pela língua, isto é, traduz a mu<strong>de</strong>z das<br />

coisas em sons. Nisto consiste a origem da língua e <strong>do</strong> conhecimento: a palavra<br />

cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Deus. Pela palavra, o homem torna-se linguisticamente perfeito ao<br />

receber a comunicação muda das coisas no nome. É a visão paradisíaca <strong>do</strong><br />

surgimento da linguagem humana conforme a narrativa bíblica. Na imagem <strong>do</strong> signo<br />

da<strong>do</strong> por Deus a cada animal dá-se a comunhão lingüística entre a natureza muda e<br />

o próprio Deus, origem da comunhão lingüística entre coisas e homens.<br />

A tradução existe na tensão <strong>de</strong>struição-reconstrução. Esta radical<br />

duplicida<strong>de</strong> é uma característica <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> reflexivo benjaminiano: a dialética <strong>do</strong><br />

para<strong>do</strong>xo que nunca se resolve num <strong>de</strong>sfecho unifica<strong>do</strong>r. Na tradução se manifesta<br />

29 “ [...] parce que la chose en elle-même n‟a aucun verbe, créé à partir du verbe <strong>de</strong> Dieu, elle est<br />

connue dans son nom selon le verbe humain. Cette connaissance <strong>de</strong> la chose pourtant n‟est point une<br />

création spontannée, elle ne naît point du langage, comme la creation, <strong>de</strong> manière absolument illimité<br />

et infinite, mais le nom que l‟homme <strong>do</strong>ne à la chose repose sur la manière <strong>do</strong>nt elle se communiqué à<br />

lui.”<br />

30 “La tradution est le passage d’un langage dans une autre par une série <strong>de</strong> metamorphoses continues.”<br />

66


a persistente tensão entre o texto original e sua atualização em novo contexto, ou<br />

seja, o reescrever o texto original e sua língua para outra língua e para outro<br />

contexto. Trata-se portanto <strong>de</strong> passagem para o estranho, para o estrangeiro. A<br />

melancolia da reflexão benjaminiana sobre a linguagem resi<strong>de</strong> exatamente na tensa<br />

relação entre original e a tradução. O original tem o peso e a gravida<strong>de</strong> das<br />

significações; a tradução tem a leveza e a fugacida<strong>de</strong> da língua. Nesse para<strong>do</strong>xo se<br />

instaura a melancolia, que emergiu da <strong>de</strong>sagregação e perda da condição<br />

paradisíaca. A única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recomposição é a aproximação com o original,<br />

ou seja, a tradução que jamais se i<strong>de</strong>ntifica com ele. A tradução se aproxima <strong>do</strong><br />

original através da reflexão melancólica, ela toca fugazmente sua superfície e segue<br />

o caminho caracteriza<strong>do</strong> pela liberda<strong>de</strong> e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> da língua em direção ao infinito.<br />

Benjamin ao enfatizar que é a palavra – o nome, a imagem, a escrita como<br />

enigma – o espaço aberto para a tradução, está reafirman<strong>do</strong> os fundamentos da sua<br />

teoria da linguagem. De fato, seu méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> reflexão filosófica abrange com clareza<br />

o tema da tradução, pois se conecta com os temas da origem, da melancolia, <strong>do</strong><br />

messianismo, assim como os da morte, ruína, da atualização e <strong>do</strong> <strong>de</strong>spertar... e<br />

enfim, da concepção <strong>de</strong> historia. Melancolicamente o historia<strong>do</strong>r, como o tradutor,<br />

renomeia, dá a sobrevida <strong>do</strong> já ocorri<strong>do</strong> ou das obras mortas. As ruínas se<br />

transformam em imagens, ou seja, em enigmas <strong>de</strong> sublime negativida<strong>de</strong>, matéria<br />

prima <strong>do</strong> alegorista. É exatamente isso que Benjamin faz com a citação: transforma<br />

a tradição – o ocorri<strong>do</strong>, o já morto – em imagens <strong>de</strong> atualização a serem<br />

reestruturadas. Isso é possível pelo méto<strong>do</strong> da montagem, ou seja, utilizar os restos,<br />

o lixo. Trata-se aqui da morte e <strong>de</strong> sua ultrapassagem para o mais eleva<strong>do</strong>; morte<br />

tanto com relação à linguagem, como com relação à história. A linguagem tem uma<br />

história e a história pertence à linguagem.<br />

É impossível não se lembrar aqui da Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, quan<strong>do</strong> se reflete<br />

sobre o tema da tradução: a enigmática <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> objetos da ciência e<br />

da técnica espalha<strong>do</strong>s pelo chão é um retrato da perplexida<strong>de</strong> ante a perda da<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar a representação perfeitamente fiel <strong>do</strong>s objetos. A representação<br />

alegórica totalmente arbitrária é pura representação que não coinci<strong>de</strong> com o objeto<br />

67


epresenta<strong>do</strong>. O esta<strong>do</strong> melancólico se instala no ato <strong>de</strong> traduzir, que ora se<br />

distancia, ora se aproxima <strong>do</strong> original e por vezes tem a falta <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> e se<br />

presentifica na oscilante alternância entre euforia e <strong>de</strong>sânimo, quan<strong>do</strong> preten<strong>de</strong> ler<br />

interpretativamente um texto. A melancolia a<strong>de</strong>re a este para<strong>do</strong>xo, quan<strong>do</strong> se<br />

empreen<strong>de</strong> toda sorte <strong>de</strong> tradução. Somente uma reflexão que aceita o para<strong>do</strong>xo faz<br />

da ambigüida<strong>de</strong> melancólica uma ambigüida<strong>de</strong> produtiva, sem jamais cair na acídia<br />

das impossibilida<strong>de</strong>s, antes, pelo contrário, torna a tradução possível.<br />

Compreendi<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> tradução, Benjamin (2000, p. 159) passa a<br />

consi<strong>de</strong>rar a linguagem humana a partir da queda:<br />

Somente na tradução, que a linguagem das coisas po<strong>de</strong> penetrar na<br />

linguagem <strong>do</strong> conhecimento e <strong>do</strong> nome – pois assim que o homem caiu <strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong> paradisíaco, que conhecia uma só língua, há tantas traduções quanto<br />

línguas. (Trad. Livre). 31<br />

Tradução e queda são os conceitos com os quais Benjamin passa a expor sua<br />

teoria da linguagem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> esclarecer a origem (não no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> gênese) <strong>de</strong><br />

toda linguagem. Há, por assim dizer, uma escala que vai da palavra muda à palavra<br />

cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Deus, passan<strong>do</strong> pela palavra nomea<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> homem. Nesses três níveis<br />

se baseia a pluralida<strong>de</strong> das línguas humanas. Com efeito, <strong>de</strong>pois da queda, a única<br />

língua se multiplica, pois se multiplicam as traduções como forma <strong>de</strong> nomear e<br />

conhecer. Se a linguagem paradisíaca única permitia o conhecimento único perfeito,<br />

to<strong>do</strong> o conhecimento multiplica<strong>do</strong> ao infinito é <strong>de</strong> um nível inferior.<br />

Seguin<strong>do</strong> a narrativa bíblica, Benjamin prossegue sua argumentação teológica<br />

da teoria da linguagem, introduzin<strong>do</strong> os temas <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong> Bem e <strong>do</strong> Mal,<br />

<strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original, <strong>do</strong> julgamento, da culpa e da punição. O elo rompe-se no<br />

momento em que o homem, seduzi<strong>do</strong> pela serpente, quer saber o que é bom e o<br />

que é mau, ou seja, <strong>de</strong>svendar os frutos da árvore da vida, apesar <strong>de</strong> Deus ter visto<br />

que tu<strong>do</strong> o que criara era bom. Ora, esse conhecimento <strong>do</strong> Bem e <strong>do</strong> Mal é<br />

<strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> nome, inócuo portanto, imitação da palavra cria<strong>do</strong>ra, enfim, o único<br />

31 “C‟est en traduction seulement que le langage <strong>de</strong>s choses peut passer dans le langage <strong>de</strong> la connaissance et du nom – autant<br />

<strong>de</strong> traductions, autant <strong>de</strong> langues, dès lors que l‟homme est déchu <strong>de</strong> l‟état paradisiaque, lequel ne connaissait qu‟une seul<br />

langue.”<br />

68


mal <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> paradisíaco. Benjamim (2000, p. 159s) <strong>de</strong>screve esse momento<br />

crucial da linguagem humana:<br />

O nome sai <strong>de</strong> si mesmo nesse conhecimento: o peca<strong>do</strong> original é o<br />

momento <strong>do</strong> nascimento da palavra humana, na qual o nome não vive mais<br />

intacto; essa palavra que partiu da língua que nomeia, da língua que<br />

conhece, po<strong>de</strong>-se dizer, da própria magia imanente, para tornar-se<br />

expressamente mágica, por assim dizer, <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro. A palavra <strong>de</strong>ve<br />

comunicar “algo” (além <strong>de</strong> si mesma). Esse é realmente o peca<strong>do</strong> original <strong>do</strong><br />

espírito linguístico. (Trad. Livre). 32<br />

A tradução <strong>de</strong>pois da queda se torna uma paródia <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que foi exposto<br />

anteriormente sobre a linguagem e sua origem. Realmente esta palavra humana não<br />

é mais a que nomeia e conhece na magia imanente <strong>do</strong> nome, porém a que<br />

comunica algo fora <strong>de</strong> si mesma. Nisso consiste o peca<strong>do</strong> original linguístico: a<br />

quebra <strong>do</strong> espírito adamítico e da relação lingüística com Deus. Sem a magia<br />

imanente <strong>do</strong> nome, a palavra que conhece o Bem e o Mal é a própria palavra<br />

comunicante, pura tagarelice, segun<strong>do</strong> Kierkegaard. 33 Mas essa tagarelice tem sua<br />

própria magia: o conhecimento <strong>do</strong> Bem e <strong>do</strong> Mal julga e pune (o homem provoca<br />

sua própria expulsão <strong>do</strong> paraíso). No julgamento a palavra <strong>de</strong>sperta em si a culpa<br />

radical. A pureza <strong>do</strong> nome é substituída pelo rigor da pureza <strong>do</strong> julgamento. A partir<br />

<strong>do</strong> momento <strong>de</strong>sta ruptura (peca<strong>do</strong> original) com a língua <strong>do</strong> nome, a língua <strong>do</strong><br />

homem se converte em signos, daí a multiplicida<strong>de</strong> das línguas; sem a<br />

imediaticida<strong>de</strong> <strong>do</strong> nome, surge a magia <strong>do</strong> julgar e, finalmente, disso <strong>de</strong>corre a<br />

abstração. A imediaticida<strong>de</strong> da comunicação na abstração ocorre no julgar, na<br />

palavra como meio. A imediaticida<strong>de</strong> da comunicação no concreto só po<strong>de</strong> ocorrer<br />

32<br />

“ Dans cette connaissance, le nom sort <strong>de</strong> lui-même: le péché originel est l‟heure natale du verbe humain, celui em qui le<br />

nom ne vivait plus intact, celui qui était sorti du langage qui nomme, du langage qui connaît, on peut dire que sa propre magie<br />

immanente, pour se faire magique, expressément em quelque sorte du <strong>de</strong>hors. Le mot <strong>do</strong>it communiquer quelque chose (en<br />

<strong>de</strong>hors <strong>de</strong> lui-même). Tel est réellement le peché original <strong>de</strong> l‟esprit linguistique.”<br />

33<br />

Segun<strong>do</strong> nota <strong>do</strong>s tradutores para o francês, este texto <strong>de</strong> Benjamin Sobre a linguagem em geral e sobre a<br />

linguagem <strong>do</strong> homem foi redigi<strong>do</strong> em 1916 e permaneceu como fonte <strong>de</strong> referência para suas reflexões<br />

posteriores até a década <strong>de</strong> 1930. Nas páginas finais <strong>de</strong> Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão, Benjamin retoma<br />

exatamente esta passagem <strong>do</strong> ensaio sobre a linguagem <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto da alegoria. O saber <strong>do</strong> mal (os vícios<br />

absolutos encarna<strong>do</strong>s pelos tiranos e intrigantes) não tem objeto, é um saber nulo, como afirma o filósofo. O mal<br />

representa<strong>do</strong> no drama é simplesmente alegoria, isto é, significa outra coisa. Essas representações só existem na<br />

meditação profunda <strong>do</strong> sujeito: são frutos <strong>de</strong> sua melancolia. Em outras palavras, o mal só existe no homem, na<br />

sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber, <strong>de</strong> conhecer o Bem e o Mal. Para tanto, o sujeito volta-se para si mesmo em profunda<br />

meditação, o que significa: subjetivida<strong>de</strong> última e pura melancolia. Benjamin formula o conceito <strong>de</strong> melancolia<br />

no drama barroco trazen<strong>do</strong> as reflexões sobre a linguagem para o tema da alegoria: a perda <strong>do</strong> nome e <strong>do</strong>s<br />

elementos concretos instaura o terreno da especulação abstrata, aquela que julga e pune, graças à contemplação<br />

subjetiva <strong>do</strong> melancólico. (Cf. Benjamin, 1984, p. 256).<br />

69


no nome – que o homem aban<strong>do</strong>nou no peca<strong>do</strong> original. A árvore <strong>do</strong> conhecimento<br />

estava no paraíso como emblema <strong>do</strong> julgamento.<br />

A loucura que foi a confusão total das línguas, concretizada na construção da<br />

torre <strong>de</strong> Babel, significa a consequência inevitável da violação da pureza <strong>do</strong> nome<br />

em uma língua mediada pela palavra. As línguas se multiplicam, os signos se<br />

confun<strong>de</strong>m. Babel surge da escravidão das coisas nessa loucura. Se a natureza<br />

muda <strong>de</strong> antes da queda era feliz ao ser nomeada pelo homem, <strong>de</strong>pois da queda<br />

porém cai em profunda tristeza, que é um outro mutismo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amaldiçoa<strong>do</strong> por<br />

Deus, como explica Benjamin (2000, p. 163): “Ser priva<strong>do</strong> da linguagem, tal é o<br />

gran<strong>de</strong> sofrimento da natureza (e é para redimi-la que o homem vive e fala, não<br />

somente o poeta, como geralmente se supõe.)”. (Trad. Livre). 34 Inverten<strong>do</strong>-se a<br />

or<strong>de</strong>m natural, po<strong>de</strong>-se afirmar que é a tristeza que emu<strong>de</strong>ce a natureza. O silêncio<br />

da privação da linguagem paradisíaca, <strong>do</strong> sentir-se conhecida pelo incognoscível, ou<br />

seja, por centenas <strong>de</strong> línguas on<strong>de</strong> não existe mais o nome, é o que emu<strong>de</strong>ce a<br />

natureza. Não existe mais o nome próprio tal qual no ato da criação; o que há é a<br />

sobre<strong>de</strong>nominação das línguas humanas, essência lingüística da tristeza e <strong>do</strong><br />

emu<strong>de</strong>cimento. 35<br />

Para Benjamin o homem se distanciou da linguagem paradisíaca perfeita e se<br />

envolveu em um emaranha<strong>do</strong> <strong>de</strong> línguas falantes, na trágica Babel. Nas<br />

consi<strong>de</strong>rações finais <strong>de</strong>ste ensaio sobre a linguagem, Benjamin trata das formas<br />

artísticas como linguagem diferenciada por sua conexão com a linguagem da<br />

natureza. Benjamin observa uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> línguas mais elevadas: as línguas<br />

não acústicas, inominais que partem da matéria. É à linguagem da escultura e da<br />

34 “Être privée <strong>de</strong> langage, telle est la gran<strong>de</strong> souffrance <strong>de</strong> la nature (et c‟est pour la délivrer que vît et parle dans la nature<br />

l‟homme, et non pas seulement, comme on le suppose en general, le poète)”.<br />

35<br />

Susana Kampff Lages, em sua tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> Walter Benjamin – tradução e melancolia, observa que o<br />

tema da melancolia está explicito neste ensaio sobre a linguagem exatamente na sua relação com a tradução ou<br />

traduzibilida<strong>de</strong> das línguas. Na dialética benjaminiana <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xal – a que se <strong>de</strong>ixa apreen<strong>de</strong>r em seus termos<br />

contraditórios, sem intenção <strong>de</strong> unificação – a mu<strong>de</strong>z das coisas é seu índice <strong>de</strong> sua perfeição e <strong>de</strong> sua<br />

imperfeição ou <strong>de</strong> seu acabamento e <strong>de</strong> seu inacabamento.”Em si e para si a natureza é perfeita; mas é em<br />

relação ao homem e à sua linguagem que a natureza revela-se inacabada e, nesse inacabamento, que é sua<br />

mu<strong>de</strong>z, está uma tristeza, atualizável unicamente pela língua humana”. (Lages, 2009, p. 209). O para<strong>do</strong>xal,<br />

explica Lages, aparece no duplo <strong>de</strong>sta tristeza: a tristeza natural <strong>de</strong> antes <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original e que advém da<br />

mu<strong>de</strong>z se converte, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>, em origem da mu<strong>de</strong>z. A melancolia, portanto, se revela nesta relação<br />

marcada pelo inacabamento, na imperfeição da tradução e da traduzibilida<strong>de</strong> das línguas. (cf. Lages,2009).<br />

70


pintura que ele se refere. Essa arte, diz Benjamin (2000, p. 164), parte da matéria,<br />

ou seja, existe“...a comunida<strong>de</strong> <strong>do</strong> universo das coisas consi<strong>de</strong>rada em seu po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> comunicação.” (Trad. Livre). 36<br />

Mas há também na linguagem artística acústica, como é o caso da música e <strong>do</strong><br />

canto mais especificamante, sua imediata afinida<strong>de</strong> com o canto <strong>do</strong>s pássaros. No<br />

caso da linguagem artística, Benjamin enfatiza que a linguagem em geral só é<br />

compreendida na sua relação fundamental com os signos. E o filósofo finaliza o<br />

ensaio observan<strong>do</strong> que existe nas relações entre linguagem e signos o símbolo <strong>do</strong><br />

não-comunicável, algo que vai além da função comunicável da linguagem, presente<br />

tanto no nome como no julgamento.<br />

A tese benjaminiana da linguagem é compreendida, numa visão teológica,<br />

como o meio <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> qual a essência espiritual <strong>de</strong> um ser se comunica. A<br />

linguagem implica portanto três aspectos fundamentais: a comunicação se dá no<br />

meio e não através <strong>de</strong>le, é comunicação da essência espiritual <strong>de</strong> um ser e ela se<br />

comunica a, isso quer dizer: existe um fluxo <strong>de</strong> comunicação. A comunicação é o<br />

movimento que vai <strong>de</strong> Deus até o ser mais inferior da natureza, passan<strong>do</strong> pelo<br />

homem. Toda a natureza possui uma língua muda e sem nome. O homem se<br />

comunica a Deus no nome que dá à natureza, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a comunicação que<br />

recebe <strong>de</strong>la, e também no nome que dá a seus semelhantes. O homem nomeia a<br />

natureza pelo resíduo da palavra cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Deus, o que significa conhecimento e,<br />

acima <strong>de</strong>le, julgamento.<br />

2.2. Símbolo e alegoria.<br />

Ao tratar da alegoria no drama barroco, Benjamin procura expor o conceito<br />

autêntico <strong>de</strong> símbolo, diverso daquele <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong>s estetas pós-românticos. O<br />

conceito autêntico está no âmbito teológico diferente <strong>do</strong> sentimentalismo daqueles<br />

36 “...la comminauté matérielle <strong>de</strong>s choses dans leur communication.”<br />

71


estetas. Benjamin fala em usurpação e uso fraudulento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> símbolo,<br />

exatamente quan<strong>do</strong> o simbólico dissocia a forma <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, ora per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o<br />

conteú<strong>do</strong> na análise formal, ora per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a forma na análise estética <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>.<br />

Isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que a manifestação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia é caracterizada como<br />

símbolo. A concepção teológica <strong>do</strong> símbolo parte da unida<strong>de</strong> sensível que aparece<br />

<strong>de</strong>formada na análise daqueles teóricos, justamente na relação entre manifestação e<br />

essência.<br />

Da mesma maneira como já havia <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> que o drama barroco é<br />

distinto da tragédia como forma autônoma em toda sua espeficida<strong>de</strong> e alcance,<br />

Benjamin (1984, p. 184) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o estilo alegórico não <strong>de</strong>sempenha o papel<br />

subalterno em relação ao símbolo, como simples ilustração, ou como “...o particular<br />

que só vale como exemplo <strong>do</strong> universal”, segun<strong>do</strong> palavras <strong>de</strong> Goethe.<br />

Mas ela foi encoberta pelo veredicto <strong>do</strong> preconceito classicista. Este consiste,<br />

numa palavra, em <strong>de</strong>nunciar a alegoria ven<strong>do</strong> nela um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ilustração, e<br />

não uma forma <strong>de</strong> expressão . As páginas seguintes tentarão <strong>de</strong>monstrar,<br />

pelo contrário, que a alegoria não é frívola técnica <strong>de</strong> ilustração por imagens,<br />

mas expressão como linguagem e como escrita.<br />

O romantismo, afirma Benjamin, teve o mérito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o <strong>de</strong>bate<br />

sobre a relação entre símbolo e alegoria, ou melhor, sobre o papel que cada uma<br />

<strong>de</strong>ssas <strong>figura</strong>s <strong>de</strong> linguagem <strong>de</strong>sempenham tanto na forma literária quanto na forma<br />

gráfica. De fato, refuta Benjamin (1984, p. 182), os teóricos <strong>do</strong> romantismo<br />

simplesmente <strong>de</strong>scartaram a forma <strong>de</strong> expressão alegórica, reduzin<strong>do</strong>-a a mera<br />

ilustração por imagens. “Seu coração (<strong>do</strong> indivíduo perfeito) se per<strong>de</strong> na bela alma.<br />

E o raio <strong>de</strong> ação – ou melhor, o raio cultural – <strong>de</strong>sse indivíduo perfeito, <strong>de</strong>sse belo<br />

indivíduo, coinci<strong>de</strong> com o círculo <strong>do</strong> simbólico.” Assim era o pensamento <strong>do</strong> século<br />

XVIII funda<strong>do</strong> na hegemonia <strong>do</strong> símbolo, on<strong>de</strong> o preconceito classicista não permitiu<br />

nenhuma discussão sobre o alegórico como forma <strong>de</strong> expressão. Se a escrita, para<br />

os teóricos <strong>de</strong>ste século, era um sistema convencional <strong>de</strong> signos, o alegórico em<br />

nada se diferenciava <strong>de</strong>sta escrita. Nesta postura se constata novamente a tese<br />

segun<strong>do</strong> a qual é o classicismo – a arte <strong>do</strong> símbolo – que prece<strong>de</strong> e fundamenta o<br />

72


arroco. Em outras palavras, a alegoria não é a lei estilística <strong>do</strong> barroco, mas se<br />

reduz a simples técnica. 37<br />

Benjamin <strong>de</strong>staca a obra <strong>de</strong> Creuzer, Mythologie, on<strong>de</strong> o crítico expõe a<br />

teoria <strong>do</strong> símbolo, segun<strong>do</strong> a qual, a essência <strong>do</strong> símbolo é caracterizada pela<br />

clareza e concisão, como um espírito aparecen<strong>do</strong> repentinamente, como um raio<br />

ilumina<strong>do</strong>r momentâneo, total, insondável e necessário. Com razão, conclui<br />

