Capítulo 04.pdf - PUC Rio
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A senhora Veal morreu no dia 7 de setembro ao meio-dia, de seus ataques e, antes de<br />
morrer, não dispôs mais do que quatro horas de consciência. Nesse período, ela recebeu<br />
os sacramentos. No dia que se seguiu ao da aparição da senhora Veal, disse que foi um<br />
domingo, a senhora Bargrave sofreu muito de um resfriado e de uma dor de garganta, e<br />
não saiu de casa. Mas, na manhã de segunda-feira, ela mandou uma pessoa perguntar<br />
em casa do comandante Watson se a senhora Veal estava lá. 116<br />
De repente Defoe, artificiosamente, transpôs toda a ação para um espaço e um<br />
tempo totalmente estranho àquela realidade estendida com lenta escritura por mais de<br />
metade do conto. Estávamos no dia 8 de setembro, por volta do meio dia, nos simples e<br />
aconchegantes aposentos da Sra Veal e, num piscar de olhos, imagens deslocadas<br />
impuseram-se violentamente e deformaram a rede de causalidade das quais dimanavam<br />
os efeitos realistas da trama. Os leitores foram conduzidos para o dia anterior,<br />
exatamente no mesmo horário em que se deu a aparição do espectro, quando a morte<br />
começava a tolher os movimentos daquela que em alguns instantes estaria impedida de<br />
travar quaisquer contatos carnais com os vivos. O recurso serviu para selar de maneira<br />
definitiva a estranheza da cena ocorrida na casa da Sra Bargraves. O encavalamento de<br />
duas ações ocorridas com vinte e quatro horas de diferença gerou um lapso rápido, mas,<br />
para o gestual do fantasma, os mínimos vãos sempre concorreram para as ilusões mais<br />
duradouras.<br />
Direcionando a análise para o componente sobrenatural da literatura, os recursos<br />
temáticos e discursivos mantenedores do Além, criou-se a impressão de um<br />
distanciamento radical de tudo aquilo que viemos defendendo até aqui: as formas<br />
engendradas no atrito entre ciência e literatura deveriam, em tese, rejeitar as sugestões<br />
de nível obscurantista nascidas com a religião. Por certo a contradição existiria caso<br />
Defoe fosse um autor com intenções eminentemente místicas, entretanto, ele trabalhou<br />
no nível de uma percepção em estado presente, ou seja, seus recursos estilísticos<br />
fizeram com que o inominável nascesse no interior mesmo do sintagma, na erupção da<br />
narrativa, ao invés de suspendido tão acima do balbucio humano que somente o<br />
emblema – aqui estaríamos no âmbito da alegoria – ou a aniquilação total do signo seria<br />
adequado para atingi-lo. Mantendo o fantasma na altura do olhar humano, a prosa de<br />
ficção conseguiu descrevê-lo friamente e criar as hesitações caras ao fantástico partindo<br />
das adequações do realismo aos seus limites expressionais. Por isto, se atentarmos para<br />
as associações nascidas com a erupção da dimensão sobrenatural em contos e romances<br />
do Setecentos, veremos que os resultados não diferiram muito daqueles em que a busca<br />
116 DEFOE, op. cit., p.18.