Capítulo 04.pdf - PUC Rio
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melhor do que elas são, fantasia um mundo a sua guisa”, enquanto o cego por desgraça<br />
“tem refletida na alma as cenas que pasmou e quando se recorda delas é sentindo a<br />
morte de suas melhores ilusões”. E completava:<br />
O cego de nascença tem uma vida toda espírito; a poesia, essa elasticidade da alma,<br />
como diz Lamartine, povoa o seu mundo de cenas fantásticas, que ele contempla uma<br />
realidade; e que melhor paisagista do que a poesia? 192<br />
Neste momento entrou Machado de Assis. Em 5 de março de 1858 assumiu no<br />
plural uma espera que deveria ser de todo o corpo editorial da revista, que, na sombra,<br />
“sem ninguém comunicar nossas intenções, os nossos pensamentos”, aguardava que<br />
alguém “agitasse a questão”. Ao que tudo indicava, o jovem articulista de A marmota<br />
aproveitara o tempo da expectativa para ruminar possíveis réplicas a algum desavisado<br />
espiritualista. Para ele, as argumentações de Jq. Sr. a favor do cego de nascença<br />
pecavam por indicar “uma conseqüência errada” e “diametralmente oposta à única<br />
conclusão possível do princípio estabelecido”. Idealizava a condição do desgraçado pela<br />
“aniquilação da vista”<br />
Isto importa um erro psicológico. Não é possível ao cego em questão criar este mundo à<br />
sua guisa: e a razão é esta: - A criação deste mundo espiritual só pode ser fantasiada<br />
pela imaginação e pelo raciocínio. Estas duas faculdades desenvolvem-se no centro das<br />
idéias; e as idéias são adquiridas pelos sentidos. Ora, sendo o cego de nascença<br />
totalmente estranho ao mundo físico, não pode receber idéias para povoar o seu mundo<br />
pela ausência do importante órgão da percepção visual: como idealizar, colorir e<br />
identificar-se com o seu mundo? 193<br />
Por toda a vida Machado de Assis combateu, às vezes com uma mordacidade<br />
bem menos indulgente que a apresentada aqui, o espiritualismo próprio ao seu tempo. A<br />
prova mais cruel e magistral deste embate ideológico viria no final do século XIX, no<br />
livro Memórias póstumas de Brás Cubas, em que o fantasma criado anulava a descrição<br />
de pura espiritualidade de seu estado atual para recompor o tempo passado, um espectro<br />
cuja presença subsistia unicamente na narrativa de uma lembrança. Pena sua obra<br />
madura ter sido realizada bem depois do período proposto aqui, mas os detalhes deste<br />
entrevero tido na imprensa anunciaram que a formação intelectual do autor incluiu<br />
leituras de importância fundamental para a confecção do “realismo filosófico” e,<br />
conseqüentemente, da expressão fantasmagórica característica de seus melhores<br />
momentos ficcionais. No final de sua resposta ao Jq. Sr., defendeu que o mais infeliz<br />
192 ASSIS, op.cit., pp.51-52.<br />
193 Idem, pp.52-55.