Benjamin (1984, p. 186), por essas características, a alegoria se distancia <strong>do</strong><br />

símbolo, pois este tem a clareza, graça e leveza. “Da purificação <strong>do</strong> pictórico, por<br />

um la<strong>do</strong>, e da renúncia voluntária <strong>do</strong> <strong>de</strong>smedi<strong>do</strong>, por outro, brota o mais belo fruto<br />

da or<strong>de</strong>m simbólica”. Esta afirmação <strong>de</strong> Creuzer, observa Benjamin, exemplifica<br />

bem o fato <strong>de</strong> o classicismo buscar no humano “a suprema plenitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser” e ter<br />

a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o simbólico como única possibilida<strong>de</strong> e ter <strong>de</strong>spreza<strong>do</strong> o estilo linguístico<br />

alegórico.<br />

Para por fim a esta exaustiva discussão sobre o tema da diferenciação<br />

símbolo-alegoria, Benjamin parte da posição <strong>de</strong> Görres, segun<strong>do</strong> a qual símbolo é<br />

signo das i<strong>de</strong>ias, sempre igual a si mesmo e alegoria é copia <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias, sempre<br />

em progressão com o tempo, em constante transformação, portanto. Combina<strong>do</strong>s<br />

assim o aspecto momentâneo com a dimensão natural <strong>do</strong> constante<br />

<strong>de</strong>senvolvimento, tem-se a solução conclusiva <strong>de</strong>sta discussão: o símbolo tem sua<br />

medida temporal no instante místico em que recebe o senti<strong>do</strong> e a alegoria se dá na<br />

dialética em que mergulha no abismo entre o ser visual e sua significação. Em<br />

outras palavras, aí não brilha momentaneamente o relâmpago <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Benjamin<br />

(1984, p. 188) observa: “O estu<strong>do</strong> da forma <strong>do</strong> drama barroco revela mais<br />

claramente que qualquer outro a violência <strong>de</strong>ste movimento dialético , no interior <strong>do</strong>s<br />

abismos alegóricos”.<br />

37<br />

É interessante observar que nas pesquisas <strong>de</strong> Klibansky ( Klibanzky et al. 1989 ), sobre a gravura Melancolia I<br />

<strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, fica clara a característica específica <strong>de</strong>sta representação gráfica : a intenção alegórica. Daí a afirmação<br />

<strong>de</strong> Benjamin: “Essa gravura antecipa sob vários aspectos o Barroco”. E, sem dúvida, uns <strong>do</strong>s aspectos é sua<br />

forma <strong>de</strong> expressão alegórica, totalmente diversa da linguagem como sistema convencional <strong>de</strong> signos. Isso ficou<br />

plenamente reconheci<strong>do</strong> por esses pesquisa<strong>do</strong>res, conforme foi exposto no capítulo anterior <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

73


A relação entre símbolo e alegoria só po<strong>de</strong> ser tratada ten<strong>do</strong> como referência<br />

a dimensão histórica, isto é, a categoria <strong>do</strong> tempo. Ao se falar em símbolo, fala-se<br />

em trans<strong>figura</strong>ção, em metamorfose da natureza em <strong>de</strong>clínio e <strong>de</strong> sua salvação. Na<br />

alegoria porém, diz Benjamin (1984, p. 188), a história é o rosto paralisa<strong>do</strong>,<br />

prematuro, sofri<strong>do</strong> e malogra<strong>do</strong>. “Mas se a natureza <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre esteve sujeita à<br />

morte, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre ela foi alegórica.” A forma alegórica <strong>de</strong> expressão é a<br />

linguagem própria <strong>do</strong> Barroco, única capaz <strong>de</strong> mostrar a concepção barroca da<br />

historia, ou seja, a historia <strong>do</strong> sofrimento, a historia escrita no rosto da natureza, da<br />

natureza (physis) sujeita à morte. A alegoria, em última análise, significa a história<br />

como o Barroco a concebia e, mais precisamente, significa a morte.<br />

Na sua etmologia, alegoria é dizer uma coisa para significar outra: allos, outro<br />

e agorein, falar na ágora, falar publicamente. Alegoria é dissociar significante <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong>. Referin<strong>do</strong>-se ao Barroco, que substituiu a cultura clássica alemã, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> seu colapso, Benjamin (1984, p. 77) afirma: “A isso se acrescenta a busca <strong>de</strong><br />

um estilo violento que esteja à altura da violência <strong>do</strong>s acontecimentos históricos.”<br />

Refere-se portanto ao colapso da clareza e distinção da linguagem simbólica e<br />

abstrata da ciência e <strong>do</strong> more geométrico. O estilo linguístico violento <strong>de</strong>ixa<br />

transparecer uma carga melancólica. Benjamin (1984, p. 187) caracteriza a<br />

melancolia:<br />

A alegoria não está livre <strong>de</strong> uma dialética correspon<strong>de</strong>nte, e a calma<br />

contemplativa com que ela mergulha no abismo que separa o Ser visual e a<br />

Significação, nada tem da auto-suficiência <strong>de</strong>sinteressada que caracteriza a<br />

intenção significativa e com a qual ela tem afinida<strong>de</strong>s aparentes.<br />

Mergulhar no abismo que separa o Ser visual e a Significação não é senão<br />

entregar-se à contemplação melancólica. Um objeto só é transforma<strong>do</strong> em<br />

significação alegórica, após sua morte. Matar o objeto, arranca-lo <strong>de</strong> seu contexto é<br />

negar-lhe qualquer possibilida<strong>de</strong> simbólica e dar-lhe múltiplos senti<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s eles<br />

remeten<strong>do</strong> à morte. Essa violência alegórica barroca já estava estampada na<br />

representação gráfica da obra <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> Melancolia I, em tu<strong>do</strong> o que ela tem <strong>de</strong><br />

enigmático e triste. Essa expressão é uma confluência <strong>de</strong> historia e natureza, on<strong>de</strong><br />

74


natureza significa sujeição ao ciclo mítico <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino, da catástrofe e da morte, o<br />

que é impensável sem a postura melancólica.<br />

Contra o caráter cambiante da natureza ou da historia-<strong>de</strong>stino, só há um<br />

remédio: pela significação, conhecer as coisas criadas. Somente a significação é<br />

estabilida<strong>de</strong>, ou seja, é antí<strong>do</strong>to contra as mudanças. O conhecimento das coisas<br />

criadas possibilita compreen<strong>de</strong>r a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Deus. Sobre a representação<br />

emblemática, Benjamin (1984, p. 193) comenta:<br />

Pois para o Barroco a natureza era <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> fins na medida em que sua<br />

significação podia exprimir-se, em que seu senti<strong>do</strong> podia ser representa<strong>do</strong><br />

emblematicamente, <strong>de</strong> forma alegórica e como tal irreconciliavelmente<br />

distinto <strong>de</strong> sua realização histórica.<br />

No estu<strong>do</strong> para monumentos fúnebres <strong>do</strong> arquiteto renascentista Alberti, há<br />

uma comparação entre a escrita alfabética e os sinais egípcios <strong>do</strong>s<br />

hieróglifos: 38 esses sinais permanecem enquanto a escrita alfabética cai no<br />

esquecimento. Alberti e seus colabora<strong>do</strong>res passaram a escrever não com letras<br />

mas com imagens <strong>de</strong> coisas. À maneira egípcia, essa escrita misteriosa escon<strong>de</strong> o<br />

conhecimento enigmático das coisas criadas e remete à compreensão da dignida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Deus. Eis como o alegorista po<strong>de</strong> estabilizar a história pela significação, conclui<br />

Benjamin. No drama barroco alemão, portanto, a natureza significativa <strong>de</strong>signa o<br />

conhecimento das coisas criadas. É um ensinamento secreto, enigmático on<strong>de</strong> a<br />

natureza significativa exprime emblematicamente seu senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong> forma alegórica. A<br />

alegoria mostra a fácies hippocratica da historia, na fisionomia rígida da natureza,<br />

estabilizada, petrificada no a<strong>de</strong>reço cênico <strong>do</strong> Barroco.<br />

Benjamin procura compreen<strong>de</strong>r a origem da expressão alegórica citan<strong>do</strong> os<br />

teóricos, como Her<strong>de</strong>r e os alemães <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> barroco, Gryphius e Opitz. Descobre<br />

assim a convergência da linguagem emblemática pictórica egípcia, grega e cristã. O<br />

oculto e o misterioso não era outra coisa que a forma a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> expressão da<br />

sabe<strong>do</strong>ria das coisas celestes; uma teologia portanto. Essas imagens continham o<br />

38 Nos hieróglifos egípcios, <strong>de</strong>us é representa<strong>do</strong> por um olho, o tempo por um círculo, a natureza por um abutre e<br />

a paz por um boi.<br />

75


ensinamento oculto <strong>do</strong> temor a Deus, abrangen<strong>do</strong> todas as esferas da ciência e da<br />

moral. Para este fim, a natureza dispõe <strong>de</strong> um numero ilimita<strong>do</strong> <strong>de</strong> imagens, isto é,<br />

<strong>de</strong> emblemas. Da contemplação <strong>de</strong>sses emblemas, o homem adquire os<br />

ensinamentos sobre as virtu<strong>de</strong>s. É isso que acontece no drama barroco; a natureza<br />

apresentada no palco como história é impregnada <strong>de</strong> imagens, isto é, <strong>de</strong> emblemas,<br />

<strong>de</strong> a<strong>de</strong>reços cênicos. Qualquer objeto – natural ou artificial – po<strong>de</strong> ser transforma<strong>do</strong><br />

em imagens, em emblemas. Buscan<strong>do</strong> a significação – o conhecimento ou o<br />

ensinamento – no universo das coisas, a alegoria torna-se um estilo sem limites,<br />

on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> po<strong>de</strong> simbolizar tu<strong>do</strong>, no mergulho em um abismo.<br />

Existe <strong>de</strong> fato um abismo obscuro entre a profusão <strong>de</strong> imagens – signos,<br />

emblemas – e a significação. Nisto consiste o estilo violento <strong>do</strong> Barroco: a alegoria.<br />

Benjamim ( 1984, p. 163 ) comenta o conflito <strong>do</strong> melancólico:<br />

[...]e, em parte, ( o interesse apaixona<strong>do</strong> pela pompa ) resultava da tendência<br />

pela qual a meditação se sentia atraída pela gravida<strong>de</strong>. Nela, a meditação<br />

reconhece seu próprio ritmo. A afinida<strong>de</strong> entre o luto e a ostentação, tão<br />

magnificamente comprovada pela linguagem <strong>do</strong> Barroco, tem aqui uma <strong>de</strong><br />

suas raízes, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que a auto-absorção, para a qual essas<br />

gran<strong>de</strong>s con<strong>figura</strong>ções da crônica mundial parecem um simples jogo, que<br />

sem duvida vale a pena contemplar em vista das significações que nele é<br />

possível seguramente <strong>de</strong>cifrar, mas cuja repetição infinita ajuda os humores<br />

melancólicos, com seu <strong>de</strong>sinteresse pela vida, a consolidar seu <strong>do</strong>mínio.<br />

O mergulhar no abismo entre o visual e a significação com a calma<br />

contemplativa diz respeito à meditação, à reflexão profunda, ao voltar-se sobre si<br />

mesmo, ou seja, à melancolia. A linguagem barroca é caracterizada pela afinida<strong>de</strong><br />

entre a pompa e o luto, o que, na perspectiva da alegoria, se traduz pelo universo<br />

das significações e pela reflexão profunda no abismo que separa as coisas das<br />

significações. A calma contemplativa, a meditação não é outra coisa senão<br />

melancolia inerente à linguagem barroca.<br />

O luto está na origem da alegoria. Com efeito, ela surgiu <strong>do</strong> embate entre<br />

mun<strong>do</strong> clássico pagão <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses contra a <strong>do</strong>utrina cristã medieval. Como já foi<br />

exposto anteriormente, foi pela alegoria que os <strong>de</strong>uses clássicos sobreviveram<br />

justamente pela liberda<strong>de</strong> poética da expressão alegórica. O mun<strong>do</strong> antigo <strong>do</strong>s<br />

76


<strong>de</strong>uses e sua sobrevivência é a mais convincente das características da expressão<br />

alegórica: o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> salvar as coisas da transitorieda<strong>de</strong>. A melancolia faz parte<br />

<strong>de</strong>sta tensão entre o transitório e o eterno. Benjamin, além <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong><br />

transitório, insere nesta análise o conceito <strong>de</strong> culpa. 39 A culpa se presentifica tanto<br />

naquilo que <strong>de</strong>ve ser salvo, como nas coisas significadas. E a culpa não permite que<br />

as significações mostrem em si mesmas o seu senti<strong>do</strong>. Ela se instala tanto na<br />

contemplação alegórica, - e já se sabe que é esse saber que trai o mun<strong>do</strong> – quanto<br />

nos objetos da contemplação. Mas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> advém a culpa? - A culpa advém da<br />

queda da criatura. Com a queda da criatura, toda a natureza também cai e, como<br />

não tem voz, se torna triste. A alegoria inverte esta or<strong>de</strong>m: é a tristeza que torna a<br />

natureza muda. A natureza emu<strong>de</strong>ce por causa <strong>do</strong> luto, ou seja, da tristeza, da<br />

melancolia, e passa a ser conhecida pelo incognoscível. A natureza passa a ser<br />

nomeada (conhecida) por outro, o que equivale dizer: recebe a significação, quan<strong>do</strong><br />

é simplesmente lida pelo alegorista. Benjamin (1984, p. 248) estabelece a relação<br />

entre culpa e alegoria:<br />

Em tu<strong>do</strong> em que existe a culpa, seja o mun<strong>do</strong> antigo, seja a natureza<br />

culpada, existe a tristeza e a mu<strong>de</strong>z. Por outro la<strong>do</strong>, quanto mais a natureza<br />

e a antiguida<strong>de</strong> são vividas como culpadas, mais imperativa se torna sua<br />

interpretação alegórica, que representa apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> a única re<strong>de</strong>nção<br />

possível.<br />

Ora, na visão barroca da história como <strong>de</strong>stino, uma única saída possível,<br />

sob o ponto <strong>de</strong> vista da linguagem, é salvar a natureza da tristeza e da mu<strong>de</strong>z e isso<br />

só é possível pela alegoria. Ao se comparar os <strong>do</strong>is textos, o <strong>de</strong> 1916 sobre a<br />

linguagem e o <strong>de</strong> 1925 sobre o drama barroco, po<strong>de</strong>-se perceber que Benjamin <strong>de</strong>ixa<br />

clara a distância entre o nomear paradisíaco original <strong>do</strong> homem para com a natureza<br />

e o nomear ou o ler para com as coisas tristes e mudas <strong>de</strong> uma natureza <strong>de</strong>caída.<br />

Aqui existe apenas o saber que trai o mun<strong>do</strong> na tentativa <strong>de</strong> estabiliza-lo, ou <strong>de</strong> salva-<br />

lo. A melancolia é inerente a esse processo tenso que vai da extinção à tentativa <strong>de</strong><br />

salvação.<br />

39<br />

Nesta questão da expressão alegórica <strong>do</strong> Barroco, Benjamin recorre mais uma vez ao ensaio <strong>de</strong> 1916 Sobre a<br />

linguagem em geral e sobre a linguagem <strong>do</strong> homem, trata<strong>do</strong> anteriormente neste capítulo da presente dissertação.<br />

O conceito <strong>de</strong> culpa é imprescindível para a exposição <strong>do</strong> tema da melancolia quan<strong>do</strong> se analisa a linguagem<br />

barroca.<br />

77


2.3. A escrita e o olhar melancólico<br />

Aquilo que eu gosto no teu corpo é o sexo.<br />

Aquilo que eu gosto no teu sexo é a boca.<br />

Aquilo que eu gosto na tua boca é a língua.<br />

Aquilo que eu gosto na tua língua é a palavra.<br />

JULIO CORTÁZAR, PAPÉIS INESPERADOS<br />

A palavra história está escrita na natureza com os caracteres da<br />

transitorieda<strong>de</strong>, afirma Benjamin ao consi<strong>de</strong>rar a concepção <strong>de</strong> história pelo drama<br />

barroco. É a história-natureza vista como ruína. Escrita ou ruína <strong>de</strong>vem ser<br />

entendidas, nesta análise, como imagens: daí toda a força <strong>de</strong>ste drama residir<br />

primordialmente na escrita – nas coisas da natureza – apresentada pela alegoria. 40<br />

Reafirman<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r da imagem, ou seja, <strong>do</strong> drama enquanto texto escrito, Benjamin<br />

não quer <strong>de</strong> maneira alguma negar a importância da encenação, como o fizeram os<br />

críticos <strong>do</strong> drama barroco alemão. Estes, diz Benjamin (1984, p. 207), pressentiram o<br />

valor da escrita ao afirmar erroneamente que os textos da dramaturgia barroca alemã<br />

nunca foram encena<strong>do</strong>s:<br />

Pois a alegoria é o único divertimento, <strong>de</strong> resto muito intenso, que o<br />

melancólico se permite. É verda<strong>de</strong> que a pomposa ostentação com que o<br />

objeto banal parece irromper das profundida<strong>de</strong>s da alegoria logo reassume<br />

seu triste aspecto cotidiano, e é verda<strong>de</strong> que a fascinação <strong>do</strong> enfermo com o<br />

pormenor isola<strong>do</strong> e microscópico ce<strong>de</strong> lugar à <strong>de</strong>cepção com que ele<br />

contempla o emblema esvazia<strong>do</strong>, ritmo que o observa<strong>do</strong>r especulativo po<strong>de</strong><br />

encontrar repetidamente, e <strong>de</strong> forma muito expressiva, no comportamento<br />

<strong>do</strong>s símios. Mas os <strong>de</strong>talhes amorfos, que só po<strong>de</strong>m ser apreendi<strong>do</strong>s<br />

alegoricamente, continuam surgin<strong>do</strong>.<br />

O presente trabalho <strong>de</strong> dissertação, ao focalizar a característica melancólica<br />

da con<strong>figura</strong>ção barroca, <strong>de</strong>ve ressaltar esta mesma característica como fundante da<br />

40<br />

Olgária Matos estabelece com clareza o senti<strong>do</strong> histórico <strong>de</strong> imagem no pensamento benjaminiano: se na<br />

Reforma o fervor iconoclasta baniu a imagem, vista como puro simulacro, o Barroco da Contrarreforma<br />

consi<strong>de</strong>rou positiva a função da imagem em sua dimensão intrínseca, concreta e histórica, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong><br />

original ao qual se refere. Esse embate entre a <strong>de</strong>monização e a aceitação da imagem teve seu auge no império<br />

bizantino cristão, protagoniza<strong>do</strong> pelos iconoclastas e iconófilos. No entanto não é uma questão puramente<br />

religiosa <strong>de</strong> culto, mas diz respeito à discussão filosófica da relação entre natureza e espírito, ficção e realida<strong>de</strong>,<br />

mun<strong>do</strong> e Deus. À concepção iconoclasta da imagem como engano ou como vertigem <strong>do</strong> pensamento<br />

correspon<strong>de</strong> a metafísica iluminista. A história da razão se previne contra artistas e ora<strong>do</strong>res que seduzem pelo<br />

brilho engana<strong>do</strong>r que embaralha a visão. Entretanto para Benjamin, conclui a autora, a imagem não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

mais da realida<strong>de</strong> nem <strong>do</strong> original metafísico, mas <strong>de</strong> seu alcance histórico, em seu valor interno, sem<br />

transcendência nem escatologia. O emblema para o filósofo é “argúcia, artifício e engenho.” (cf. Matos, Olgária,<br />

2010, p. 133ss).<br />

78


alegoria, estilo linguístico único capaz <strong>de</strong> revelar os conteú<strong>do</strong>s <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> drama<br />

barroco alemão. “Nas condições da fragmentação e <strong>do</strong> <strong>de</strong>spedaçamento alegórico,<br />

que prevaleciam no Barroco, a imagem da tragédia grega aparecia como a única<br />

possível, como a imagem natural da tragédia em si”. Benjamin (1984, p. 211) vê nas<br />

traduções realizadas por Höl<strong>de</strong>rlin da obra <strong>de</strong> Sóflocles um indício <strong>de</strong> como a tragédia<br />

antiga passou a ser lida com outro registro, outra chave.<br />

Mais <strong>de</strong> uma vez Benjamin se refere às ruínas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> clássico, que a<br />

alegoria ressignifica: “Sua teoria da tragédia junta uma por uma, como fragmentos<br />

sem vida, as leis da tragédia antiga, e as agrupa em torno <strong>de</strong> uma <strong>figura</strong> alegórica<br />

representan<strong>do</strong> a musa trágica.” Impossível não pensar aqui na Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>.<br />

Benjamin (1984, p.208ss) alu<strong>de</strong> ao “...triste e <strong>de</strong>sola<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> dispersão” <strong>do</strong>s<br />

emblemas que passam a tomar o lugar <strong>do</strong>s personagens. Essas imagens – ruínas,<br />

emblemas – são a própria escrita em que palavras, sílabas e letras tomam o lugar<br />

das pessoas, sem falar <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o reino <strong>de</strong> objetos inanima<strong>do</strong>s como personagens no<br />

lugar <strong>de</strong> pessoas. A visão alegórica se caracteriza pela fragmentação e dispersão e<br />

isso não é outra coisa que o cenário <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação e tristeza, ou seja, o esta<strong>do</strong><br />

melancólico. Totalida<strong>de</strong> e fragmentos: é nisto que consiste, segun<strong>do</strong> Benjamin, toda a<br />

distinção entre símbolo e alegoria. O estilo violento barroco <strong>de</strong>spedaça o belo corpo<br />

humano, símbolo <strong>do</strong> humanismo clássico, e espalha os pedaços no campo fértil da<br />

significação.Benjamin (1984, p. 209) compara a alegoria à corte:<br />

[...] em sua expressão mais completa, a <strong>do</strong> Barroco, a alegoria traz consigo<br />

sua própria corte, em torno <strong>de</strong> cujo centro (que nunca está ausente na<br />

verda<strong>de</strong>ira alegoria, ao contrário <strong>do</strong> que acontece com os conceitos)<br />

agrupam-se os emblemas , em toda sua riqueza...As leis <strong>de</strong>ssa corte são a<br />

dispersão e a conjunção.<br />

Nestas palavras, que lembram tanto a representação gráfica <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong> como<br />

sua própria teoria <strong>do</strong> conhecimento, Benjamin relaciona a alegoria com a corte<br />

barroca, confusa e ao mesmo tempo elegante. Ou ainda: a alegoria po<strong>de</strong> ser<br />

comparada com a arquitetura <strong>de</strong>ntro das fronteiras entre os excessos construtivos e a<br />

elegância <strong>de</strong>corativa. Na alternância dispersão-conjunção, a conjunção se dá<br />

exatamente no extremo da or<strong>de</strong>m galante da significação; mas as coisas voltam a se<br />

dispersar sempre neste cenário <strong>de</strong> fragmentos amontoa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nadamente. Ao<br />

79


afirmar que esses fragmentos – emblemas, ruínas, imagens – agrupam-se, em toda a<br />

sua riqueza, em torno <strong>do</strong> centro da alegoria, Benjamin (1984, p. 57) <strong>de</strong>ixa claro que<br />

se trata <strong>de</strong> fenômenos em toda sua diversida<strong>de</strong> e não <strong>de</strong> conceitos que nivelam os<br />

fenômenos na média. “Elas (as i<strong>de</strong>ias) permanecem escuras, até que os fenômenos a<br />

reconheçam e a circun<strong>de</strong>m”, ele afirma nas Questões introdutórias <strong>de</strong> crítica <strong>do</strong><br />

conhecimento.<br />

A alegoria barroca po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como o estilo linguístico que<br />

violenta a poética da tragédia antiga, cujas leis são transformadas em fragmentos<br />

mortos e agrupa<strong>do</strong>s em torno da <strong>figura</strong> alegórica da musa trágica. Benjamin reforça<br />

mais uma vez a distinção entre tragédia e drama, agora sob o ponto <strong>de</strong> vista da<br />

linguagem. Ele rejeita a interpretação errônea classicista segun<strong>do</strong> a qual o drama<br />

barroco <strong>de</strong>veria se enquadrar nas leis da tragédia antiga, pelo simples fato <strong>de</strong> esta<br />

interpretação ter ignora<strong>do</strong> a essência e a especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste drama.<br />

Benjamin (1984, p. 204) estabelece uma relação interessante entre o estilo<br />

barroco alegórico e a religião. A religião também contribuiu para a concepção da<br />

história como história-natureza <strong>do</strong> barroco, justamente quan<strong>do</strong> trata <strong>de</strong> temas da vida<br />

concreta, como nascimento, casamento, morte, luta, conquistas <strong>de</strong> suas <strong>figura</strong>s<br />

sagradas. “O instante místico se converte no „agora‟ atual; o simbólico se <strong>de</strong>forma no<br />

alegórico.” O que resta <strong>de</strong>sta transformação é a imagem viva, em to<strong>do</strong> seu realismo<br />

fenomênico. As representações pictóricas reforçam esta transformação, on<strong>de</strong> o<br />

eterno é separa<strong>do</strong> da história – da salvação, em se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> religião – quan<strong>do</strong><br />

carregam nas tintas da expressão realista <strong>do</strong> primeiro plano das telas. Neste plano<br />

aparece a história-natureza em tu<strong>do</strong> o que ela tem <strong>de</strong> transitório e perecível. Isso tu<strong>do</strong><br />

para dar confiabilida<strong>de</strong> à transcendência retratada no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> quadro.<br />

Benjamin (1984, p. 206) revela o caráter imagético da escrita alegórica:<br />

Nisto consiste o caráter escritural da alegoria. Ela é um esquema, e como<br />

esquema um objeto <strong>do</strong> saber, mas o alegorista só po<strong>de</strong> ter certeza <strong>de</strong> não o<br />

per<strong>de</strong>r quan<strong>do</strong> o transforma em algo <strong>de</strong> fixo: ao mesmo tempo imagem fixa e<br />

signo com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fixar. O i<strong>de</strong>al cognitivo <strong>do</strong> Barroco, o armazenamento,<br />

simboliza<strong>do</strong> nas bibliotecas gigantes, realiza-se na escrita enquanto imagem.<br />

80


Transformação <strong>do</strong> simbólico em <strong>de</strong>formação alegórica: este é o processo da<br />

alegoria. Pelo olhar da melancolia, o objeto se torna alegórico, isto é, ele per<strong>de</strong><br />

qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> próprio, como se estivesse morto. Este objeto<br />

recebe então a significação <strong>do</strong> alegorista, que se apropria <strong>de</strong>la. Para se compreen<strong>de</strong>r<br />

em que senti<strong>do</strong> a escrita barroca é imagem, é preciso observar o seguinte: o objeto (a<br />

coisa), nas mãos <strong>do</strong> alegorista, passa a ser algo diferente e através <strong>de</strong>ste objeto ele<br />

fala <strong>de</strong> algo diferente. Esta coisa passa a ser o emblema que possibilita o saber<br />

oculto. A escrita barroca não passa <strong>de</strong> emblemas, <strong>de</strong> imagens. Compreen<strong>de</strong>-se então<br />

a afirmação <strong>de</strong> Benjamin (1984, p. 164): “A Renascença investiga o universo, e o<br />

Barroco, as bibliotecas. Sua meditação tem o livro como correlato.” Armazenar esta<br />

escrita é o objetivo <strong>de</strong> conhecimento, pois to<strong>do</strong> o saber será revela<strong>do</strong> na<br />

multiplicida<strong>de</strong> das imagens armazenadas. Porém não se trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar a<br />

essência atrás da imagem: o emblemático traz essa essência para a imagem. “Ele<br />

traz essa essência para a própria imagem, apresentan<strong>do</strong>-a como escrita, como<br />

legenda explicativa...” Não é <strong>de</strong>svendar mas <strong>de</strong>snudar as coisas sensoriais. Isso é<br />

próprio da escrita por imagens. Benjamin (1984, p. 207) <strong>de</strong>ixa transparecer que a<br />

linguagem barroca coinci<strong>de</strong> com a tentativa <strong>de</strong> salvação. As coisas da natureza,<br />

como signos, estão à espera <strong>de</strong> um senti<strong>do</strong>, que o homem po<strong>de</strong> lhes atribuir, sem se<br />

preocupar em exprimir suas características naturais, sem se preocupar em <strong>de</strong>svenda-<br />

las. A significação está em outro lugar, mas não nas coisas mesmas. É assim que a<br />

história-natureza é salva. 41<br />

Imagens dialéticas (Dialektives Bild) ou imagens <strong>de</strong> pensamento (i<strong>de</strong>ias<br />

imagens) não têm nada <strong>de</strong> engano e <strong>de</strong>silusão da concepção cartesiana, antes, são<br />

artifícios <strong>de</strong> alcance histórico , on<strong>de</strong> o pensamento está a serviço da emancipação. A<br />

alegoria procura o lugar da significação para superar o sentimento <strong>de</strong> perda. Para<br />

tanto concorrem o pensamento e o corpo to<strong>do</strong>. Esta postura está bem distante da<br />

41<br />

Tereza Calla<strong>do</strong>, em sua obra A Experiência da Origem, observa a relação, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> pensamento<br />

benjaminiano, entre a alegoria barroca e a postura crítica para combater a política secularizada, a política<br />

mundial da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>do</strong> discurso vazio, cujo objetivo é persuadir. No século XVII, o mun<strong>do</strong> era visto – e<br />

li<strong>do</strong> – como signos dispersos e a alegoria, como imagem escrita; era uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conferir senti<strong>do</strong> para<br />

essa fragmentação. Assim, para fazer frente à rigi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> pensamento iluminista da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a alegoria,<br />

como enigma e chave <strong>de</strong>ste enigma para a leitura da aporia mo<strong>de</strong>rna, po<strong>de</strong> explicar o conflito, pois ela tem a<br />

flexibilida<strong>de</strong> das imagens e a possibilida<strong>de</strong> da redifinição, sem estar presa ao rigor lógico das abstrações. Como<br />

ressalta a autora, trata-se das imagens dialéticas no agora da cognoscibilida<strong>de</strong>.<br />

81


tradição racionalista, caracterizada pela superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> espiritual sobre o material.<br />

Benjamin propõe, contra o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta tradição, a imagem dialética, ou a dialética<br />

na imobilida<strong>de</strong> pela imagem, nos mol<strong>de</strong>s da alegoria, tal como ela aparece no drama<br />

barroco. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas: é a relação <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> com o presente, muito mais que uma simples relação temporal. É o agora da<br />

cognoscibilida<strong>de</strong>, a “agorida<strong>de</strong>” carregada <strong>de</strong> tensões, on<strong>de</strong> a imagem é lida, leitura<br />

que se concretiza na iluminação profana ou na porta aberta para o conhecimento <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> empírico.<br />

A alegoria se apresenta como a solução para a leitura <strong>do</strong> Ser em sua<br />

fragmentação, ao inibir o conceito que nivela a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>s, pois ela<br />

tem a flexibilida<strong>de</strong> para apontar a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ocorrências, ou seja, <strong>do</strong>s múltiplos<br />

significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Ser. O fenômeno reconhece a i<strong>de</strong>ia e é salvo; nisto consiste a<br />

re<strong>de</strong>nção platônica, afirma Benjamin. Assim o drama barroco alemão é li<strong>do</strong> como<br />

i<strong>de</strong>ia, algo intemporal on<strong>de</strong> o fenômeno passa<strong>do</strong> se reconhece no presente. A<br />

alegoria, enquanto i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>ste drama permite reconhecer a escrita em forma <strong>de</strong><br />

hieróglifos ou <strong>de</strong> runas, ou ainda, <strong>de</strong> imagens sagradas emblemáticas da Ida<strong>de</strong><br />

Média. Na alegoria, pela mentalida<strong>de</strong> Cristã, o efêmero e o eterno se completam: a<br />

morte significa vida, pois a transitorieda<strong>de</strong> passa <strong>de</strong> significada a significante, algo a<br />

ser alegoriza<strong>do</strong> na ressurreição.<br />

O méto<strong>do</strong> benjaminiano expressa a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao particular e consi<strong>de</strong>ra o<br />

universal uma i<strong>de</strong>ia. E isso se faz pelo recurso das imagens dialéticas. O mun<strong>do</strong><br />

fragmenta<strong>do</strong>, ou melhor, a imagem fragmentada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> po<strong>de</strong> se recompor pela<br />

técnica da montagem. Isso fica explicito no drama barroco alemão, cuja con<strong>figura</strong>ção<br />

da i<strong>de</strong>ia é caracterizada pela coexistência <strong>do</strong>s contrastes. Eis a proposta <strong>de</strong><br />

Benjamin: compreen<strong>de</strong>r a totalida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> elementos díspares, o que é possível<br />

na forma artística. A obra <strong>de</strong> arte como i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> Belo <strong>de</strong>ixa transparecer a verda<strong>de</strong>.O<br />

papel da crítica é <strong>de</strong>struir a obra <strong>de</strong> arte revelan<strong>do</strong> o Belo que é a verda<strong>de</strong>. Assim<br />

Benjamin (1984, p. 53) relaciona beleza e verda<strong>de</strong>:<br />

A essência da verda<strong>de</strong> como a auto-representação <strong>do</strong> reino das i<strong>de</strong>ias,<br />

garante, ao contrário, que a tese da beleza da verda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rá nunca<br />

82


per<strong>de</strong>r sua valida<strong>de</strong>. Esse elemento representativo da verda<strong>de</strong> é o refúgio da<br />

beleza...Seu brilho que seduz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não queira ser mais que<br />

brilho,provoca a inteligência que a persegue, e só quan<strong>do</strong> se refugia no altar<br />

da verda<strong>de</strong> revela sua inocência.<br />

A verda<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixa contemplar, o que nada tem a ver com o méto<strong>do</strong> da<br />

aquisição <strong>do</strong> saber, <strong>do</strong> conhecimento como posse <strong>do</strong> objeto. O méto<strong>do</strong> da verda<strong>de</strong> é<br />

representação <strong>de</strong> si mesma, como revelação <strong>do</strong> Ser. Este méto<strong>do</strong> é capaz <strong>de</strong><br />

combater a imagem-abstração da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, vazia e vinculada à comunicação<br />

i<strong>de</strong>ológica. Tal linguagem está na relação inversa <strong>do</strong>s diálogos socráticos cuja<br />

significação metafísica se dá no nível pragmático.<br />

O Barroco quer trazer a significação para a imagem. Da mesma maneira,<br />

Benjamin quer transformar o amontoa<strong>do</strong> <strong>de</strong> ruínas da civilização – da razão – em um<br />

mun<strong>do</strong> capaz <strong>de</strong> significar. No mun<strong>do</strong> cindi<strong>do</strong> entre o transitório e o eterno, entre o<br />

sagra<strong>do</strong> e o profano, os pólos antagônicos produzem a consciência uma síntese <strong>de</strong><br />

falsa aparência <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Aliar espírito e matéria é a única maneira <strong>de</strong> evitar esta<br />

síntese fraudulenta, conclui Benjamin (1984, p. 253):<br />

A espiritualida<strong>de</strong> absoluta visada por Satã, <strong>de</strong>strói-se ao emancipar-se <strong>do</strong><br />

sagra<strong>do</strong>. A substancialida<strong>de</strong> ( só agora privada <strong>de</strong> Alma ) se transforma em<br />

sua pátria. O puramente material e o absolutamente espiritual são os <strong>do</strong>is<br />

polos <strong>do</strong> reino <strong>de</strong> Satã: a consciência é sua síntese fraudulenta, que imita a<br />

verda<strong>de</strong>ira, a da vida.<br />

Os fragmentos dispersos por causa da ruptura entre corpo e alma só po<strong>de</strong>m ser<br />

salvos pela técnica da colagem, <strong>do</strong> mosaico e <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> medieval. É o méto<strong>do</strong> que<br />

possibilita recuperar cada pedaço disperso para salvá-lo na totalida<strong>de</strong>. Pela alegoria,<br />

os fragmentos significativos <strong>de</strong>vem ser resgata<strong>do</strong>s e o particular é salvo na totalida<strong>de</strong>,<br />

uma vez que reconheci<strong>do</strong> pela i<strong>de</strong>ia.<br />

Em última análise, a alegoria é o caminho inteiramente outro ao da ciência, tal<br />

qual preconiza<strong>do</strong> pelo iluminismo. Bau<strong>de</strong>laire é seu representante na metrópole da<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> fragmenta a realida<strong>de</strong>, através das tensões morais conflitantes,<br />

e <strong>de</strong>pois recolhe os fragmentos significativos. Só a crítica, reafirma Benjamin, po<strong>de</strong><br />

vencer a astúcia <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong>moníaco e persuasivo que manipula para<br />

governar em um reino on<strong>de</strong> impera a melancolia.<br />

83


3.1. O poeta melancólico.<br />

Capítulo III<br />

Melancolia e a alegoria <strong>do</strong> <strong>anjo</strong> da história<br />

A ira, com seus arrebatamentos, marca o ritmo<br />

<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s, à mercê <strong>do</strong> qual se encontra o<br />

melancólico.<br />

WALTER BENJAMIN, SOBRE ALGUNS TEMAS EM<br />

BAUDELAIRE<br />

Benjamin (1994, p. 12), em Charles Bau<strong>de</strong>laire um lírico no auge <strong>do</strong><br />

capitalismo, compara Bau<strong>de</strong>laire aos conspira<strong>do</strong>res tal como são <strong>de</strong>scritos por Marx,<br />

em O 18 Brumário <strong>de</strong> Napoleão III. O conspira<strong>do</strong>r não se entrega ao combate aberto,<br />

ele se entrincheira nas barricadas. “O próprio i<strong>de</strong>al terrorista que Marx encontra nos<br />

conspira<strong>do</strong>res tem seu equivalente em Bau<strong>de</strong>laire...” Além <strong>de</strong>ste i<strong>de</strong>al, outras<br />

qualida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser acrescentadas a esta postura anarquista, ao humor macabro,<br />

ao culto da piada <strong>do</strong> goza<strong>do</strong>r <strong>de</strong>prava<strong>do</strong>, à fúria encarniçada. Politicamente, tu<strong>do</strong> isso<br />

tem uma só motivação: a revolta, entendida como revolução, <strong>de</strong>struição, expiação,<br />

castigo e morte, on<strong>de</strong> se misturam o algoz e a vítima.<br />

A fúria contra tu<strong>do</strong> e contra to<strong>do</strong>s que move os escritos <strong>do</strong> poeta, não espera<br />

compaixão, pelo contrário, já conta com o ódio <strong>do</strong> leitor. Não é a luta convencional,<br />

mas a tática das barricadas, como preferiam os operários da Comuna, mesmo que<br />

isso custasse a <strong>de</strong>rrota “... a luta no próprio quarteirão ao combate aberto e, se<br />

preciso, a morte atrás da barricada, numa rua <strong>de</strong> Paris.” Benjamin (1994, p. 13) vê<br />

semelhança entre este tipo <strong>de</strong> ação política e os escritos teóricos <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire que,<br />

intencionalmente contraditório, não resiste ao <strong>de</strong>bate nortea<strong>do</strong> pela lógica rigorosa.<br />

Pura provocação, que ao mesmo tempo bajula e ataca, num jogo que encontra<br />

terreno fértil nas tavernas da boêmia. A exemplo da Comuna e inspira<strong>do</strong> na<br />

<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> Blanqui, o poeta Bau<strong>de</strong>laire levanta sua barricada com os tijolos<br />

mágicos <strong>do</strong> anarquismo: sua estratégia política <strong>do</strong> motim e da conspiração visa a<br />

implodir a burguesia a partir <strong>de</strong>la mesma.<br />

84


Benjamin situa a obra <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire na Paris <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> império, a Paris <strong>do</strong>s<br />

extremos entre a ostentação burguesa e a revolta <strong>do</strong> operaria<strong>do</strong> entrincheira<strong>do</strong> nas<br />

barricadas. A efervescência política caracteriza-se pela tática da conspiração da<br />

qual não escapa nenhum cidadão, <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r ao último miserável. A re<strong>de</strong><br />

conspiratória exigia profissionais habili<strong>do</strong>sos, os agentes que se <strong>de</strong>dicavam em<br />

tempo integral ao árduo trabalho <strong>de</strong> criar as palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m. O conspira<strong>do</strong>r<br />

profissional <strong>de</strong>ve jogar em to<strong>do</strong>s os campos, <strong>do</strong>s gabinetes <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r aos<br />

alojamentos <strong>do</strong>s operários revolta<strong>do</strong>s. A ação política entretanto é <strong>de</strong>cidida nas<br />

penumbras das tavernas. Benjamin apresenta, neste cenário, o Bau<strong>de</strong>laire<br />

conspira<strong>do</strong>r profissional: o personagem capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir qualquer jogo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

seja no anonimato <strong>do</strong> escuro das tavernas. Agente secreto fingi<strong>do</strong>, ora bajula o<br />

po<strong>de</strong>r, ora instiga os opositores.<br />

Para obter uma compreensão mais completa das ações políticas da Paris <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> império, Benjamin recorre aos escritos <strong>de</strong> Marx e Engels sobre os<br />

movimentos operários <strong>de</strong>sta época, mais especificamente sobre a Comuna <strong>de</strong> Paris.<br />

É analisada aí a luta nas barricadas e, em particular, a ação <strong>do</strong>s conspira<strong>do</strong>res<br />

profissionais. Benjamin entrelaça os textos <strong>de</strong> Marx com os textos poéticos <strong>de</strong><br />

Bau<strong>de</strong>laire, principalmente os poemas O vinho <strong>do</strong>s trapeiros e Flores <strong>do</strong> mal, para<br />

configurá-lo como conspira<strong>do</strong>r. Nesta justaposição, sobressai a liberda<strong>de</strong> da arte<br />

distanciada <strong>do</strong> rigor teórico das análises políticas <strong>de</strong> Marx. Conspirar contra tu<strong>do</strong> e<br />

contra to<strong>do</strong>s, aliar-se ao bem e ao mal passa a ser a prática da embriaguez <strong>do</strong><br />

poeta. “O vinho transmite aos <strong>de</strong>serda<strong>do</strong>s sonhos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sforras e <strong>de</strong> glórias futuras.”<br />

(Benjamin, 1994, p.16). Benjamin (1994, p. 15) comenta a poesia O vinho <strong>do</strong>s<br />

trapeiros em que Bau<strong>de</strong>laire se iguala aos operários embriaga<strong>do</strong>s nas tavernas da<br />

periferia, on<strong>de</strong> o vinho era isento <strong>de</strong> impostos e portanto mais barato.<br />

De mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>preciativo, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, Marx fala das<br />

tavernas on<strong>de</strong> o conspira<strong>do</strong>r subalterno se sentia em casa. Os vapores que<br />

aí se precipitavam eram também familiares a Bau<strong>de</strong>laire.<br />

Benjamin (1994, p. 29), ao mesmo tempo que reverencia as análises <strong>de</strong><br />

Marx, enaltece Bau<strong>de</strong>laire e sua ação política <strong>de</strong> uma arte corrosiva e libertária: o<br />

poeta que não cola em si o rótulo <strong>de</strong> socialista, “...nem por isso, porém, lhe faltou o<br />

entendimento da verda<strong>de</strong>ira situação <strong>do</strong> literato.” E conclui (1994, p. 18): “A miséria<br />

85


e o álcool contraem no espírito <strong>do</strong> ilustra<strong>do</strong> capitalista uma relação essencialmente<br />

distinta daquela em Bau<strong>de</strong>laire.” Os trapeiros ganhavam a sobrevivência<br />

trabalhan<strong>do</strong> na rua com o que era rejeita<strong>do</strong> da industria. Essa gente marginalizada<br />

encantava os intelectuais que se <strong>de</strong>dicavam à pesquisa da pobreza: conspira<strong>do</strong>res<br />

e literatos tinham algo em comum com a miséria humana que pu<strong>de</strong>sse representar<br />

ameaça ao sistema, no sonho da revolta. Bau<strong>de</strong>laire, entretanto, tinha outra<br />

interpretação: utilizan<strong>do</strong> a passagem bíblica <strong>de</strong> Caim e Abel, enten<strong>de</strong> o proletaria<strong>do</strong><br />

como a raça originária <strong>de</strong> Caim, cuja única proprieda<strong>de</strong> é a força <strong>de</strong> trabalho. Essa<br />

interpretação, presente no poema Revolta, tem o tom carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> blasfêmia. Diz o<br />

poema: com remorso Deus criou o sono para afogar o ódio <strong>do</strong>s malditos que vão<br />

morren<strong>do</strong> e o homem fez o vinho, filho sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> sol. Ao tom blasfematório se<br />

junta o satanismo, que segun<strong>do</strong> Benjamin, não <strong>de</strong>ve ser leva<strong>do</strong> muito a sério, pois<br />

não passam <strong>do</strong> inconformismo <strong>do</strong> poeta.É interessante notar que existe, neste texto<br />

como na tese sobre o drama barroco, a mesma concepção <strong>do</strong> Satanás, “<strong>de</strong>positário<br />

<strong>do</strong> saber profun<strong>do</strong>”. Assim se expressa Bau<strong>de</strong>laire (2010, p. 91):<br />

Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,<br />

Deus que a morte traiu e privou <strong>do</strong> seu culto,<br />

Tem pieda<strong>de</strong>, ó Satã, <strong>de</strong>sta longa miséria!<br />

Ó príncipe <strong>do</strong> exílio a quem alguém fez mal,<br />

E que, venci<strong>do</strong>, sempre te ergues mais brutal,<br />

Tem pieda<strong>de</strong>, ó Satã, <strong>de</strong>sta longa miséria!<br />

Tu que vês tu<strong>do</strong>, ó rei das coisas subterrâneas,<br />

Charlatão familiar das humanas insânias,<br />

Tem pieda<strong>de</strong>, ó Satã, <strong>de</strong>sta longa miséria!<br />

Tu que, mesmo ao leproso, ao pária infame, ao réu<br />

Ensinas pelo amor as <strong>de</strong>lícias <strong>do</strong> Céu,<br />

Tem pieda<strong>de</strong>, ó Satã, <strong>de</strong>sta longa miséria!<br />

Tu, que da morte, tua velha e forte amante,<br />

Engendraste a Esperança – a louca fascinante!<br />

Tem pieda<strong>de</strong>, ó Satã, <strong>de</strong>sta longa miséria!<br />

Estes versos iniciais <strong>de</strong> As litanias <strong>de</strong> Satã <strong>de</strong>ixam clara a ironia expressa na<br />

pie<strong>do</strong>sa ladainha <strong>de</strong> alguém que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sígnios divinos, em forma <strong>de</strong><br />

86


adical blasfêmia. Se Bau<strong>de</strong>laire conspira contra tu<strong>do</strong> e contra to<strong>do</strong>s,<br />

comprometen<strong>do</strong>-se apenas com a longa miséria, resta-lhe apelar a Satã, “o Anjo<br />

mais belo e também mais culto,” uma vez que o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> e santida<strong>de</strong> lhe<br />

parece inócuo e falacioso. Satã passa a ser o confi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> poeta. Em outros<br />

poemas aparece uma outra concepção <strong>de</strong>ste satanismo: o <strong>de</strong>mônio que vive nos<br />

subterrâneos das galerias. Ora Satã é autor <strong>do</strong> mal, ora é o venci<strong>do</strong>, na visão<br />

dualista <strong>do</strong>s literatos da época em que ele está tanto na corte <strong>de</strong> Napoleão III como<br />

no meio <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong>, inspiran<strong>do</strong> a rebelião. Nos poemas <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire<br />

aparecem os <strong>do</strong>is rostos <strong>de</strong> Satã: aquele que fala <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res e o que fala <strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s. É exatamente o que diz Marx (2007, p. 21) quan<strong>do</strong> compara a<br />

<strong>de</strong>cadência da burguesia francesa <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> império à vida <strong>de</strong>pravada <strong>do</strong>s papas<br />

que só po<strong>de</strong>ria ser salva pelo diabo: “Só o roubo à prosperida<strong>de</strong> (para salvar a<br />

socieda<strong>de</strong> burguesa), o perjúrio à religião, a bastardia à família, a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m à<br />

or<strong>de</strong>m.” Benjamin (1994, p 21) explica o satanismo <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire:<br />

Quase sempre a confissão religiosa brota <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire como um grito <strong>de</strong><br />

guerra. Não quer que lhe tirem o seu Satã. Este é o verda<strong>de</strong>iro móvel <strong>do</strong><br />

conflito que Bau<strong>de</strong>laire teve <strong>de</strong> sustentar com sua <strong>de</strong>scrença. Não se trata<br />

<strong>de</strong> sacramento e oração, mas da ressalva luciferina <strong>de</strong> difamar o Satã, <strong>de</strong><br />

quem se está á mercê.<br />

Entre Abel, o bon<strong>do</strong>so habitante <strong>do</strong> idílio <strong>do</strong> campo, e o invejoso Caim que vai<br />

triunfar na cida<strong>de</strong>, às custas <strong>de</strong> rancores e <strong>de</strong>senganos, Bau<strong>de</strong>laire opta por Caim. A<br />

“arte pela arte” é inofensiva, uma vez que a malda<strong>de</strong> se revela radical tanto entre os<br />

vence<strong>do</strong>res quanto entre os venci<strong>do</strong>s. Bau<strong>de</strong>laire se sente livre e acima <strong>do</strong>s <strong>do</strong>gmas<br />

<strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> artística comprometida com uma <strong>de</strong>terminada causa. Observa<br />

Benjamin (1994, p. 22): “Tinha um ouvi<strong>do</strong> para a revolução e outro para a “voz<br />

superior” que fala através <strong>do</strong> rufar <strong>do</strong>s tambores das execuções.” Criar o espaço<br />

amplo para se movimentar, nisto consiste a originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste poeta. É assim que<br />

Benjamin apresenta a arte revolucionária <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire na Paris <strong>do</strong> auge <strong>do</strong><br />

capitalismo: nas fronteiras entre os conflitos <strong>de</strong> extremos, entre a burguesia e o<br />

proletaria<strong>do</strong>, entre venci<strong>do</strong>s e vence<strong>do</strong>res, numa dualida<strong>de</strong> radical, tal qual o<br />

príncipe barroco. Essa posição nos limiares, como também daquele príncipe, lhe<br />

ren<strong>de</strong> a mais profunda melancolia. Bau<strong>de</strong>laire é o poeta melancólico da<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

87


Dois ensaios ajudam enten<strong>de</strong>r a admiração <strong>de</strong> Benjamin para com a poesia<br />

lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire: Surrealismo – último instantâneo da inteligência européia e o<br />

texto sobre os intelectuais alemães da República <strong>de</strong> Weimar Melancolia <strong>de</strong> esquerda<br />

- A propósito <strong>do</strong> novo livro <strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> Erich Kästner. Em certo senti<strong>do</strong>, tratan<strong>do</strong>-<br />

se <strong>de</strong> ação política, este poeta está tão próximo <strong>do</strong> surrealismo e tão distante da<br />

poesia panfletária <strong>de</strong> esquerda, comprometida com a classe média e, por isso<br />

mesmo, contraditória e melancólica.<br />

Nestes três ensaios, Benjamin trata da ação política e, por este tema, estão<br />

relaciona<strong>do</strong>s sob vários aspectos. Primeiramente diz respeito à atuação <strong>do</strong> literato,<br />

<strong>do</strong> poeta e, num senti<strong>do</strong> mais amplo, <strong>do</strong> artista, nos momentos <strong>de</strong> premência social<br />

pela ação política. Bau<strong>de</strong>laire no século XIX, os surrealistas no século XX são<br />

exemplares na discussão sobre a relação entre arte e política, ou melhor, são<br />

exemplos <strong>de</strong> arte política - política não no senti<strong>do</strong> vulgar, mas no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

respeito à diversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> convivência entre as pessoas. Sobre o surrealismo, diz<br />

Benjamin (1985,p. 32):<br />

Em to<strong>do</strong>s os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista ten<strong>de</strong> ao mesmo<br />

fim: mobilizar para a revolução as energias da embriaguez. Po<strong>de</strong>mos dizer<br />

que é essa sua tarefa mais autêntica. Sabemos que um elemento <strong>de</strong><br />

embriaguez está vivo em cada ato revolucionário, mas isso não basta. Esse<br />

elemento é <strong>de</strong> caráter anárquico. Privilegiá-lo exclusivamente seria<br />

sacrificar a preparação metódica e disciplinada da revolução a uma práxis<br />

que oscila entre o exercício e a véspera da festa. A isso se acrescenta uma<br />

concepção estreita e não dialética da essência da embriaguez.<br />

Os textos sobre Bau<strong>de</strong>laire e sobre Kästner convergem para a análise da<br />

importância política <strong>do</strong> movimento surrealista, principalmente no que ele significa <strong>de</strong><br />

diametralmente oposto à literatura da esquerda burguesa alemã. O surrealismo foi<br />

capaz <strong>de</strong> romper com a i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>sta esquerda <strong>de</strong> tradição i<strong>de</strong>alista e moralizante.<br />

O satanismo, tema já presente na tese sobre o drama barroco, aparece no texto <strong>do</strong><br />

surrealismo como divisor <strong>de</strong> águas na questão sobre arte e política. De fato, a<br />

proposta surrealista foi revolucionária; mais que isso: preten<strong>de</strong>u a implosão da<br />

tradição literária, pela dialética <strong>de</strong> atingir os extremos <strong>do</strong> possível, <strong>do</strong> céu ao inferno.<br />

O culto <strong>do</strong> mal, “...aparelho <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinfecção e isolamento da política, contra to<strong>do</strong><br />

88


diletantismo moralizante.” Po<strong>de</strong>-se afirmar, conclui Benjamin (1985, p. 30), que o<br />

surrealismo está no extremo oposto da ingenuida<strong>de</strong> romântica pequeno burguesa,<br />

que preten<strong>de</strong> comover os corações, ao mostrar a malda<strong>de</strong> humana.<br />

Tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> prática política, a posição burguesa <strong>de</strong> esquerda, cuja<br />

representação máxima é a obra <strong>de</strong> Kästner, está vinculada à moral i<strong>de</strong>alista. Já no<br />

século XIX, na França, a poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire rompe com essa tradição<br />

moralizante. O satanismo <strong>do</strong>s surrealistas é o ingrediente <strong>de</strong>sse rompimento contra<br />

a melancólica canção poética dirigida aos ouvi<strong>do</strong>s, igualmente melancólicos,<br />

pequeno burgueses.<br />

Se a melancolia emerge <strong>do</strong> âmago <strong>do</strong> espírito barroco, na con<strong>figura</strong>ção <strong>de</strong> um<br />

príncipe divi<strong>do</strong> entre extremos, na poética pequeno burguesa, ela se transforma no<br />

refúgio, no triste e falso remédio para o confuso sentimento funda<strong>do</strong> na culpa entre<br />

interesses egoístas e uma realida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> cruel injustiça. Não passam <strong>de</strong><br />

poesias <strong>do</strong> consolo estagna<strong>do</strong> e reacionário. Eis como Benjamin (1985, p. 77) critica<br />

esse tipo <strong>de</strong> poesia:<br />

Elas se dirigem à tristeza <strong>do</strong>s satura<strong>do</strong>s, que não po<strong>de</strong>m aplicar<br />

inteiramente o seu dinheiro para alimentar seu estômago. Estupi<strong>de</strong>z<br />

torturada: ela é a última metamorfose da melancolia, em sua história <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />

mil anos.<br />

A poesia radical <strong>de</strong> esquerda <strong>de</strong> Kästner é objeto <strong>de</strong> consumo, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> à<br />

fruição diletante <strong>de</strong> indivíduos sem a menor vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação política. Seu efeito só<br />

po<strong>de</strong> ser a paralisação melancólica. O que esse tipo <strong>de</strong> literatura objetiva provocar<br />

no “indivíduo <strong>de</strong> alta renda” é o falso sentimento <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>, ou seja, <strong>de</strong><br />

reconciliação consigo mesmo, ou ainda, a busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da vida profissional<br />

com a vida privada. A verda<strong>de</strong>ira humanida<strong>de</strong> só po<strong>de</strong> dizer respeito à tensão entre<br />

o profissional e o priva<strong>do</strong>. Benjamin (1985, p. 77) comenta como esta tensão<br />

requer uma autêntica reflexão sobre a ação política: “Produzi-la é a tarefa que<br />

qualquer lírica política e sua realização mais rigorosa se encontra, hoje, na poesia<br />

<strong>de</strong> Brecht.”<br />

89


A melancolia <strong>de</strong>sta esquerda, “estupi<strong>de</strong>z torturada”, é paralítica porque é<br />

reflexo <strong>do</strong> indivíduo volta<strong>do</strong> sobre si mesmo: sua eterna ruminação, que nunca<br />

chega a digerir, gira em torno <strong>do</strong> apaziguamento consigo mesmo. Os poemas <strong>de</strong><br />

Kästner, para Benjamin (1985, p. 73s), embalam indivíduos <strong>de</strong> uma camada social<br />

que, saí<strong>do</strong>s da pobreza, conseguem prosperar graças a um disciplina<strong>do</strong> espírito<br />

individualista:<br />

A temática e a eficácia <strong>de</strong> Kästner, pois o autor é tão impotente para atingir,<br />

com seus acentos rebel<strong>de</strong>s, os <strong>de</strong>spossuí<strong>do</strong>s, quanto, com sua ironia, os<br />

industriais. Isso porque, apesar das aparências, essa lírica zela sobretu<strong>do</strong><br />

pelos interesses estamentais <strong>do</strong>s extratos médios – os agentes, os<br />

jornalistas, os diretores <strong>de</strong> pessoal.<br />

Existe nesta literatura um jogo <strong>de</strong> conveniência, on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>núncias, vazias <strong>de</strong><br />

autenticida<strong>de</strong>, soam hipócritas, seja quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>screve os pensamentos <strong>do</strong> operário<br />

sofre<strong>do</strong>r ou quan<strong>do</strong> diz ajustar contas com os banqueiros. Sua melancolia consiste<br />

em saber que sua arte não passa <strong>de</strong> lamento humanista situa<strong>do</strong> nas fronteiras entre<br />

interesses conflitantes. Benjamin se refere à ”inteligência burguesa <strong>de</strong> esquerda,<br />

supostamente Progressista,” como a i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong>gmática e moralizante. Na<br />

extremida<strong>de</strong> oposta a essa inteligência, <strong>de</strong>spontam a arte <strong>do</strong> surrealismo,<br />

impregnada <strong>do</strong> radical conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, para liquidar com o fossiliza<strong>do</strong><br />

humanismo da esquerda burguesa.<br />

O ensaio sobre o surrealismo O Surrealismo . O último instantâneo da<br />

inteligência europeia, <strong>de</strong> 1929, aborda o contexto <strong>de</strong> uma Europa entre guerras,<br />

quan<strong>do</strong> surge na França este movimento, antítese daquela arte alemã caracterizada<br />

pelo engessamento das i<strong>de</strong>ologias da esquerda simplista e ingênua. Antítese porque<br />

foi revolucionário no senti<strong>do</strong> mais amplo <strong>do</strong> termo: histórico e, principalmente,<br />

político. Sem dúvida, o surrealismo ultrapassa o nível artístico literário: impeli<strong>do</strong> pela<br />

reação das forças conserva<strong>do</strong>ras, se transformou na gran<strong>de</strong> força revolucionária da<br />

ação política. Esta arte é ruptura radical com as enganosas posturas progressistas<br />

<strong>de</strong> niilismo melancólico, vigente na intelectualida<strong>de</strong> europeia <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX.<br />

No senti<strong>do</strong> mais irrestrito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, Benjamin (1985, p. 32) expõe sua proposta:<br />

“...mobilizar para a revolução as energias da embriaguez.”<br />

90


Para melhor compreensão <strong>do</strong>s ensaios expostos neste trabalho <strong>de</strong> pesquisa<br />

sobre a melancolia, convém esclarecer o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> passa<strong>do</strong> na crítica benjaminiana<br />

da cultura. Há um ponto nevrálgico <strong>de</strong> entrecruzamento <strong>de</strong> toda a filosofia <strong>de</strong><br />

Benjamin, o que equivale dizer, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os seus escritos. Esta i<strong>de</strong>ia central é<br />

mostrada <strong>de</strong> maneira bem clara no ensaio Teses sobre o conceito da história, on<strong>de</strong><br />

Benjamin (1984, p. 223) afirma: “O passa<strong>do</strong> traz consigo um índice misterioso, que o<br />

impele à re<strong>de</strong>nção.” Tu<strong>do</strong> o que ele analisa em Bau<strong>de</strong>laire, Proust, Brecht e no<br />

surrealismo envolve esse índice <strong>de</strong> imagens misteriosas que a rememoração <strong>do</strong><br />

historia<strong>do</strong>r resgata para um presente revolucionário. Entretanto isso só é possível<br />

quan<strong>do</strong> a vivência no choque – <strong>do</strong> modus vivendi capitalista – se converte em<br />

experiência. Através <strong>de</strong>la, a repetição da história, como vitória <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res,<br />

transformam-se em imagens dialéticas <strong>do</strong> presente revolucionário, “...sob o livre céu<br />

da história” , conclui o filósofo. (1984, p. 230). É o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>spertar <strong>do</strong> sono.<br />

Benjamin dá, como exemplo, a moda: ela é a interminável repetição <strong>do</strong> velho, -<br />

pense-se no Jungenstill 42 - é o próprio mito. Benjamin (2006, p. 602) relaciona a<br />

principal obra poética <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire com o Jugendstil: “ Nas Fleurs du Mal, o<br />

Jugendstil se manifesta pela primeira vez com seu tema floral característico.” O<br />

Jugendstil é a expressão visual <strong>de</strong> uma burguesia <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, cuja única saída é<br />

imaginar um mun<strong>do</strong> belo e jovem ou, em último caso, uma bela morte. Esta classe<br />

se refugiou em uma arte frívola, utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> toda tecnologia que o capitalismo<br />

industrial colocava a sua disposição. Novos materiais, como o ferro, o vidro e o aço,<br />

transformavam-se em ornamentos florais, em profusão <strong>de</strong> objetos. A <strong>figura</strong> feminina<br />

estilizada em tons páli<strong>do</strong>s e estéril, era quase uma flor em cenários pictóricos<br />

primaveris. A moda traduzia, <strong>de</strong> maneira fiel, a mentalida<strong>de</strong> burguesa da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Paris, on<strong>de</strong> reinava o po<strong>de</strong>r da merca<strong>do</strong>ria. Benjamin (2006, p. 604) observa: [...] há<br />

uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> boutiques e ateliês on<strong>de</strong> se ven<strong>de</strong>m e se fabricam, a cada dia, as<br />

novas modas e tu<strong>do</strong> o que em geral se chama o artigo-Paris.”<br />

42<br />

Jugendstil, Art Nouveau ou Nova Arte é o estilo artístico <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIX. Assimetria, flui<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s<br />

temas inspira<strong>do</strong>s na natureza, mais especificamente os florais, são as características <strong>de</strong>sta arte, que na arquitetura<br />

usava o ferro e o aço. Na pintura, sobressai a <strong>figura</strong> humana feminina retratada em uma langui<strong>de</strong>z perturba<strong>do</strong>ra.<br />

Outra característica é a profusão <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong>corativos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s aos interiores. O nome <strong>do</strong> pioneiro <strong>de</strong>ste<br />

estilo é o belga Victor Horta. (Conf. Gombrich, E.H. Histólria da Arte.Rio <strong>de</strong> Janeiro:LTC Ed., 1995.).<br />

91


Por que Benjamin se <strong>de</strong>tém nessas imagens fantasmagóricas, expressões<br />

vivas e concretas <strong>do</strong> capitalismo obceca<strong>do</strong> pela novida<strong>de</strong>, ou seja, pela moda? – É<br />

para mostrar o outro la<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta história, que não é mito nem repetição <strong>do</strong> sempre<br />

igual. A ele não interessa a argumentação racional e abstrata, mas a meditação<br />

profunda e melancólica sobre as coisas concretas, que revelam outras imagens: as<br />

imagens dialéticas.O <strong>de</strong>spertar é que possibilita a <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> autêntico novo, por<br />

parte daquele que rememora, daquele que consegue ver no passa<strong>do</strong> – que é<br />

repeti<strong>do</strong> – as ruínas <strong>do</strong> que foi <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> e, junto com elas, to<strong>do</strong>s os que foram<br />

venci<strong>do</strong>s e estão à espera da re<strong>de</strong>nção. Se a obra <strong>de</strong> Proust e <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire têm<br />

importância para Benjamin, é justamente por isso.<br />

De que revolução Benjamin está falan<strong>do</strong>? - Sem dúvida, não se trata da<br />

revolta <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> para instalar a ditadura <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> <strong>de</strong> que fala Marx. As<br />

armas e os anseios são outros: a vida vivida entre o sono e a vigília, cuja linguagem,<br />

reino magnífico das palavras, é a interpenetração <strong>de</strong> som e imagem, <strong>de</strong> tal maneira<br />

que ela se sobrepõe ao senti<strong>do</strong>. É a experiência fértil <strong>do</strong> sonho e da embriaguez que<br />

abala a consciência e, por ser viva e fecunda, não se entrega à correnteza da<br />

embriaguez, antes, significa ação política revolucionária. Benjamin (1985, p. 26)<br />

revela o rosto da cida<strong>de</strong>:<br />

No centro <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas está o mais onírico <strong>do</strong>s seus objetos, a<br />

própria cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris. Mas somente a revolta <strong>de</strong>svenda inteiramente o<br />

seu rosto surrealista (ruas <strong>de</strong>sertas, em que a <strong>de</strong>cisão é ditada por apitos e<br />

tiros). E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> uma<br />

cida<strong>de</strong>.<br />

O surrealismo encontra o elemento revolucionário nas coisas aban<strong>do</strong>nadas e<br />

já esquecidas que o sonho revela. 43 No rejeita<strong>do</strong> e nos restos, existe a po<strong>de</strong>rosa<br />

43<br />

O ensaio sobre o surrealismo é indispensável – apesar <strong>de</strong> não ser objeto específico <strong>de</strong>ste trabalho - para<br />

compreen<strong>de</strong>r duas categorias fundamentais <strong>do</strong> pensamento benjaminiano: <strong>de</strong>spertar e sonho (Erwachen –<br />

Traum). Elas estão portan<strong>do</strong>, presentes em to<strong>do</strong>s os outros ensaios. Benjamin, em suas correspondências, tinha o<br />

hábito <strong>de</strong> simplesmente <strong>de</strong>screver seus sonhos, sem nada comentar sobre eles. Para ele, o sonho era uma maneira<br />

<strong>de</strong> dizer a realida<strong>de</strong> mesclada <strong>de</strong> presente e passa<strong>do</strong>, sem a preocupação psicanalítica <strong>de</strong> interpreta-los. Uma<br />

característica importante <strong>de</strong>sta concepção é a <strong>de</strong> que o sonho não é simplesmente repetição <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong><br />

recalca<strong>do</strong>. Existem também no sonho restos <strong>do</strong> cotidiano. É exatamente isso que possibilita vislumbrar o novo na<br />

repetição <strong>do</strong> sempre igual <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Novo, neste caso, significa um agora cheio <strong>de</strong> tensões, ou seja, o<br />

<strong>de</strong>spertar incluí<strong>do</strong> no sonho como uma força histórica. Nos textos sobre Bau<strong>de</strong>laire e Proust, a memória aparece<br />

como a condição <strong>do</strong> <strong>de</strong>spertar e é esta condição <strong>de</strong> que o passante, o operário e o joga<strong>do</strong>r não dispõem, pois sua<br />

92


força oculta. Caminhar pelas ruas <strong>de</strong>sertas da cida<strong>de</strong>, pelos bares que não estão<br />

mais na moda, pelos bairros da periferia, observar as antigas construções e os mais<br />

varia<strong>do</strong>s objetos sem mais utilida<strong>de</strong>, tu<strong>do</strong> isso se converte em experiência<br />

revolucionária.<br />

Benjamin (1985, p. 204) sintetiza vários ensaios: “O tédio é o pássaro <strong>de</strong><br />

sonho que choca os ovos da experiência.” Com esta citação <strong>do</strong> ensaio O narra<strong>do</strong>r,<br />

po<strong>de</strong>-se estabelecer o cruzamento entre o surrealismo e o Spleen <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire,<br />

cujos poemas têm como cenário a mesma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, metrópole <strong>do</strong> capitalismo<br />

<strong>do</strong> século XIX.<br />

Na metrópole surge a <strong>figura</strong> emblemática <strong>do</strong> flâneur, aquele indivíduo que<br />

cura seu tédio passean<strong>do</strong> no meio da multidão. Paris, em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX,<br />

era símbolo <strong>do</strong> avanço técnico capitalista: a cida<strong>de</strong> sofre profundas transformações<br />

urbanísticas. As exposições da indústria eram os gran<strong>de</strong>s eventos que atraiam<br />

multidões transitan<strong>do</strong> pelas largas avenidas, entre as mo<strong>de</strong>rnas construções <strong>de</strong><br />

ferro. São entretanto as galerias, verda<strong>de</strong>iros templos <strong>do</strong> consumo, que propiciam o<br />

surgimento <strong>do</strong> flâneur: elas são o seu paraíso. A galeria é um misto <strong>do</strong> público e <strong>do</strong><br />

priva<strong>do</strong>: o que há <strong>de</strong> mais novo e sofistica<strong>do</strong> está exposto em vitrines para o êxtase<br />

<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. As galerias concretizavam a literatura <strong>do</strong> folhetim, muito popular na<br />

época, caracterizada por registrar absolutamente tu<strong>do</strong> o que o olhar panoramático<br />

sobre a cida<strong>de</strong> consegue observar: tipos, cenários, mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida. São as<br />

fisiologias. O flâneur tem muito em comum com esse procedimento e ele encontra<br />

to<strong>do</strong>s os fenômenos da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> em um só lugar. Este lugar é a galeria, que<br />

representa para ele a rua e o interior <strong>de</strong> sua morada.<br />

No espaço das metrópole, surge uma curiosa característica da relação entre<br />

as pessoas na multidão: elas se vêem mas não se falam. É uma comunicação que<br />

provoca inquietação. Olhar sem ouvir po<strong>de</strong> significar insatisfação e apreensão, o<br />

que, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da fisiologia, não tem a mínima importância. Quanto a essas<br />

relações, Benjamin <strong>de</strong>senvolve o conceito fundamental <strong>de</strong> fisiognomonia, a partir <strong>do</strong><br />

única realida<strong>de</strong> é a vivência <strong>do</strong> choque. O que foi vivi<strong>do</strong> fulgura no presente em imagens dialéticas; sem a<br />

experiência, elas nada representam, com a memória, elas significam o <strong>de</strong>spertar.<br />

93


qual construirá sua obra inacabada Passagens. A ciência da fisiognomonia,<br />

<strong>de</strong>senvolvida no século XVIII, afirma que a fisionomia <strong>de</strong> uma pessoa revela muita<br />

coisa, como caráter, maneira <strong>de</strong> viver, para quem a olha à primeira vista. Mas qual o<br />

senti<strong>do</strong> que Benjamin (1994, p. 38) dá à fisiognomia da metrópole?<br />

As mezinhas calmantes que os fisiologistas punham à venda foram logo<br />

ultrapassadas. Por outro la<strong>do</strong>, à literatura que se atinha aos aspectos<br />

inquietantes e ameaça<strong>do</strong>res da vida urbana estava reserva<strong>do</strong> um gran<strong>de</strong><br />

futuro. Essa literatura também tem a vez com as massas, mas proce<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

mo<strong>do</strong> diferente das fisiologias. Pouco lhe importa a <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> tipos;<br />

ocupa-se, antes, com as funções próprias da massa na gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>.<br />

As funções próprias das massas, ao contrário da visão <strong>do</strong>s fisiologistas, é<br />

ocultar e proteger o anti-social. Nisso consiste a origem <strong>do</strong> romance policial, no qual<br />

o <strong>de</strong>tetive tem papel mais relevante. O flâneur se iguala ao <strong>de</strong>tetive quanto à aguda<br />

capacida<strong>de</strong> da percepção, pois não per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista o malfeitor, no meio da multidão.<br />

O cenário <strong>de</strong>ste romance é a cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, comparada à floresta, on<strong>de</strong> se<br />

representam personagens selvagens.<br />

Para se enten<strong>de</strong>r a obra <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire é preciso enten<strong>de</strong>r a influência que ela<br />

sofreu <strong>do</strong> romance policial, mais exatamente <strong>de</strong> Poe. Os elementos mais relevantes<br />

<strong>de</strong>sse romance estão nos poemas As flores <strong>do</strong> mal: o assassino, a vítima e o local<br />

<strong>do</strong> crime (a massa). Fica faltan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>tetive, com o qual era impossível Bau<strong>de</strong>laire<br />

se i<strong>de</strong>ntificar, uma vez que nele tu<strong>do</strong> se construía a partir <strong>do</strong> anti-social, da<br />

cruelda<strong>de</strong>. Se não existe mais o <strong>de</strong>tetive, a multidão, ou o local <strong>do</strong> crime, <strong>de</strong> refúgio<br />

<strong>do</strong> criminoso se transforma em refúgio <strong>do</strong> amor que foge, tema <strong>de</strong> A uma passante.<br />

Sobre este poema, diz Benjamin (1994, p.43): “Sua forma interna se manifesta em<br />

que mesmo o amor se reconhece estigmatiza<strong>do</strong> pela cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>.” É a passante<br />

que <strong>de</strong>sperta, como num choque, o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> poeta. O erotismo se trans<strong>figura</strong> à<br />

medida em que a correnteza humana arrasta o amor suspenso no ar. Assim<br />

Bau<strong>de</strong>laire (2010, p. 42) <strong>de</strong>screve a total <strong>de</strong>spersonalização na metrópole:<br />

Pois <strong>de</strong> ti já me fui, <strong>de</strong> mim tu já fugiste<br />

Tu que eu teria ama<strong>do</strong>, ó tu que bem o viste!.<br />

A burguesia busca uma compensação da perda <strong>de</strong> vestígios da vida privada<br />

na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, se <strong>de</strong>dican<strong>do</strong> obsessivamente em guardar objetos que marquem<br />

94


sua passagem. Daí os estojos para guardar to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> objeto e o uso <strong>do</strong> velu<strong>do</strong><br />

que <strong>de</strong>ixa marcas. Em contrapartida, a socieda<strong>de</strong> capitalista industrializada<br />

<strong>de</strong>senvolve o controle sobre a vida privada, sem que isso consiga compensar a<br />

perda <strong>de</strong>finitiva <strong>do</strong>s vestígios na metrópole, ou seja, o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> ser<br />

humano no meio da massa. É o que lamenta o “criminoso” Bau<strong>de</strong>laire naquele<br />

poema. Ele mesmo fugia <strong>de</strong> cre<strong>do</strong>res, escondi<strong>do</strong> em bares e livrarias. No afã <strong>de</strong><br />

encontrar o criminoso, a criminalística <strong>de</strong>senvolve as técnicas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, para<br />

a qual a fotografia foi a gran<strong>de</strong> invenção. Ao criminoso só resta o anonimato, esse<br />

refúgio que a multidão lhe proporciona.<br />

No romance policial <strong>de</strong> Poe suge a <strong>figura</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> no meio da<br />

multidão, além daquele que persegue. O <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> é o flâneur, o suspeito.<br />

Diferentemente <strong>de</strong> Poe, Bau<strong>de</strong>laire é conivente com esse personagem. A multidão<br />

se torna o centro da narrativa para o romance policial. Para Bau<strong>de</strong>laire, ela não é<br />

vista através da janela <strong>do</strong> aposento <strong>do</strong> burguês, mas <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s cafés ou da<br />

própria rua. Bau<strong>de</strong>laire amava ser solitário <strong>de</strong>ntro da multidão:<br />

Há uma litografia <strong>de</strong> Senefel<strong>de</strong>r que representa uma casa <strong>de</strong> jogo. Nenhum<br />

<strong>do</strong>s retrata<strong>do</strong>s acompanha o jogo da maneira habitual. Cada um está<br />

possuí<strong>do</strong> por seu afeto: um, por uma alegria irreprimida; outro pela<br />

<strong>de</strong>sconfiança em relação ao parceiro; um terceiro, por um sur<strong>do</strong> <strong>de</strong>sespero;<br />

um quarto por sua maneira <strong>de</strong> discutir, outro ainda, se prepara para <strong>de</strong>ixar<br />

este mun<strong>do</strong>.<br />

O esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito <strong>de</strong>stes personagens <strong>de</strong>scritos por Benjamin (1994, p.<br />

49) é o mesmo <strong>do</strong>s indivíduos no meio da multidão: solitários, parecem viver seu<br />

mun<strong>do</strong>, totalmente alheios ao mun<strong>do</strong> que se agita ao seu re<strong>do</strong>r. Eles amam a<br />

solidão na multidão. A solidão e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvar a vida privada iriam chegar ao<br />

extremo <strong>do</strong> <strong>de</strong>sespero, como <strong>de</strong>screve Poe em seus romances. O indivíduo se<br />

ren<strong>de</strong> à massificação, com gestos mecânicos, que mais parece um palhaço no<br />

palco, vesti<strong>do</strong> conforme a massificação da moda. São os interesses particulares<br />

tentan<strong>do</strong> a sobrevida no meio da massa. Na Paris <strong>do</strong> século a flânerie era<br />

personificada naqueles indivíduos que se negam per<strong>de</strong>r a privacida<strong>de</strong> e protestam,<br />

com sua postura <strong>de</strong> ocioso, contra o servilismo que a socieda<strong>de</strong> industrial capitalista<br />

impõe. Benjamin, ao <strong>de</strong>screver o flâneur, caracteriza-o como alguém que caminha<br />

lentamente na multidão e, <strong>de</strong> repente, pára diante <strong>de</strong> uma vitrine por longos minutos.<br />

95


Ele observa atentamente to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>ste cenário frenético, como o oposto<br />

<strong>do</strong> homem servil e distraí<strong>do</strong> da massa. O flânuer personifica o jogo entre o público e<br />

o priva<strong>do</strong>, entre os espaços exteriores e os interiores: seu último refúgio foram as<br />

galerias, verda<strong>de</strong>iras ruas cobertas como se fossem residências. O flânuer<br />

Bau<strong>de</strong>laire representa aquele con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> à vida na metrópole, jamais o <strong>de</strong>tetive <strong>do</strong><br />

romance policial. Benjamin (1994, p. 51ss) retrata este personagem:<br />

Teria podi<strong>do</strong> dizer também que foi o primeiro a falar <strong>do</strong> ópio que conforta<br />

este – e somente este – con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>. A multidão não é apenas o mais novo<br />

refúgio <strong>do</strong> proscrito; é também o mais novo entorpecente <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. O<br />

flânuer é um aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> na multidão. Com isso partilha a situação da<br />

merca<strong>do</strong>ria. Não está consciente <strong>de</strong>ssa situação particular, mas nem por<br />

isso ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o in<strong>de</strong>niza<br />

por muitas humilhações, a ebrieda<strong>de</strong> a que se entrega o flâneur é a da<br />

merca<strong>do</strong>ria em torno da qual brame a corrente <strong>do</strong>s fregueses.<br />

Benjamin consegue, com sua original sagacida<strong>de</strong> e sempre fiel ao seu<br />

programa epistemológico, que a verda<strong>de</strong> se represente pela emergência da<br />

con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia, a partir <strong>do</strong>s extremos da forma artística. A forma aqui tratada<br />

são os poemas <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire: eles revelam os fenômenos <strong>do</strong> capitalismo industrial<br />

em seus extremos. As sutilezas, os emaranha<strong>do</strong>s sentimentos surgem nesses<br />

poemas através <strong>do</strong> olhar melancólico <strong>do</strong> artista que observa <strong>de</strong>moradamente o<br />

fascinante e arrebata<strong>do</strong>r mun<strong>do</strong> da merca<strong>do</strong>ria. 44<br />

Flâneur, merca<strong>do</strong>ria e multidão: é a trilogia que age em círculo vicioso. O<br />

flâneur se entrega à multidão que age sobre ele como um ópio e neste refúgio, se vê<br />

como merca<strong>do</strong>ria. A embriaguez a que se entrega é a atração que a merca<strong>do</strong>ria<br />

exerce sobre o compra<strong>do</strong>r, ou seja, trata-se <strong>do</strong> próprio poeta atraí<strong>do</strong> pelo po<strong>de</strong>r <strong>do</strong><br />

fetiche. O Spleen – tristeza, melancolia – são os poemas <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire que revelam<br />

a mais profunda melancolia <strong>do</strong> jogo enganoso <strong>de</strong>sta embriaguez: rosas fanadas,<br />

escombro, esfinge esquecida no mapa são as imagens usadas para i<strong>de</strong>ntificar o<br />

pobre escombro humano, na sua empatia com o inorgânico, com o que já está<br />

44<br />

Benjamin, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, aqui também faz referências a Marx, citan<strong>do</strong> o capítulo I, A<br />

merca<strong>do</strong>ria. No parágrafo 4, O caráter fetichista da merca<strong>do</strong>ria e seu segre<strong>do</strong>, Marx, com a ironia que lhe é<br />

peculiar, procura precisar o conceito <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>ria-fetiche nas relações humanas, por meio da analogia com o<br />

religioso e o metafísico. “À primeira vista, a merca<strong>do</strong>ria parece uma coisa trivial, evi<strong>de</strong>nte. Analisan<strong>do</strong>-a, vê-se<br />

que ela é uma coisa muito complicada, cheia <strong>de</strong> sutileza metafísica e manha teológica.” Marx,1983). A análise<br />

procura <strong>de</strong>svendar a origem <strong>do</strong> caráter enigmático da merca<strong>do</strong>ria, isto é, o que a transforma em fetiche, capaz <strong>de</strong><br />

reduzir as relações humanas em relações reificadas: relação homem-coisa-homem.<br />

96


morto. A melancolia radical fica assim estampada no rosto surrealista da metrópole,<br />

on<strong>de</strong> a merca<strong>do</strong>ria reina soberana pelo po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> fetiche. A vibração entre<br />

merca<strong>do</strong>ria e consumi<strong>do</strong>r é traduzida, no Spleen, por Bau<strong>de</strong>laire (2010, p. 73) como<br />

melancolia da atração pela matéria morta.<br />

Eu sou um cemitério odia<strong>do</strong> pela lua,<br />

On<strong>de</strong>, como remorsos maus, vermes compri<strong>do</strong>s<br />

Andam sempre a atacar meus mortos mais queri<strong>do</strong>s.<br />

Sou como um camarim em que há rosas fanadas,<br />

Toda uma confusão <strong>de</strong> modas já passadas,<br />

Gravuras <strong>de</strong> Boucher que ainda aspiram <strong>de</strong>certo<br />

O perfume sutil <strong>de</strong> um frasco aberto.<br />

Atraí<strong>do</strong> pelo sex-appeal <strong>do</strong> inorgânico, o poeta se trans<strong>figura</strong> na essência da<br />

empatia merca<strong>do</strong>ria-compra<strong>do</strong>r, para revelar com o mais radical tédio a reificação <strong>do</strong><br />

humano fada<strong>do</strong> ao perecimento. As imagens <strong>de</strong> cores fortes que seu poema cria<br />

atestam esse <strong>de</strong>sencanto: pobre rei, esqueleto moço, corpo rijo <strong>de</strong> torpor, velho<br />

poeta, amores <strong>de</strong>funtos. É o <strong>de</strong>sengano <strong>de</strong> alguém, ora arrasta<strong>do</strong> pela multidão, ora<br />

com o olhar paralisa<strong>do</strong> pelo tédio diante <strong>de</strong> uma vitrine, como observa<br />

Benjamin (1994, p. 57):<br />

Bau<strong>de</strong>laire não se sentia movi<strong>do</strong> a se entregar ao espetáculo da natureza.<br />

Sua experiência da multidão comportava os rastros da “ iniqüida<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s<br />

milhares encontrões” que sofre o transeunte no tumulto <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> e<br />

que só fazem manter tanto mais viva sua autoconsciência. (No fun<strong>do</strong>, é<br />

exatamente essa autoconsciência que ele empresta à merca<strong>do</strong>ria que<br />

flana).<br />

Em Bau<strong>de</strong>laire, não existe a mínima intenção <strong>de</strong> se reconciliar com a<br />

natureza, como meio <strong>de</strong> salvar o homem perdi<strong>do</strong> na multidão. Ele <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha <strong>do</strong><br />

romantismo <strong>de</strong> Victor Hugo que apela pelo cenário natural, afirman<strong>do</strong> que até o<br />

oceano se cansou <strong>de</strong>le. O poeta, enquanto merca<strong>do</strong>ria, ou seja, enquanto força <strong>de</strong><br />

trabalho, faz o jogo da embriaguez na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> busca o prazer, como<br />

97


qualquer pequeno burguês, saben<strong>do</strong> que este prazer <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> coisas <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes.<br />

É a estranha atração <strong>de</strong> que fala Benjamin (1994, p. 55): “Ele se mantém consciente<br />

mas da maneira pela qual os inebria<strong>do</strong>s ainda permanecem conscientes das<br />

circunstâncias reais.” É o fascínio pela multidão e, ao mesmo tempo, a consciência<br />

<strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> terrível.<br />

Se compara<strong>do</strong> com as análises <strong>de</strong> Marx sobre a estrutura social <strong>do</strong><br />

capitalismo industrial, Benjamin prioriza outro méto<strong>do</strong> para fazer emergir a<br />

con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia como o to<strong>do</strong> revela<strong>do</strong>r <strong>de</strong>stes fenômenos históricos. Este<br />

méto<strong>do</strong> utiliza a poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire. Se Marx é o investiga<strong>do</strong>r que olha para<br />

os fenômenos <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora, o poeta experiencia-os <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro: ele é multidão e é<br />

também merca<strong>do</strong>ria; sofre e goza todas as tensas vibrações <strong>de</strong> uma metrópole<br />

capitalista, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, em tu<strong>do</strong> o que ela representa <strong>de</strong> fascinante e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>prava<strong>do</strong>. Sua poesia são romances policiais on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>tetive e o criminoso são a<br />

mesma coisa, ou talvez nem haja <strong>de</strong>tetive. O certo é que a multidão é seu refúgio e<br />

seu ópio. Benjamin (1994, p. 143) enfatiza o alcance <strong>de</strong> Flores <strong>do</strong> mal:<br />

As Flores <strong>do</strong> mal foram a última obra lírica a exercer influência no âmbito<br />

europeu; nenhuma outra posterior ultrapassou as fronteiras mais ou menos<br />

restritas <strong>de</strong> uma língua. A isso se acrescente ainda que Bau<strong>de</strong>laire<br />

concentrou sua força criativa quase inteiramente neste livro. E, finalmente,<br />

não se po<strong>de</strong> refutar o fato <strong>de</strong> que alguns <strong>de</strong> seus temas consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s na<br />

presente análise colocam em questão a possibilida<strong>de</strong> mesma <strong>de</strong> uma<br />

poesia lírica.<br />

Bau<strong>de</strong>laire conseguiu renovar o interesse <strong>do</strong> leitor pela poesia lírica. A prova<br />

<strong>do</strong> ressurgimento <strong>de</strong>sse interesse são as seguidas edições <strong>de</strong> Flores <strong>do</strong> mal.<br />

Benjamin explica o êxito da obra lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire recorren<strong>do</strong> à categoria da<br />

experiência. Esta categoria benjaminiana aparece <strong>de</strong> maneira mais direta em O<br />

narra<strong>do</strong>r e em Experiência e pobreza. Nestes ensaios ele expõe o alcance da<br />

experiência (Erfahrung) enquanto riqueza acumulada e transmitida pela arte <strong>de</strong><br />

narrar e, como tal, é o oposto <strong>de</strong> vivência (Erlebnis), própria da informação, da<br />

notícia jornalística. Benjamin enxerga na poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire a experiência<br />

partilhada, quan<strong>do</strong> afirma que o poeta, em seu spleen (melancolia), se dirigia a<br />

leitores melancólicos<br />

98


Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> esse processo envolven<strong>do</strong> a vivência e a experiência,<br />

Benjamin levanta a questão mais relevante para a análise da poesia <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire:<br />

como pensar a poesia lírica fundamentada na experiência vivida no choque<br />

amorteci<strong>do</strong> pela consciência? Benjamin (1994, p. 111) afirma que Bau<strong>de</strong>laire<br />

conseguiu a emancipação em relação às vivências entreven<strong>do</strong> espaços vazios on<strong>de</strong><br />

insere sua poesia:<br />

Bau<strong>de</strong>laire fixou esta constatação na imagem crua <strong>de</strong> um duelo, em que o<br />

artista, antes <strong>de</strong> ser venci<strong>do</strong>, lança um grito <strong>de</strong> susto. Este duelo é o próprio<br />

processo <strong>de</strong> criação. Assim Bau<strong>de</strong>laire inseriu a experiência <strong>do</strong> choque no<br />

âmago <strong>de</strong> seu trabalho artístico. Este <strong>de</strong>poimento sobre si mesmo,<br />

confirma<strong>do</strong> por <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> muitos contemporâneos, é da maior<br />

importância.<br />

A multidão amorfa <strong>do</strong>s passantes, imagem <strong>do</strong> choque e o contato com a<br />

multidão é o cenário oculto <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> criação. Nela o poeta disfere golpes,<br />

como na luta da esgrima, permean<strong>do</strong> <strong>de</strong>svaneios e emoções líricas da alma.<br />

Bau<strong>de</strong>laire está <strong>de</strong>ntro da multidão, não a olha <strong>de</strong> fora; não lhe interessa a <strong>de</strong>scrição<br />

com fins moralizantes, mas a imagem impressa na memória, ou seja, a imagem da<br />

cida<strong>de</strong> que evoca a imagem da multidão. Ver Paris através da massa. O poeta<br />

consegue torná-la presente, sem usar uma palavra que a <strong>de</strong>signe, em seu poema A<br />

passante. (BENJAMIN,1994, p. 117) comenta a simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontro e<br />

<strong>de</strong>spedida:<br />

O que o soneto nos dá a enten<strong>de</strong>r é capta<strong>do</strong> com uma frase: a visão que<br />

fascina o habitante da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> – longe <strong>de</strong> ele ter na multidão apenas<br />

uma rival, apenas um elemento hostil, - lhe é trazida pela própria multidão.<br />

O encanto <strong>do</strong> habitante da metrópole é um amor não tanto à primeira<br />

quanto à última vista. É uma <strong>de</strong>spedida para sempre, que coinci<strong>de</strong> no<br />

poema, com o momento <strong>do</strong> fascínio.<br />

O poema é a imagem <strong>de</strong> um choque: num momento fugaz, os olhares, o <strong>do</strong><br />

poeta e o da mulher vestida <strong>de</strong> preto, se cruzam. Ela é arrastada pela multidão. A<br />

perplexida<strong>de</strong> sexual se apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong> um solitário e se transforma em amor que lhe é<br />

nega<strong>do</strong>.Em Bau<strong>de</strong>laire (2010, p.20), O choque se converte em imagem da<br />

catástrofe:<br />

Longe daqui! Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais! Nunca talvez!<br />

Pois não sabes <strong>de</strong> mim, não sei que fim levaste,<br />

99


Tu que eu teria ama<strong>do</strong>, ó tu, que o adivinhaste!<br />

Bau<strong>de</strong>laire traduziu o conto <strong>de</strong> Poe O homem da multidão. Poe <strong>de</strong>screve o<br />

movimento frenético nas aglomerações, ten<strong>do</strong> como ponto <strong>de</strong> observação a própria<br />

rua. Os transeuntes têm o comportamento uniformiza<strong>do</strong>, agem <strong>de</strong> forma autômata e<br />

disciplinada e são dóceis e disciplina<strong>do</strong>s. Bau<strong>de</strong>laire está <strong>de</strong>ntro da multidão, ocioso,<br />

observa<strong>do</strong>r, envolvi<strong>do</strong> nela e seu crítico ao mesmo tempo. Por uns momentos é seu<br />

cúmplice para, <strong>de</strong> repente, afastar-se <strong>de</strong>la; vive sua intimida<strong>de</strong> e no mesmo instante<br />

se volta para ela com <strong>de</strong>sprezo. “Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-se<br />

estremecer em rápidas sequências, como <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> uma bateria. Bau<strong>de</strong>laire fala<br />

<strong>do</strong> homem que mergulha na multidão como um tanque <strong>de</strong> energia elétrica.” Assim<br />

conclui Benjamin (1994, p. 124).<br />

A arte <strong>do</strong> cinema correspon<strong>de</strong> a esta nova necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estímulo: o filme<br />

não é outra coisa senão a percepção em forma <strong>de</strong> choque, ou seja, comunica no<br />

ritmo acelera<strong>do</strong> <strong>de</strong> receptibilida<strong>de</strong>. Benjamin (1994, p. 126) compara o transeunte<br />

com o operário: “À vivência <strong>do</strong> choque, sentida pelo transeunte na multidão,<br />

correspon<strong>de</strong> à “vivência” <strong>do</strong> operário com a máquina.” Bau<strong>de</strong>laire prefere a analogia<br />

com o jogo pratica<strong>do</strong> pelo ocioso, on<strong>de</strong> o que interessa é o lance instantâneo e<br />

certeiro, da mesma forma que o operário realiza o ato reflexo exigi<strong>do</strong> pela máquina.<br />

Assim são os operários, os joga<strong>do</strong>res e os passantes: sem passa<strong>do</strong>, sem memória.<br />

O <strong>de</strong>sejo, ao contrário, pertence à categoria da experiência. Benjamin<br />

introduz o conceito <strong>de</strong> tempo indissolúvel da experiência: é o tempo longo, ou<br />

melhor, o tempo que nos leva longe para realizar um <strong>de</strong>sejo, como coroamento da<br />

experiência. É a simbologia <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo e da distante estrela ca<strong>de</strong>nte, o oposto da<br />

carta que está à mão para selar a sorte. Ele cita as Pensées <strong>de</strong> Joubert: “O tempo<br />

se encontra mesmo na eternida<strong>de</strong>; mas não é o tempo terreno, secular... É o tempo<br />

que não <strong>de</strong>strói; aperfeiçoa apenas.” 45 Não é o tempo infernal que não permite<br />

concluir o que foi começa<strong>do</strong>. Este é o tempo conta<strong>do</strong> pelo relógio, <strong>do</strong> joga<strong>do</strong>r e <strong>do</strong><br />

operário que nunca vê o produto <strong>de</strong> seu trabalho. No poema O joga<strong>do</strong>r Bau<strong>de</strong>laire<br />

está na cena <strong>do</strong> jogo: ele está num canto <strong>do</strong> antro <strong>do</strong>s <strong>de</strong>rrota<strong>do</strong>s, sem ter o direito<br />

45 JOUBERT, apud BENJAMIN,1994, p. 29.<br />

100


ao tempo da experiência, mas se nega a tomar o entorpecente que <strong>de</strong>strói sua<br />

consciência e não se submete à marcha <strong>do</strong>s ponteiros <strong>do</strong> relógio.<br />

Benjamin faz emergir, a partir <strong>do</strong>s extremos <strong>de</strong>sta forma <strong>de</strong> arte, ou seja, da<br />

poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, a con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia, on<strong>de</strong> se presentificam os<br />

fenômenos extremos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, como já havia feito com a forma <strong>do</strong> drama<br />

barroco. Assim, o poema O jogo revela o homem mo<strong>de</strong>rno no limiar <strong>do</strong>s conflitos da<br />

metrópole <strong>do</strong> progresso capitalista. Buscan<strong>do</strong> atingir o âmago das imagens poéticas<br />

<strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, Benjamin vê a correlação <strong>de</strong>ste poema com o conto O homem da<br />

multidão <strong>de</strong> Poe e com a obra <strong>de</strong> Marx O 18 brumário <strong>de</strong> Luís Bonaparte, cujo<br />

cenário é a mesma Paris <strong>do</strong> século XIX.<br />

Proust ratifica a noção bergsoniana da duração qualitativa <strong>do</strong> tempo cheio<br />

<strong>de</strong> tensões; buscan<strong>do</strong>, pela memória involuntária, as reminiscências <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, ele<br />

também sente gran<strong>de</strong> afinida<strong>de</strong> com a poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire. Proust nota nesta<br />

arte os extremos <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong>sagrega<strong>do</strong> e também, ainda que pouco, o tempo <strong>de</strong><br />

rememoração ou os dias <strong>de</strong> comemoração, estes totalmente diferentes da vivência<br />

<strong>de</strong>sagrega<strong>do</strong>ra. É o que Bau<strong>de</strong>laire chama <strong>de</strong> correspondências, conceito<br />

diretamente liga<strong>do</strong> ao <strong>de</strong> experiência; são os da<strong>do</strong>s da rememoração que lhe<br />

possibilitam enten<strong>de</strong>r sua condição <strong>de</strong>strutiva <strong>de</strong> homem mo<strong>de</strong>rno. Flores <strong>do</strong> mal<br />

tem o significa<strong>do</strong> secreto <strong>de</strong> tempo perdi<strong>do</strong> e irrecuperável.<br />

Envolto na atmosfera melancólica, o poeta tenta por to<strong>do</strong>s os meios<br />

atravessar o longo caminho <strong>do</strong> tempo até “os sons, cores e perfumes” e constata<br />

que esta experiência só é possível como culto <strong>do</strong> belo. As correspondências são o<br />

reencontro com as coisas que <strong>de</strong>vem ser rememoradas em dias <strong>de</strong> festa. Pela<br />

mesma atmosfera melancólica, o poeta se ren<strong>de</strong> ao po<strong>de</strong>r satânico, ao senhor <strong>do</strong>s<br />

tempos quantitativos marca<strong>do</strong>s pelo ponteiro <strong>do</strong> relógio. Ele se inscreve nas<br />

fronteiras <strong>do</strong>s extremos, tal qual o príncipe melancólico barroco das faces <strong>de</strong> Janus:<br />

<strong>de</strong> um la<strong>do</strong> a rememoração alegre, nas imagens <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire (2010, p. 31):<br />

Foi aí que vivi nas volúpias mais calmas,<br />

Circunda<strong>do</strong> <strong>de</strong> azul, <strong>de</strong> vagas, <strong>de</strong> esplen<strong>do</strong>res,<br />

101


De escravos to<strong>do</strong>s nus, impregna<strong>do</strong>s <strong>de</strong> o<strong>do</strong>res.<br />

e <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>, um pessimismo resigna<strong>do</strong>, nas palavras <strong>do</strong> poeta (2010, p. 83):<br />

Enquanto <strong>do</strong>s mortais a turbamulta vil,<br />

Que o Prazer, duro algoz, vergasta, vai colhen<strong>do</strong><br />

Remorsos, nada mais, nesta festa servil.<br />

A reação violenta <strong>do</strong> poeta diante da perda da experiência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e<br />

con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> ao presente cujo tempo é conta<strong>do</strong> pelo relógio. Benjamin afirma: “A ira,<br />

com seus arrebatamentos, marca o ritmo <strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s, à mercê <strong>do</strong> qual se<br />

encontra o melancólico”. No tempo reifica<strong>do</strong>, ainda existem os calendários com seus<br />

feria<strong>do</strong>s, que são os espaços <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s ao rememorar. Nos fragmentos da<br />

experiência qualitativa <strong>do</strong> tempo, o homem da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, bani<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta<br />

rememoração, tem apenas os <strong>do</strong>mingos para se lembrar <strong>de</strong>la. Antes arautos <strong>do</strong>s<br />

dias festivos, os sinos que ele ouve dialogam com seu espírito agita<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem<br />

sem história. Benjamin (1994, p. 136) fala <strong>do</strong> tempo reifica<strong>do</strong>:<br />

No spleen, o tempo está reifica<strong>do</strong>; os minutos cobrem o homem como flocos<br />

<strong>de</strong> neve. Esse tempo é sem história, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que o da memoire<br />

involuntaire. No spleen, no entanto, a percepção <strong>do</strong> tempo está<br />

sobrenaturalmente aguçada; cada segun<strong>do</strong> encontra o consciente pronto<br />

para amortecer o seu choque.<br />

O splenn fala cruamente da vivência: vivência nua, sem aura, sem as falsas<br />

vestes da experiência da durée <strong>de</strong> Bergson, eternizada e <strong>de</strong>svinculada da história. É<br />

assim que a melancolia <strong>do</strong> spleen <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire (2010, p. 79) concebe a vivência <strong>do</strong><br />

homem da metrópole:<br />

Dorme, ó meu coração; <strong>de</strong>siste, ó massa bruta!<br />

Há correlação significativa entre os ensaios Sobre alguns temas <strong>de</strong><br />

Bau<strong>de</strong>laire e A obra <strong>de</strong> arte na era <strong>de</strong> sua reprodutibilida<strong>de</strong> técnica, primeiro, porque<br />

o choque, característica da socieda<strong>de</strong> industrial capitalista, é o elemento constituinte<br />

tanto da poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire quanto <strong>do</strong> cinema. Acrescenta-se ainda o tema<br />

da perda da aura, também analisa<strong>do</strong> por Benjamin (1994, p. 163) nos <strong>do</strong>is ensaios:<br />

102


“A <strong>de</strong>silusão e o <strong>de</strong>clínio da aura são fenômenos idênticos. Bau<strong>de</strong>laire coloca o<br />

artifício da alegoria a serviço <strong>de</strong> ambos.” O tema <strong>do</strong> choque se refere diretamente<br />

aos conceitos <strong>de</strong> experiência e <strong>de</strong> vivência, aborda<strong>do</strong>s nos ensaios sobre memória<br />

voluntária e memória involuntária da obra <strong>de</strong> Proust e, <strong>de</strong> maneira mais direta, em<br />

Experiência e pobreza e O narra<strong>do</strong>r. Se a aura é o fenômeno irreeptível <strong>de</strong> uma<br />

distância, se a distância é algo inatingível, a obra aurática tem o caráter <strong>de</strong> culto:<br />

aquela que alimenta continuamente o <strong>de</strong>sejo. Ela tem muito a ver com a experiência,<br />

com o onírico e com a memória involuntária. Bau<strong>de</strong>laire entretanto se recusa dar a si<br />

mesmo a auréola <strong>de</strong> poeta. A obra que per<strong>de</strong>u a aura é como o alimento que sacia,<br />

só diz respeito à vivência, ao choque e ao consciente. Diz Benjamin (1994,p. 161)em<br />

Parque central: “Os jogos <strong>de</strong> azar, o flanar, o coleciona<strong>do</strong>r – ativida<strong>de</strong>s que se<br />

contrapõem ao spleen.” É um olhar que não tem retorno <strong>do</strong> objeto olha<strong>do</strong>. Para ele<br />

o olhar <strong>de</strong>slumbra<strong>do</strong> e <strong>de</strong>scomprometi<strong>do</strong> <strong>do</strong> flâneur não existe mais. A vivência se<br />

transforma em experiência em Bau<strong>de</strong>laire, explica Benjamin (1994, p. 145):<br />

Traí<strong>do</strong> por esses seus últimos alia<strong>do</strong>s (os marginais), Bau<strong>de</strong>laire se volta<br />

contra a multidão; e o faz com fúria impotente <strong>de</strong> quem luta contra a chuva<br />

e o vento. Tal é a natureza da vivência que Bau<strong>de</strong>laire preten<strong>de</strong> elevar à<br />

categoria <strong>de</strong> experiência. Ele <strong>de</strong>terminou o preço que é preciso pagar para<br />

adquirir a sensação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno: a <strong>de</strong>sintegração da aura na vivência <strong>do</strong><br />

choque. A conivência com esta <strong>de</strong>struição lhe saiu cara. Mas é a lei <strong>de</strong> sua<br />

poesia que paira no céu <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Império como “um astro sem<br />

atmosfera”.<br />

Benjamin, ao revelar assim a especificida<strong>de</strong> da forma poética <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire,<br />

ou seja, a vivência elevada à categoria da experiência, dá, ao mesmo tempo, a<br />

exata compreensão <strong>do</strong> seu ensaio sobre o papel <strong>do</strong> cinema como forma <strong>de</strong> arte na<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s conflitos entre claros e escuros barrocos,<br />

caracterizada pelo olhar melancólico <strong>do</strong> artista. Mais uma vez, como já o fizera em<br />

Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão, sempre fiel a seu méto<strong>do</strong>, consegue fazer<br />

emergir a i<strong>de</strong>ia que salva os fenômenos extremos. To<strong>do</strong> interesse <strong>de</strong> Benjamin por<br />

esta arte poética como revela<strong>do</strong>ra da condição humana submetida às leis <strong>do</strong><br />

progresso científico e tecnológico da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, é o fato <strong>de</strong> ele ver o poeta, tal<br />

qual a alegoria <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, mergulha<strong>do</strong> nas profun<strong>de</strong>zas da terra que pisa e, ao<br />

mesmo tempo, sob os auspícios <strong>de</strong> Saturno, capaz <strong>do</strong>s vôos mais altos e distantes.<br />

103


Na realida<strong>de</strong>, o que lhe interessa é a melancolia, conflituosa, <strong>de</strong>siludida, mas<br />

sobretu<strong>do</strong> contesta<strong>do</strong>ra: o ponto <strong>de</strong> partida contra as crenças falaciosas que<br />

perpetuam a servidão humana. Bau<strong>de</strong>laire (2010, p. 23) é, como a con<strong>figura</strong>ção <strong>do</strong><br />

príncipe barroco: tortura<strong>do</strong>, hostil, ira<strong>do</strong>, vil, odia<strong>do</strong>, servil e, sempre, o poeta lírico e<br />

melancólico.<br />

Porque ele só da luz mais pura será feito,<br />

Vinda <strong>do</strong> santo lar <strong>do</strong>s raios mais primitivos.<br />

De que os olhos mortais, no seu fulgor perfeito,<br />

Não são mais <strong>do</strong> que espelhos tristes, negativos!<br />

O gran<strong>de</strong> valor artístico <strong>de</strong>sta poesia está na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> hostilizar o<br />

progresso, personifica<strong>do</strong> na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, com incrível sutileza, arma <strong>do</strong><br />

verda<strong>de</strong>iro artista que não tem um átomo das críticas grosseiras atreladas a<br />

i<strong>de</strong>ologias. Enquanto o continuum da história se caracteriza pelo eterno retorno,<br />

pelas formas tecnicamente condicionadas, ou seja, pelas variáveis <strong>do</strong> mesmo vazio,<br />

como enfatiza Benjamin (1994, p. 175), “A salvação se apega à pequena fissura na<br />

catástrofe continua.” Benjamin vê o art nouveau e o futurismo como expressões<br />

acabadas <strong>de</strong>ssas formas travestidas <strong>do</strong> novo encanta<strong>do</strong>r, porém falacioso. A essas<br />

fantasmagorias se opõe o lírico Bau<strong>de</strong>laire, com toda a força <strong>do</strong> inconformismo, <strong>do</strong><br />

ódio, da capacida<strong>de</strong> crítica, <strong>do</strong> dramático e <strong>do</strong> cômico, enfim, <strong>do</strong> furor melancólico,<br />

próprios <strong>de</strong> um poeta marginal. Bau<strong>de</strong>laire, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>sce<br />

melancolicamente aos abismos da terra, eleva-se ao mais alto <strong>do</strong> sublime.<br />

3.2. A rememoração na contemplação melancólica.<br />

Proust, esta velha criança, profundamente fatiga<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong>ixou-se cair no seio da natureza não para sugar seu<br />

leite, mas para sonhar, embala<strong>do</strong> com as batidas <strong>de</strong> seu<br />

coração.<br />

Walter Benjamin – A imagem <strong>de</strong> Proust.<br />

104


Se o Barroco, enquanto i<strong>de</strong>ia, possibilita vislumbrar uma mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

perecimento e <strong>de</strong>struição, só resta ao filósofo juntar os cacos <strong>de</strong>ssa ruína e erguer<br />

uma nova construção. Isso é possível pela rememoração, on<strong>de</strong> atua a profunda<br />

meditação instigada pela melancolia. Assim os restos mortos readquirem nova<br />

significação e, justapostos um a um, <strong>de</strong>senham o majestoso mosaico da imagem<br />

sagrada. Chega-se aqui ao centro nevrálgico <strong>de</strong>sta pesquisa, como explicita<br />

Benjamin (1984, p. 50ss)<br />

Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma <strong>de</strong> ser da contemplação.<br />

Pois ao consi<strong>de</strong>rar um mesmo objeto nos vários extratos <strong>de</strong> sua<br />

significação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o recomeço<br />

perpétuo e uma justificação para a intermitência <strong>de</strong> seu ritmo.Ela não teme,<br />

nessas interrupções, per<strong>de</strong>r sua energia, assim como o mosaico, na<br />

fragmentação caprichosa <strong>de</strong> suas partículas, não per<strong>de</strong> sua majesta<strong>de</strong>.<br />

Tanto o mosaico como a contemplação justapõe elementos isola<strong>do</strong>s e<br />

heterogêneos, e nada manifesta com mais força o impacto transcen<strong>de</strong>nte<br />

quer da imagem sagrada, quer da verda<strong>de</strong>.<br />

Benjamin se refere aos temas centrais <strong>do</strong> seu pensamento: a melancolia que<br />

engendra a contemplação, a meditação profunda que justapõe elementos<br />

heterogêneos, a alegoria nos extratos da significação <strong>do</strong> objeto e <strong>do</strong>s resíduos da<br />

fragmentação, o méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> perpétuo recomeço e da intermitência <strong>de</strong> seu<br />

ritmo. A melancolia provocada pela perda e a visão da <strong>de</strong>sintegração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

provocam no filósofo a urgência <strong>de</strong> salvar as coisas, superan<strong>do</strong> a melancolia, longe<br />

da inércia da acedia e da indiferença. Mas como isso é possível sob a perspectiva<br />

da história filosófica? Em outras palavras <strong>de</strong> que maneira é possível a revolução no<br />

agora da cognoscibilida<strong>de</strong>? Pelas imagens dialéticas, na relação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> com o<br />

presente, respon<strong>de</strong> Benjamin. To<strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> é pouco para não haver interpretações<br />

inexatas da relação passa<strong>do</strong>-presente como puramente temporal – e, note-se <strong>de</strong><br />

passagem, da mesma forma que o drama barroco não se limita às <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> um<br />

estilo <strong>do</strong> século XVII; o drama barroco é uma i<strong>de</strong>ia, filosoficamente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>.<br />

Benjamin, como faz com a poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, analisa a obra <strong>de</strong> Proust Em<br />

busca <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>, para esclarecer o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> memória da dialética na<br />

imobilida<strong>de</strong> pela imagem.<br />

O ensaio A imagem <strong>de</strong> Proust, escrito em 1929, afirma Benjamin (1985, p.<br />

37) logo no início: “Pois o importante para o autor que rememora, não é o que ele<br />

105


viveu, mas o teci<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua rememoração, o trabalho <strong>de</strong> Penélope da reminiscência.”<br />

Em busca <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong> faz jus ao significa<strong>do</strong> original <strong>de</strong> texto: o que é teci<strong>do</strong>.<br />

Benjamin compara a obra <strong>de</strong> Proust ao trabalho <strong>de</strong> Penélope: o importante é o<br />

teci<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua rememoração. Sua memória – involuntária e espontânea –<br />

(Einge<strong>de</strong>nken) diz respeito ao esquecimento. Seu texto é o oposto <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong><br />

Penélope porque <strong>de</strong>sfaz os fios da trama durante o dia. 46<br />

No ensaio Sobre alguns temas em Bau<strong>de</strong>laire, Benjamin esclarece o alcance<br />

da memória em Proust: entre as tentativas filosóficas <strong>de</strong> dar um senti<strong>do</strong> novo <strong>de</strong><br />

experiência, como saída para o homem massifica<strong>do</strong>, a obra <strong>de</strong> Bergson Matéria e<br />

memória tem o mérito <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a memória como <strong>de</strong>cisiva nesta questão. Neste<br />

pensamento, a experiência é consi<strong>de</strong>rada como da<strong>do</strong>s acumula<strong>do</strong>s surgi<strong>do</strong>s na<br />

memória, muitas vezes inconscientemente. Observa o filósofo que o da<strong>do</strong> temporal,<br />

a durée (duração), é diferente <strong>do</strong> tempo da ciência. A mesma hora <strong>do</strong> relógio po<strong>de</strong><br />

parecer um instante, se for preenchida por uma vida psicologicamente intensa e<br />

parecer uma eternida<strong>de</strong> se for vazia ou preenchida pelo tédio ou pela espera.<br />

O tempo da busca <strong>de</strong> Proust é entretanto o tempo qualitativo: reproduzir<br />

pela memória a experiência vivida. Porém, nas condições <strong>de</strong> massificação, essa<br />

reprodução só é possível artificialmente, uma vez que a memória se abre à vida<br />

contemplativa e não à ativa. Proust distingue memória involuntária (a memória pura<br />

para Bergson) e memória voluntária, a que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da atenção <strong>do</strong> intelecto e se<br />

ocupa <strong>de</strong> informações isoladas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Não adianta querer evocar<br />

<strong>de</strong>liberadamente este passa<strong>do</strong>; e conclui Proust: pela memória involuntária, ao<br />

acaso, o autêntico passa<strong>do</strong> se nos apresenta em um objeto qualquer. Que objeto é<br />

este e quan<strong>do</strong> se apresenta, não se sabe. É o fator acaso que, segun<strong>do</strong> Proust, gera<br />

a imagem <strong>de</strong> si, isto é, a própria experiência. Benjamin, em seu ensaio A obra <strong>de</strong><br />

arte na era <strong>de</strong> sua reprodutibilida<strong>de</strong> técnica, afirma que a experiência não se<br />

consegue pela informação jornalística, que não passa <strong>de</strong> um fato isola<strong>do</strong>, cujo único<br />

objetivo é provocar o choque da vivência (Erlebnis), algo instantâneo vin<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora,<br />

46<br />

É importante notar que nos ensaios sobre Bau<strong>de</strong>laire, Proust, Brecht e Kafka respectivamente <strong>de</strong> 1939, 1929,<br />

1931 e 1934 existem temas recorrentes na análise <strong>de</strong>ssas obras literárias, como semelhança, correspondência,<br />

memória e esquecimento. Na análise <strong>do</strong>s contos <strong>de</strong> Kafka, por exemplo, Benjamin enfatiza: “Porém o<br />

esquecimento diz respeito ao melhor, porque diz respeito à possibilida<strong>de</strong> da re<strong>de</strong>nção.” É o lembrar para<br />

esquecer, como índice <strong>de</strong> salvação. (Cf. BENJAMIN, 1985, p. 156ss.).<br />

106


portanto incapaz <strong>de</strong> afetar a experiência <strong>do</strong> leitor. A comunicação que tem como<br />

suporte o progresso técnico cada vez mais se reduz à tarefa <strong>de</strong> informar uma<br />

quantida<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> fatos, o que significa a atrofia da experiência. A forma da<br />

narrativa <strong>de</strong> comunicação, <strong>de</strong> manter viva a experiência (Erfahrung) “...não tem a<br />

pretensão <strong>de</strong> transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação<br />

o faz); integra-o à vida <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r para passá-lo aos ouvintes como experiência.”<br />

Assim Benjamin (1985, p. 107)caracteriza a experiência. É algo que se alimenta, que<br />

dura e prolonga, e só é possível em um indivíduo integra<strong>do</strong> na comunida<strong>de</strong>. Proust é<br />

o narra<strong>do</strong>r rememoran<strong>do</strong> sua infância nos oito volumes <strong>de</strong> Em busca <strong>do</strong> tempo<br />

perdi<strong>do</strong>.<br />

Benjamin está atento ao po<strong>de</strong>r significativo da arte <strong>de</strong> narrar que parte <strong>de</strong><br />

um objeto qualquer, em um momento qualquer e <strong>do</strong> estritamente individual vai-se<br />

expandin<strong>do</strong> para to<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> coletivo nas festas e nas celebrações. As<br />

recordações surgidas inconscientemente passam a habitar a própria vida. Da pura<br />

vivência, o lugar <strong>de</strong> lembranças fugidias, não <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia nenhum processo<br />

criativo. Ele recorre à teoria freudiana <strong>do</strong> choque traumático, <strong>de</strong>scoberto através <strong>do</strong>s<br />

sonho <strong>de</strong> neuróticos. 47 Para Freud, o consciente <strong>de</strong>sperto é a proteção contra os<br />

estímulos, da mesma maneira que to<strong>do</strong> organismo vivo se protege contra as<br />

energias exteriores que o ameaçam. É o que Proust chama <strong>de</strong> memória voluntária e<br />

Reik o <strong>de</strong>nomina lembrança. O consciente toma o lugar da impressão que iria para a<br />

memória, para on<strong>de</strong> vai o que não foi vivencia<strong>do</strong>. A conscientização contra as<br />

energias <strong>de</strong>strutivas exteriores não tem traços mnemônicos.<br />

Receber choques é sentir as ameaças <strong>do</strong>s estímulos. Aos poucos, a barreira<br />

<strong>de</strong> proteção po<strong>de</strong> se romper. Freud <strong>de</strong>scobre que o neurótico tem sonhos que<br />

reproduzem o trauma, como forma <strong>de</strong> compensar a perda da proteção perdida pela<br />

omissão. Isso lhe causa angústia e é a origem <strong>do</strong> comportamento neurótico. O<br />

47 Benjamin cita os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Freud, o que não significa redução <strong>de</strong> seu pensamento às teorias psicanalíticas. A<br />

psicanálise, como ciência, procura <strong>de</strong>svendar os processos inconscientes que estão na origem da neurose e a<br />

função da consciência na cura <strong>de</strong>sta patologia. A citação <strong>de</strong>ve ser tomada como uma contribuição para a<br />

pesquisa sobre a correlação estímulo-consciente-choque, na formulação <strong>do</strong>s conceitos <strong>de</strong> vivência e experiência.<br />

Para a discussão <strong>de</strong>sta correlação, o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Sérgio P. Rouanet Édipo e o <strong>anjo</strong>- Itinerários freudianos em<br />

Walter Benjamin é uma referência, pois aborda temas fundamentais <strong>do</strong> pensamento benjaminiano, como<br />

experiência, choque e memória, sonho e imagens dialéticas. (Cf. Rouanet, S. P.1990 ).<br />

107


emédio para isso é o treinamento da consciência, pelo qual o choque passa a ser<br />

uma experiência vivida com simples lembranças conscientes. Pela reflexão, dá-se a<br />

vivência, sem ela, dá-se o sobressalto, isto é, a falha da resistência ao choque.<br />

Benjamin observa na obra <strong>de</strong> Proust que a lei <strong>do</strong> esquecimento <strong>de</strong> que<br />

nada é dura<strong>do</strong>uro, ou seja, a da incompletu<strong>de</strong>, permite diferenciar o vivi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

lembra<strong>do</strong>. O vivi<strong>do</strong> é o acontecimento finito nos limites espaciais e temporais, o<br />

lembra<strong>do</strong> é a porta aberta para o antes e o <strong>de</strong>pois. O texto se <strong>de</strong>senvolve a partir da<br />

recordação, ad infinitum. Benjamin (1985, p.38) mostra que a melancolia que<br />

impregna a essência <strong>do</strong> presente é a força propulsora para o objeto da busca da<br />

felicida<strong>de</strong>:<br />

Ele viu o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>...esse <strong>de</strong>sejo dilacerante e explosivo <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong> – cego, insensato e frenético... Esse <strong>de</strong>sejo brilhava em seus<br />

olhos. Não eram olhos felizes.<br />

De que maneira, entretanto, se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia esta busca? - Através <strong>de</strong> uma<br />

momento mais banal e efêmero, um encontro não previsto na vigília da noite. No<br />

entanto, os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos mais significativos <strong>de</strong> uma vida po<strong>de</strong>m partir <strong>de</strong>sta hora<br />

imprevisível. Benjamin enten<strong>de</strong> esta dialética da felicida<strong>de</strong> como eterna restauração<br />

<strong>de</strong> algo eterno e original. É a forma da elegia, on<strong>de</strong> a recordação se abre para o<br />

ilimita<strong>do</strong>; é sonhar acorda<strong>do</strong>. Ilimita<strong>do</strong>, porque os acontecimentos são sempre<br />

semelhantes, mas da semelhança profunda, própria <strong>do</strong> sonho. Em 1933, Benjamin<br />

(1985, p. 111) escreveu o breve ensaio A <strong>do</strong>utrina das semelhanças. Neste ensaio,<br />

o filósofo enfatiza o papel da escrita: “É, portanto, a semelhança extra-sensível que<br />

estabelece a ligação não somente entre o fala<strong>do</strong> e o intenciona<strong>do</strong>, mas também<br />

entre o escrito e o intenciona<strong>do</strong>, entre o fala<strong>do</strong> e o escrito.” A linguagem e a escrita<br />

possibilitam a leitura da semelhança extra-sensível. São as leituras possíveis, como,<br />

por exemplo, a leitura que o astrólogo faz da posição <strong>do</strong>s astros, diferentes da<br />

leitura – literal – <strong>do</strong> abecedário. A escrita-imagem é um arquivo <strong>de</strong> semelhança<br />

extra-sensíveis, as antigas forças miméticas da história mais primeva. As<br />

brinca<strong>de</strong>iras infantis são como resíduos <strong>de</strong>ssas forças, quan<strong>do</strong> transformam, por<br />

exemplo, um cabo <strong>de</strong> vassoura em cavalo, que, <strong>de</strong> repente, é transforma<strong>do</strong> em<br />

espada. Esse esvaziar o objeto <strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong> é exatamente o que Proust faz ao<br />

esvaziar o “Eu” para colocar em seu lugar a imagem. A imagem <strong>de</strong> sonho, rosto<br />

108


surrealista da vida, surge sutilmente na profusão narrativa proustiana. É ela que<br />

apazigua a melancolia. Diz Benjamin (1985, p. 41):<br />

Mas não é tanto o humor, quanto a comédia, o verda<strong>de</strong>iro centro <strong>de</strong> sua<br />

força; pelo riso, ele não suprime o mun<strong>do</strong>, mas o <strong>de</strong>rruba no chão, corren<strong>do</strong><br />

o risco <strong>de</strong> quebrá-lo em pedaços, diante <strong>do</strong>s quais ele é o primeiro a chorar.<br />

Benjamin <strong>de</strong>squalifica os críticos alemães, que viam em Proust a expressão<br />

<strong>do</strong> esnobismo <strong>de</strong> uma classe social francesa: foram incapazes <strong>de</strong> perceber toda a<br />

sutileza inteligente e irônica da comédia com que Proust <strong>de</strong>spedaça este mun<strong>do</strong><br />

burguês. Ele <strong>de</strong>strói, pelo riso, a ética, a família, a moral <strong>do</strong> sexo <strong>de</strong>sta classe. À<br />

maneira <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, Proust constrói sua narrativa fundada na experiência <strong>de</strong><br />

viver to<strong>do</strong> esse universo social e sobre ele lançar o olhar melancólico. Em Sobre<br />

alguns temas em Bau<strong>de</strong>laire, Benjamin (1994, p. 145) observa: “Tal é a natureza da<br />

vivência que Bau<strong>de</strong>laire preten<strong>de</strong>u elevar à categoria <strong>de</strong> experiência.” Seus<br />

personagens representam, como em um teatro barroco, todas as nuances da<br />

mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua classe. Existe nessa Narrativa o mimetismo da curiosida<strong>de</strong>, a<br />

genialida<strong>de</strong> da técnica proustiana, segun<strong>do</strong> Benjamin (1985, p. 43):<br />

Ortega y Gasset foi o primeiro a chamar a atenção para a existência<br />

vegetativa <strong>do</strong>s personagens proustianos, a<strong>de</strong>rin<strong>do</strong> tenazmente ao seu<br />

torrão social influencia<strong>do</strong>s pelo sol <strong>do</strong> feudalismo, movi<strong>do</strong>s pelo vento que<br />

sopra <strong>de</strong> Guermantes ou Méséglise e inseparalvelmente entrelaça<strong>do</strong>s na<br />

floresta <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>stino.<br />

A curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Proust o leva a investigar to<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma classe<br />

dissimulada que procura, nas aparências <strong>de</strong> elegância e civilida<strong>de</strong>, escon<strong>de</strong>r o<br />

feudalismo <strong>de</strong> um sistema econômico. Proust <strong>de</strong>smistifica a máscara <strong>do</strong> esnobismo<br />

<strong>de</strong>sta classe e, com ela, sua moral. Benjamin relaciona sua arte com a enfermida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> que pa<strong>de</strong>cia: a asma. A falta <strong>de</strong> ar sufocante se compara ao esta<strong>do</strong> melancólico<br />

das reminiscências, cujo fôlego só é recobra<strong>do</strong> com a ironia filosófica. Mas é a morte<br />

a principal ameaça sufocante. A <strong>do</strong>ença, ao invés <strong>de</strong> ser um mal a ser cura<strong>do</strong>,<br />

tornou-se aliada <strong>do</strong> romancista; um simbiose entre sofrimento e criação: a<br />

melancolia <strong>de</strong> aceitar as condições <strong>de</strong>strui<strong>do</strong>ras da existência fadada ao<br />

envelhecimento.<br />

Para Proust a eternida<strong>de</strong> não é a <strong>do</strong> tempo infinito, mas a eternida<strong>de</strong> que se<br />

manifesta na reminiscência e no envelhecimento, no mun<strong>do</strong> das semelhanças e<br />

109


correspondências. Em outras palavras, é o passa<strong>do</strong> refleti<strong>do</strong> no instante presente,<br />

rejuvenescen<strong>do</strong>-o. Assim para Benjamin (1985, p. 46), as imagens vão se<br />

entrecruzan<strong>do</strong> numa concentração fugaz rejuvenesce<strong>do</strong>ra. “À la recherche du temps<br />

perdu é a tentativa interminável <strong>de</strong> galvanizar toda a vida humana com o máximo <strong>de</strong><br />

consciência.” No ensaio O que é o teatro épico – Um estu<strong>do</strong> sobre Brecht, Benjamin<br />

(1985, p. 88) parece estar se referin<strong>do</strong> a Proust: “Ele mostra a coisa com<br />

naturalida<strong>de</strong>, na medida em que se mostra e se mostra, na medida em que mostra a<br />

coisa.” A auto-absorção, a indiferença à morte, o consentimento a seus próprios<br />

sofrimentos são características da literatura proustiana, que com sarcasmo e<br />

ternura, cinismo e virtuosismo tem muito a mostrar ao leitor: <strong>de</strong>smistificar o “Eu”, a<br />

moral, o amor, enfim, as máscaras <strong>de</strong> seu tempo.<br />

3.3. Angelus Novus: a imagem melancólica <strong>do</strong> <strong>anjo</strong> da história.<br />

A tese IX <strong>de</strong> Sobre o conceito <strong>de</strong> história <strong>de</strong>screve a <strong>figura</strong> conflitante,<br />

<strong>de</strong>sesperada e melancólica <strong>de</strong> um <strong>anjo</strong>, no meio <strong>de</strong> uma tempesta<strong>de</strong>. De asas<br />

abertas, ele é arrasta<strong>do</strong> por uma ventania e seu rosto estampa o olhar angustia<strong>do</strong> e<br />

aterra<strong>do</strong>r volta<strong>do</strong> para trás e “...ele vê uma catástrofe única, que acumula<br />

incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.” Assim Benjamin<br />

(1985, p. 226) <strong>de</strong>screve a imagem da melancolia na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>do</strong> progresso. Ela<br />

tem o mesmo olhar da Melancolia I <strong>de</strong> <strong>Dürer</strong>, pois estes olhos fixos, como que<br />

paralisa<strong>do</strong>s, são a expressão mais cabal da conflituosa situação entre a premência<br />

<strong>de</strong> socorrer os agonizantes, salvar o que for possível e a terrível sensação <strong>de</strong> nada<br />

po<strong>de</strong>r fazer. É a angústia <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>nar o local da catástrofe, levan<strong>do</strong> os horrores <strong>do</strong><br />

cenário <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição grava<strong>do</strong>s no olhar. O olhar <strong>de</strong>nuncia tu<strong>do</strong> o que existe <strong>de</strong><br />

melancólico neste <strong>anjo</strong>: sua fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao rejeita<strong>do</strong>, às ruínas. Seu maior <strong>de</strong>sejo é<br />

recolher os fragmentos, acordar to<strong>do</strong>s os que po<strong>de</strong>riam reconstruir - nisso consiste o<br />

satanismo <strong>do</strong> <strong>anjo</strong> -, mas a tempesta<strong>de</strong> o arrasta para o futuro. Essa força<br />

monstruosa é o progresso. Nessa <strong>de</strong>scrição, Benjamin (1985, p. 226) usa a terceira<br />

pessoa:”...O <strong>anjo</strong> da história <strong>de</strong>ve ter este aspecto...Ele gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter-se...” e a<br />

primeira pessoa no plural: “...On<strong>de</strong> nós vemos uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> acontecimentos...Essa<br />

110


tempesta<strong>de</strong> é o que chamamos <strong>de</strong> progresso.” É uma clara maneira <strong>de</strong> mostrar o<br />

po<strong>de</strong>r da civilização calca<strong>do</strong> na razão, cuja pretensão é ensinar o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

e fazer acreditar no progresso. Entre o <strong>anjo</strong> e a fé no futuro está o “nós” da massa<br />

levada pela indiferença, que não consegue enxergar nem a catástrofe, nem as<br />

ruínas: políticos, toda sorte <strong>de</strong> <strong>de</strong>magogos, que fraudam a ciência e a cultura. São<br />

os valores falsos, as normas, os paradigmas e os <strong>de</strong>veres, o lega<strong>do</strong> da mentalida<strong>de</strong><br />

iluminista imposto à multidão <strong>de</strong> proscritos que jazem no passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta história.<br />

Tu<strong>do</strong> ruína! A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> catástrofe é esta história escrita pelos vence<strong>do</strong>res.<br />

Interromper esta história é o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> <strong>anjo</strong>. Mas ele não consegue.<br />

Há entretanto uma conotação mais específica para a afirmação “Essa<br />

tempesta<strong>de</strong> é o que chamamos progresso.” Benjamin se refere à situação política<br />

alemã da República <strong>de</strong> Weimar: a social-<strong>de</strong>mocracia, cuja i<strong>de</strong>ologia da crença no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento técnico e, por extensão, no trabalho como fonte <strong>de</strong> riqueza e<br />

felicida<strong>de</strong> vin<strong>do</strong>ura. Se esta tecnocracia tinha alguma inspiração socialista, não<br />

levou em conta a questão básica <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Marx: por que os operários não<br />

po<strong>de</strong>m dispor <strong>do</strong> produto <strong>de</strong> seu trabalho? Benjamin, ao apresentar a metáfora <strong>do</strong><br />

<strong>anjo</strong> da história, em toda a sua radical melancolia, não só <strong>de</strong>nuncia esse nadar no<br />

senti<strong>do</strong> da correnteza – <strong>do</strong> progresso – como alerta para a urgência <strong>de</strong> interromper a<br />

marcha linear da história, como se estivesse preven<strong>do</strong> uma catástrofe pior ainda.<br />

A crítica <strong>de</strong>sesperada <strong>do</strong> filósofo é dirigida à i<strong>de</strong>ologia alemã da social-<br />

<strong>de</strong>mocracia, que não passa <strong>de</strong> uma versão vulgar <strong>de</strong> socialismo, ou seja, a crença<br />

na tecnologia e no po<strong>de</strong>r das máquinas,como garantia <strong>de</strong> um futuro próspero e <strong>de</strong><br />

uma socieda<strong>de</strong> pautada na justiça social. Essa política falaciosa usa, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />

fraudulento o conceito <strong>de</strong> trabalho, pois se baseia no slogan “o trabalho dignifica”,<br />

uma caricatura da verda<strong>de</strong>ira concepção <strong>de</strong> trabalho <strong>do</strong> materialismo histórico. A<br />

tradição i<strong>de</strong>ológica alemã que alimenta os resquícios da moral protestante,<br />

enaltecen<strong>do</strong> as virtu<strong>de</strong>s da coragem, da confiança, da obediência, acreditou que<br />

trabalho, máquinas e tecnologia eram a garantia futura da revolução socialista. Mas<br />

a história provou que o nome <strong>de</strong>ste futuro é fascismo.<br />

111


No ensaio A obra <strong>de</strong> arte na era <strong>de</strong> sua reprodutibilida<strong>de</strong> técnica, Benjamin<br />

(1985, p. 196) <strong>de</strong>nuncia o ponto mais extremo da utilização da técnica: a estetização<br />

da guerra:<br />

“Fiat ars, pereat mundus”, diz o fascismo e espera que a guerra proporcione<br />

a satisfação artística <strong>de</strong> uma percepção sensível modificada pela técnica,<br />

como faz Marinetti. É a forma mais perfeita <strong>do</strong> art pour l‟art.<br />

O fascismo sabe que o maior <strong>de</strong>sejo das massas trabalha<strong>do</strong>ras é mudar as<br />

relações <strong>de</strong> propieda<strong>de</strong>, uma vez que o trabalha<strong>do</strong>r não é <strong>do</strong>no <strong>do</strong> produto <strong>de</strong> seu<br />

traabalho. Ele utiliza a estetização da política pela guerra para não mudar um<br />

centímetro <strong>de</strong>sta relação. A guerra é bela, diz o futurismo, na sua i<strong>do</strong>latria da<br />

máquina. As técnicas <strong>de</strong> persuasão fascistas não <strong>de</strong>sperdiçaram as máquinas <strong>de</strong><br />

filmar e <strong>de</strong> projetar as imagens <strong>de</strong> convencimento no espetáculo i<strong>de</strong>ológico.<br />

À imagem <strong>do</strong> <strong>anjo</strong> correspon<strong>de</strong> o historia<strong>do</strong>r materialista que, <strong>de</strong> mesmo<br />

olhar melancólico, <strong>de</strong>ve recolher os cacos da história e revelar neles as marcas <strong>do</strong><br />

conhecimento e da sabe<strong>do</strong>ria. Juntar e recompor os valores dispersos é a tarefa<br />

<strong>de</strong>ste historia<strong>do</strong>r. A tempesta<strong>de</strong> <strong>do</strong> progresso, personificada no po<strong>de</strong>r da máquina e<br />

na fascinação exercida pelo lucro, o impe<strong>de</strong> da efetiva ação salva<strong>do</strong>ra. Entretanto, a<br />

mesma máquina, comandada pelos princípios enganosos da racionalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>strói o<br />

mun<strong>do</strong>. Vã estetização da guerra! Benjamin (1985, p.226) afirma que ao <strong>anjo</strong> só<br />

resta escovar a história a contrapelo (Die Geschishte gegen <strong>de</strong>n Strich zu bürsten),<br />

isto é, caminhar na direção contrária da tempesta<strong>de</strong> <strong>do</strong> progresso. “Seu rosto está<br />

dirigi<strong>do</strong> para o passa<strong>do</strong>.” A memória tem uma função imprescindível nesta<br />

perspectiva <strong>de</strong> salvação.<br />

Como é possível a salvação em um mun<strong>do</strong> on<strong>de</strong> o sagra<strong>do</strong> foi substituí<strong>do</strong><br />

pelo profano e on<strong>de</strong> um abismo separa o material <strong>do</strong> espiritual, o corpo da alma? De<br />

fato, respon<strong>de</strong> Benjamin, nesta separação satânica, é preciso resgatar o que foi<br />

disperso no mun<strong>do</strong> seculariza<strong>do</strong>, pois as coisas per<strong>de</strong>ram seu senti<strong>do</strong>. A iluminação<br />

profana é a única experiência capaz <strong>de</strong> restituir o que foi parti<strong>do</strong>. Aliar matéria e<br />

espírito é salvar o corpo físico e, com ele, o homem íntegro que a tradição dividiu. A<br />

força tempestuosa <strong>do</strong> progresso que arrasta o <strong>anjo</strong>, se fundamenta numa radical<br />

falácia, pois o novo, que tanto fascina, não passa <strong>de</strong> eterno retorno <strong>do</strong> velho. O<br />

112


progresso é a história da repetição infernal <strong>do</strong> sempre igual. A verda<strong>de</strong>ira história é<br />

construção cujo lugar é um tempo satura<strong>do</strong> <strong>de</strong> ágoras (Jetztzeit ).<br />

A tese XIV expõe o verda<strong>de</strong>iro senti<strong>do</strong> da revolução: interromper a marcha<br />

<strong>de</strong>sta história entendida, seja como flexa, seja como círculo vicioso <strong>de</strong> repetição. A<br />

revolução, ou o interromper a continuida<strong>de</strong> da história, é reencontrar o passa<strong>do</strong><br />

enquanto mônada, que engloba a história toda como presente – o aqui e agora <strong>do</strong><br />

universo ou a imagem <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> em algo único e momentâneo. A crítica <strong>de</strong><br />

Benjamin à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> progresso é muito mais abrangente <strong>do</strong> que, à primeira vista,<br />

possa parecer. Ela se dirige à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> perfectibilida<strong>de</strong> infinita <strong>do</strong> gênero humano, ou<br />

<strong>de</strong> progresso da humanida<strong>de</strong> toma<strong>do</strong> abstratamente, ou ainda ao conceito<br />

<strong>do</strong>gmático <strong>de</strong> um processo automático em linha reta ou espiral. Essas concepções<br />

se traduzem na prática nas teses positivista e evolucionista, fundadas na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />

um tempo natural. Benjamin (1985, p. 229) expressa sua crítica:<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um progresso da humanida<strong>de</strong> na história é inseparável da i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> sua marcha no interior <strong>de</strong> um tempo vazio e homogêneo. A crítica da<br />

i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> progresso tem como pressuposto a crítica da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>ssa marcha.<br />

Esta é a critica da história concebida segun<strong>do</strong> as leis das ciências naturais,<br />

às quais a ética se submete como simples intenções, em outras palavras, a história<br />

é inexoravelmente assim e o que ela <strong>de</strong>ve ser em conhecimento é pura intenção<br />

sujeita a essa marcha. O méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r materialista se distingue daquilo que<br />

o historicista <strong>de</strong>signa como História Universal, a história in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da vonta<strong>de</strong><br />

humana. Assim concebida a história não passa <strong>do</strong> tempo homogêneo e vazio<br />

preenchi<strong>do</strong> pela adição <strong>de</strong> acontecimentos. Benjamin refuta essa confiança na<br />

evolução e, por extensão, na teoria <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r das massas que, mais ce<strong>do</strong> ou mais<br />

tar<strong>de</strong>, como por <strong>de</strong>creto natural, <strong>de</strong>flagrará a revolução proletária. Benjamin (1985,<br />

p. 231) não aceita esta teleologia simplista <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> interpretações vulgares <strong>do</strong><br />

marxismo:<br />

Pensar não inclui apenas o movimento das i<strong>de</strong>ias, mas também sua<br />

imobilização. Quan<strong>do</strong> o pensamento para, bruscamente, numa con<strong>figura</strong>ção<br />

saturada <strong>de</strong> tensões, ele lhes comunica um choque, através <strong>do</strong> qual essa<br />

con<strong>figura</strong>ção se cristaliza enquanto mônada.<br />

113


A interrupção <strong>de</strong> um pensar como movimento contínuo das i<strong>de</strong>ias é<br />

carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> tensões. Aí se dá a verda<strong>de</strong>ira revolução: estas tensões significam um<br />

choque que paralisa a con<strong>figura</strong>ção como mônada. Para tanto é necessário<br />

distinguir <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> repetição: a repetição como <strong>de</strong>stino, isto é, o<br />

retorno <strong>do</strong> sempre igual e repetição como o agora (Jetztzeit ) carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> passa<strong>do</strong>,<br />

o agora que interessa a Benjamin. A dialética na imobilida<strong>de</strong>, o reter o curso <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> é a busca <strong>de</strong> Proust pelo tempo perdi<strong>do</strong>, ou o conteú<strong>do</strong> da poesia lírica <strong>de</strong><br />

Bau<strong>de</strong>laire, ou ainda a característica <strong>do</strong> teatro épico <strong>de</strong> Brecht; o choque que<br />

cristaliza a i<strong>de</strong>ia enquanto mônada na perspectiva <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção. A rememoração é a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção da história. Benjamin (1985, p. 230ss) estabelece a<br />

verda<strong>de</strong>ira relação <strong>do</strong> presente carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> passa<strong>do</strong> com o futuro: “O mesmo<br />

salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução...” A rememoração<br />

po<strong>de</strong>-se converter em comemoração futura, porém não como garantia da felicida<strong>de</strong>:<br />

Sabe-se que era proibi<strong>do</strong> aos ju<strong>de</strong>us investigar o futuro. Ao contrário, a Torá<br />

e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração<br />

<strong>de</strong>sencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os<br />

adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os ju<strong>de</strong>us num<br />

tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segun<strong>do</strong> era a porta estreita pela<br />

qual podia penetrar o Messias.<br />

Se existe certeza da possibilida<strong>de</strong> da revolução no agora carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

passa<strong>do</strong>, a futura vinda <strong>do</strong> Messias que entra pela porta estreita é apenas uma<br />

possibilida<strong>de</strong>, uma promessa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>. Se Benjamin foca o passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

ecoam vozes que não falam mais ou das sementes que ainda po<strong>de</strong>m germinar no<br />

presente fulgurante da interrupção, para ele o futuro não se con<strong>figura</strong> em cenário<br />

nebuloso <strong>de</strong> incertezas. Seu pensamento não é teleológico, uma vez que volta<strong>do</strong><br />

para o presente com po<strong>de</strong>r mágico das rememorações. Eis o que o distingue das<br />

revoluções entendidas como gran<strong>de</strong>s movimentos políticos.<br />

As teses sobre o conceito <strong>de</strong> história con<strong>de</strong>nsam to<strong>do</strong> o percurso da crítica<br />

filosófica benjaminiana on<strong>de</strong> sobressai a melancolia como categoria fundante. A<br />

mesma <strong>figura</strong> <strong>alada</strong> <strong>de</strong> Origem <strong>do</strong> drama barroco alemão ressurge como o <strong>anjo</strong> da<br />

história. A melancolia <strong>do</strong> Angelus Novus é sua característica marcante, pois é ela<br />

que o impele a mergulhar fun<strong>do</strong> na verda<strong>de</strong>ira natureza da história. Pelo olhar<br />

melancólico, ele vê, na marcha da civilização, somente ruína, morte e ilusão. Quem<br />

114


é que po<strong>de</strong> seguir este <strong>anjo</strong>, se o progresso, com seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> persuasão, arrasta<br />

multidões? Benjamin respon<strong>de</strong>: os que estão à margem da socieda<strong>de</strong>, mergulha<strong>do</strong>s<br />

na mesma melancolia e por isso distancia<strong>do</strong>s da euforia ilusória. A melancolia volta<br />

seu olhar para tu<strong>do</strong> o que é rejeita<strong>do</strong>, objeto <strong>de</strong> sua contemplação alegórica. O olhar<br />

<strong>do</strong> <strong>anjo</strong> resume seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> ânimo entre uma tarefa urgente e a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

realizá-la.<br />

Experiência e melancolia convergem para a <strong>figura</strong> <strong>do</strong> <strong>anjo</strong>. De fato,<br />

experiência (Erfahrung) não é vivência (Erlebnis) que é sempre consi<strong>de</strong>rada<br />

quantitativamente na continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tempo. A experiência se funda no tempo<br />

qualitativo. Nela o choque e o involuntário <strong>do</strong> acaso <strong>de</strong>sestruturam a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

sujeito. É a experiência daquele que sai da correnteza, como Bau<strong>de</strong>laire, Proust e<br />

Kafka, <strong>do</strong>s quais o <strong>anjo</strong> melancólico é a <strong>figura</strong> paradigmática, porque ele se<br />

interessa pelo transitório, o terreno, o ilusório, enfim, pelo sem-senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> inumano<br />

para dar-lhe um senti<strong>do</strong>.<br />

Benjamin concentra no <strong>anjo</strong> da história todas as categorias <strong>de</strong> sua filosofia:<br />

origem, alegoria, experiência, dialética na imobilida<strong>de</strong> e - o Ser visual - melancolia.<br />

115


Conclusão<br />

Ressuscita-me,<br />

Nem que seja só porque te esperava<br />

como um poeta,<br />

Repelin<strong>do</strong> o absur<strong>do</strong> cotidiano!<br />

Ressuscita- me,<br />

Nem que seja só por isso!<br />

Ressuscita-me,<br />

Quero viver até o fim o que me cabe!<br />

WLADÍMIR MAIAKÓVSKI, ESPERANÇAS<br />

A escolha <strong>do</strong>s textos analisa<strong>do</strong>s nesta dissertação pautou-se pelo projeto <strong>de</strong><br />

expor os senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> melancolia, categoria fundante <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Benjamin,<br />

estabelecen<strong>do</strong> a estreita relação entre a obra sobre o drama barroco alemão e as<br />

obras poéticas da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> a poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire. As<br />

correspondências entre estes textos – e, po<strong>de</strong>-se afirmar com segurança, entre<br />

to<strong>do</strong>s os textos <strong>do</strong> filósofo – resumem-se na con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia da história<br />

filosófica. Para fazer emergir esta con<strong>figura</strong>ção, Benjamin obe<strong>de</strong>ce fielmente o<br />

méto<strong>do</strong> que se impôs, ou seja, o <strong>de</strong> salvar os fenômenos, incluí<strong>do</strong>s como totalida<strong>de</strong>,<br />

na i<strong>de</strong>ia. O drama barroco, a poesia lírica <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, a narrativa <strong>de</strong> Proust<br />

representam as principais fontes <strong>de</strong> reflexão – como a espinha <strong>do</strong>rsal <strong>de</strong> toda a<br />

pesquisa – para a formulação <strong>do</strong> conceito da história, ponto <strong>de</strong> convergência <strong>do</strong><br />

pensamento <strong>do</strong> filósofo. De fato, no texto das Teses sobre o conceito da história,<br />

to<strong>do</strong>s os labirintos percorri<strong>do</strong>s das análises filosóficas nas obras <strong>de</strong> arte<br />

<strong>de</strong>sembocam na exposição conclusiva <strong>de</strong> toda pesquisa, on<strong>de</strong> se esclarece o peso<br />

da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da obra sobre o drama barroco.<br />

Nas Teses são apresentadas as duas faces da história: a história segun<strong>do</strong> o<br />

historicismo e a história segun<strong>do</strong> o materialismo histórico. Ora, esse duplo da<br />

116


análise <strong>de</strong> Benjamin praticamente está, patente ou latente, em to<strong>do</strong>s os seus<br />

ensaios: a história natureza e a tentativa <strong>de</strong> vencê-la, no drama barroco, a história<br />

da moral burguesa e a rememoração <strong>de</strong> um outro tempo para <strong>de</strong>squalificá-la, em<br />

Proust, e ainda a história da massificação da metrópole e a revolta <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire.<br />

É a revolta, a ironia ou a luta vã <strong>de</strong>sta outra história que interessa a<br />

Benjamin. To<strong>do</strong>s os heróis <strong>de</strong>sta batalha <strong>de</strong>ixam transparecer um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> ânimo<br />

melancólico. A melancolia é, por assim dizer, <strong>de</strong>corrência espontânea da<br />

divergência ante o status quo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> histórica dada. A esperança <strong>de</strong> uma<br />

outra história se <strong>de</strong>posita nos <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong>s que não seguem eufóricos o cortejo<br />

triunfante <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res. São aqueles que, pelo olhar melancólico, conseguiram<br />

enxergar toda a barbárie <strong>de</strong>ste cortejo que se apo<strong>de</strong>ra <strong>do</strong>s <strong>de</strong>spojos <strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s e<br />

produz ruínas e <strong>de</strong>struição. A festa da vitória vai ser transformada, mais ce<strong>do</strong> ou<br />

mais tar<strong>de</strong>, em pesa<strong>de</strong>lo da <strong>de</strong>rrota, obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> o ciclo implacável e infernal <strong>do</strong><br />

mito.<br />

Po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r a convergência <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> Benjamin nas Teses sobre o<br />

conceito da história, através das duas formas <strong>de</strong> conceber o passa<strong>do</strong>: como<br />

repetição pura e simples e como interrupção, como salto. Na obra sobre o drama<br />

barroco, a repetição entendida como i<strong>de</strong>ntificação com o passa<strong>do</strong> é <strong>de</strong>nominada<br />

história da natureza que <strong>de</strong>strói a história <strong>do</strong> homem, leva-o à morte. O Barroco<br />

conspira para impor as leis <strong>de</strong> ferro da natureza no lugar das incertezas da história.<br />

A crença da República <strong>de</strong> Weimar é exatamente esta: crença em um progresso<br />

certo. Benjamin (1985, p. 231)vê o passa<strong>do</strong>, sob o céu livre da história, como<br />

interrupção <strong>do</strong> tempo contínuo no choque, ou seja, vê uma outra história, uma<br />

imagem da memória involuntária que se dá na explosão <strong>do</strong> agora, em uma unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> tempo presente, passa<strong>do</strong> e futuro:<br />

O materialista histórico só se aproxima <strong>de</strong> um objeto histórico quan<strong>do</strong> o<br />

confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal <strong>de</strong> uma<br />

imobilização messiânica <strong>do</strong>s acontecimentos, ou dito <strong>de</strong> outro mol<strong>do</strong>, <strong>de</strong><br />

uma oportunida<strong>de</strong> revolucionária <strong>de</strong> lutar por um passa<strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong>.<br />

A tese XVII mostra o tempo fora da história, presentifica<strong>do</strong> na imagem<br />

dialética. Isso se dá no senti<strong>do</strong> diametralmente oposto ao tempo homogêneo e<br />

117


vazio, abstrato, no qual se refugia a i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong> progresso, tempo esse que tem as<br />

leis férreas da ciência e da razão. Na perspectiva <strong>de</strong> interrupção, Benjamin assim vê<br />

o spleen <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire: constatar que o indivíduo reproduz o anônimo e abstrato da<br />

multidão. O rosto da metrópole é seu rosto e seu corpo a merca<strong>do</strong>ria. Tu<strong>do</strong> equivale<br />

e é intercambiável. O dinheiro tem esse papel, é instrumento da troca. Contra isso, o<br />

poeta luta <strong>de</strong>sesperadamente. A mesma linguagem alegórica <strong>do</strong> Barroco ressurge<br />

com Bau<strong>de</strong>laire na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> se <strong>de</strong>sintegra. O sujeito <strong>de</strong>saparece na<br />

multidão.<br />

Outra categoria benjaminiana, presente em to<strong>do</strong>s os textos, impregnada da<br />

melancolia, é a rememoração. No apêndice das Teses sobre o conceito da história,<br />

afirma Benjamin (1985, p. 232): “Quem tem em mente este fato (<strong>do</strong>s adivinhos que<br />

interrogam o tempo), po<strong>de</strong>rá talvez ter uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> como o tempo passa<strong>do</strong> é vivi<strong>do</strong><br />

na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.” Na obra sobre o drama<br />

barroco, Benjamin (1984, p. 68), ao expor a natureza histórica da categoria da<br />

origem, enfatiza: “...que o reconhece (o originário), por um la<strong>do</strong> como restauração e<br />

reprodução, e por outro la<strong>do</strong>, e por isso mesmo, com incompleto e inacaba<strong>do</strong>.” A<br />

rememoração, nestes textos, é a condição sine qua non da dialética no materialismo<br />

histórico. Não é simples lembrança <strong>do</strong>s fatos ou encontro com o passa<strong>do</strong> na<br />

esperança <strong>de</strong> revivê-lo tal qual ele foi. No processo dialético, entretanto,<br />

rememoração significa profunda meditação, na fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao oprimi<strong>do</strong> que ficou por<br />

realizar-se. Note-se que a absorção <strong>do</strong> processo meditativo é a característica<br />

primeira da melancolia. Rememorar diz respeito ao processo <strong>de</strong> restauração sempre<br />

recomeça<strong>do</strong>, visto que é incompleto. Trata-se da realização histórica, na contra-mão<br />

<strong>do</strong> historicismo, isto é, <strong>do</strong> tempo linear. A rememoração está em relação direta com<br />

o agora carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> passa<strong>do</strong> (Jetztzeit), como mônada, como imagens dialéticas,<br />

para a restituição <strong>do</strong> que foi perdi<strong>do</strong>. Nesta perspectiva, o passa<strong>do</strong>, assim<br />

rememora<strong>do</strong>, não permanecerá o mesmo. Ele será transforma<strong>do</strong>, redimi<strong>do</strong>. Desta<br />

forma <strong>de</strong>ve ser entendida a categoria da origem: algo que emerge <strong>de</strong>ste processo,<br />

<strong>do</strong> vir-a-ser. Enquanto a história natureza mostra o que tem <strong>de</strong> catastrófico e<br />

perecível, no rosto hipocrático, prematuro, sofri<strong>do</strong> e malogra<strong>do</strong>, outra história po<strong>de</strong><br />

ser construída pelos poetas e marginais. Seu principal instrumento é a melancólica<br />

rememoração.<br />

118


O tema da linguagem concorre essencialmente na con<strong>figura</strong>ção da história<br />

filosófica <strong>do</strong> pensamento benjaminiano e envolve as categorias <strong>de</strong> origem e<br />

rememoração. Benjamin refuta a concepção <strong>de</strong> linguagem como conjunto <strong>de</strong> signos<br />

arbitrários a serviço da comunicação, como instrumentos <strong>de</strong> transmitir mensagens.<br />

Pelo contrário, os homens só falam quan<strong>do</strong> percebem que a palavra não é objeto a<br />

ser possuí<strong>do</strong>, mas diz respeito ao nome, sua <strong>do</strong>ação originária. Trata-se <strong>de</strong> uma<br />

teoria <strong>de</strong> fundamento místico e teológico, on<strong>de</strong> um processo dialético se instaura<br />

quan<strong>do</strong> se consi<strong>de</strong>ra a tradução em confronto com o original. Deve-se observar que<br />

é a mesma dialética <strong>do</strong> interromper o tempo das Teses: a tradução se con<strong>figura</strong><br />

como um momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição e, ao mesmo tempo, <strong>de</strong> restituição da or<strong>de</strong>m<br />

original. O tradutor diz a alterida<strong>de</strong> <strong>do</strong> original. Essa tentativa po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o<br />

estilhaçamento, a <strong>de</strong>sagregação das línguas, visto que são fragmentos <strong>de</strong> uma<br />

língua originária maior. Isso só prova a falsa aparência <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada língua ou<br />

<strong>de</strong> cada obra. Revela-se então a verda<strong>de</strong> histórica: as línguas se dirigem a uma<br />

língua maior, nela se encontram e se reconhecem, como fragmentos que<br />

recompõem um vaso. A língua maior não <strong>de</strong>ve ser entendida como língua perfeita<br />

que existia antes da queda. Babel criou a discórdia e a incompreensão entre as<br />

línguas, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>an<strong>do</strong> a perda <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> comum e a <strong>de</strong>composição <strong>do</strong> sujeito.<br />

Faz-se necessário recuperar a concórdia e a harmoniosa compreensão na<br />

convergência e integração com a língua maior. Atente-se para a observação<br />

importante: a multiplicida<strong>de</strong> e a diversida<strong>de</strong> das línguas são salvas, da mesma forma<br />

que os fenômenos não se dissolvem no conceitos, mas são salvos na i<strong>de</strong>ia.<br />

Nas Teses sobre o conceito da história, a teoria da linguagem <strong>de</strong> Benjamin<br />

está incluída na dialética <strong>do</strong> interromper a marcha <strong>do</strong> progresso, também<br />

caracterizada pela discórdia e incompreensão entre os homens. Basta lembrar o<br />

transeunte na multidão, <strong>figura</strong>ção bau<strong>de</strong>lairiana, <strong>de</strong>spersonaliza<strong>do</strong> e confina<strong>do</strong> na<br />

sua solidão. A teoria da tradução caminha la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com a filosofia da história,<br />

on<strong>de</strong> a alegoria é o caminho tortuoso da revelação <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. O embate mais<br />

radical a favor e contra a alegoria foi no romantismo, cujos protagonistas foram<br />

Schiller e Goethe. Para este, a alegoria era mera ilustração, algo que separa o<br />

significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> significante. Benjamin comenta a posição <strong>de</strong> vários teóricos sobre<br />

esta distinção. A que mais lhe interessa é a que consi<strong>de</strong>ra o fator temporal: o<br />

119


símbolo é instantâneo, como a fulguração <strong>de</strong> um raio e a alegoria se <strong>de</strong>senvolve no<br />

tempo, envelhece, portanto. A alegoria fala <strong>do</strong> tempo da história, da transitorieda<strong>de</strong><br />

e da morte; esta característica da linguagem <strong>do</strong> drama barroco: procurar atingir o<br />

eterno falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> perecível, ou seja, falara uma coisa para significar outra. É a<br />

expressão lingüística que interessa a Benjamin. Po<strong>de</strong>r-se-ia afirmar que a ele<br />

interessa prolongar no tempo - aquela fulguração simbólica. Em outras palavras, a<br />

análise da alegoria barroca em toda sua mediaticida<strong>de</strong> e historicida<strong>de</strong>, distante <strong>do</strong><br />

símbolo como feliz evidência <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, reaparece nas Teses sobre o conceito da<br />

história: o agora carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> passa<strong>do</strong>, o instante fulgurante, é a possibilida<strong>de</strong> da<br />

revolução, em toda a extensão da história, como expressa Benjamin (1985, p. 224)<br />

“O passa<strong>do</strong> só se <strong>de</strong>ixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no<br />

momento em que é reconheci<strong>do</strong>.” Ora, este passa<strong>do</strong> con<strong>de</strong>nsa tu<strong>do</strong> o que existe <strong>de</strong><br />

realida<strong>de</strong> humana: fragilida<strong>de</strong>, precarieda<strong>de</strong>, cruelda<strong>de</strong> e barbárie, no instante<br />

dialético da re<strong>de</strong>nção, como o palco barroco que busca a salvação mostran<strong>do</strong> a<br />

catástrofe. A bela aparência estampada na sua forma imediata sensível – o i<strong>de</strong>al<br />

clássico – é substituída pela realida<strong>de</strong> humana em toda sua negativida<strong>de</strong>. Nisto<br />

consiste o conflito barroco e sua linguagem não po<strong>de</strong>ria ser outra que não fosse a<br />

alegoria. Esta tentativa <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção é também a forma <strong>de</strong> expressão possível na<br />

perspectiva messiânica <strong>de</strong> salvação na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Benjamin constrói sua filosofia da história percorren<strong>do</strong> os labirintos da<br />

tradição na busca comparativa das teorias e <strong>do</strong>s conceitos, confrontan<strong>do</strong><br />

criticamente os contemporâneos, em tu<strong>do</strong> o que os separa e os une. Sua obra<br />

filosófica é uma reflexão sobre o imenso acervo <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que foi produzi<strong>do</strong> em<br />

termos explicativos para a condição humana. É como garimpar as i<strong>de</strong>ias<br />

significativas - citadas ad infinitum – para um processo <strong>de</strong> construção<br />

permanentemente recomeça<strong>do</strong>, e por isso mesmo, inacaba<strong>do</strong>.<br />

No longo caminho percorri<strong>do</strong>, surgem duas imagens paradigmáticas: a<br />

Melancolia I <strong>de</strong> Albrecht <strong>Dürer</strong> e o Angelus Novus <strong>de</strong> Paul <strong>Klee</strong>. Elas traduzem o<br />

esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito que vai surgin<strong>do</strong>, quase que espontaneamente, à medida em que<br />

o filósofo aprofunda sua pesquisa para esta construção. As duas <strong>figura</strong>s, uma no<br />

Barroco, outra na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, têm as mesmas características: são <strong>alada</strong>s e têm o<br />

120


olhar carrega<strong>do</strong> na expressão. Tal expressão não é <strong>de</strong>finível, pois passa por uma<br />

escala enorme <strong>de</strong> sentimentos e esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> alma conflitantes – não se po<strong>de</strong><br />

esquecer, elas pertencem ao alegórico. Num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento <strong>de</strong> sua pesquisa<br />

sobre o Barroco, Benjamin <strong>de</strong>dica várias páginas à melancolia. Com efeito, nos<br />

<strong>do</strong>mínios da alegoria, poucas páginas não bastam. Foi o que enten<strong>de</strong>u Panofsky, ao<br />

tentar <strong>de</strong>svendar toda a gama <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s contida em Melancolia I. (KLIBANSKY et<br />

al., 1989). Tarefa impossível!<br />

Benjamin, entretanto, enten<strong>de</strong>u a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ste esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

alma. É na perspectiva histórica, na con<strong>figura</strong>ção da i<strong>de</strong>ia, como história filosófica,<br />

caracterizada pela coexistência <strong>do</strong>s contrastes, que se instala a <strong>figura</strong> da<br />

melancolia. O príncipe barroco, conflituoso, no afã <strong>de</strong> restaurar a or<strong>de</strong>m, apesar da<br />

catástrofe inevitável e o historia<strong>do</strong>r materialista, igualmente conflituoso, que recolhe<br />

os fragmentos na oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lutar por um passa<strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong>, têm nas suas<br />

ações a marca <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> melancólico. Conflitos entre quais extremos? Da mais<br />

paralisante acídia ao humor colérico <strong>do</strong> saturnino, respon<strong>de</strong>ria Benjamin, pois não<br />

há adjetivos suficientes para qualificar este esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> espírito complexo. Para<br />

Benjamin interessa como ele aparece nas formas artísticas: o elemento<br />

<strong>de</strong>terminante para o choque <strong>de</strong>sestrutura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> curso da história. No spleen,<br />

Bau<strong>de</strong>laire vive melancolicamente no meio da multidão da metrópole capitalista para<br />

mostrar a outra face da historia; Proust busca melancolicamente o passa<strong>do</strong> para<br />

<strong>de</strong>sfazer a trama. Assim também o filósofo, na busca da re<strong>de</strong>nção messiânica, da<br />

vitória sobre o curso natural da história <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio, é testemunho da presença da<br />

melancolia, na sua vida, na sua obra e na sua morte.<br />

121


Referências<br />

ASRISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A Poética Clássica. Trad. Oliveira Brandão<br />

e Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005.<br />

BAUDELAIRE, Charles. Flores <strong>do</strong> Mal. Trad. Guilherme <strong>de</strong> Almeida. São Paulo,<br />

Editora 34, 2010.<br />

BENJAMIN, Walter. Origem <strong>do</strong> Drama Barroco Alemão. Trad. Rouanet. São Paulo:<br />

Brasiliense, 1984.<br />

_______________. Obras Escolhidas I. Trad. Rouanet. São Paulo: Brasiliense,<br />

1985.<br />

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