Capítulo 04.pdf - PUC Rio
Capítulo 04.pdf - PUC Rio
Capítulo 04.pdf - PUC Rio
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
232<br />
surgimento da aparição. Debruçada de maneira resignada sobre a costura, os toques na<br />
porta tiraram-na de sua vivência interior e a colocaram, assim que atendeu o chamado,<br />
diante da amiga ausente, vestida com roupa de montaria. 114<br />
O que mais fascina nesta pequena peça escrita por Daniel Defoe é a estranha<br />
banalidade em que o evento sobrenatural esteve envolvido: na quietude serena de um<br />
sobrado simples, duas mulheres conversavam. Desde o início os leitores sabiam da<br />
realidade – ou irrealidade – da sra Veal, algo que a sra Bargrave desconhecia<br />
completamente. O contato dos vivos com os mortos se desenvolveu, por isso mesmo, de<br />
modo natural. Alguns elementos do vestuário do fantasma – utilizava na ocasião uma<br />
roupa de montaria – e a insistência com que por vezes os conselhos de Drelincourt a<br />
respeito da boa morte cortou o silêncio da sala pequeno burguesa alimentaram uma<br />
tênue neblina sem tirar da ação sua plausibilidade. Outras leituras edificantes<br />
compartilhadas também saturaram a atmosfera de contenção espiritual, como o livro do<br />
doutor Hoerneck sobre o ascetismo cristão e o A amizade na perfeição, de Norris.<br />
Falaram basicamente de livros. Ao fim, o espectro solicitou que a amiga distribuísse seu<br />
espólio (anéis e uma bolsa de ouro) a alguns familiares. 115<br />
Somente pela invenção pictórica dos caracteres das personagens e da atmosfera<br />
em que a trama se desenvolveu já se poderia enquadrar o conto A aparição da Sra Veal<br />
dentro de um contexto de afirmação da fantasmagoria, mas algo mais sutil e, por isto<br />
mesmo, mais efetivo para a consumação da forma subsistiu na manipulação explícita do<br />
autor na fruição espácio-temporal clássica. Defoe associou as cenas de sua composição<br />
através de uma dinâmica escapista, divergente das estruturas sintagmáticas amarradas<br />
por um trânsito retilíneo, juntando as partículas do discurso pautado por uma intuição<br />
intelectual cuja resultante nascia dos desvios, dos fragmentos, mais do que da soma<br />
indiscernível das partes. Pois a conduta de discurso linear validou-se na movimentação<br />
reclusa na sala de estar, com as duas amigas dialogando sobre a trivialidade da vida e a<br />
irreversibilidade da morte num contínuo andamento até a Sra Veal sair, dobrar a esquina<br />
da casa da sra Bargrave e sumir para sempre. Justamente aí, depois de o espectro<br />
colocar-se fora do campo de visão tanto da protagonista como dos leitores, que o autor<br />
da história cortou abruptamente a linha até então perseguida:<br />
114 DEFOE, Contos de fantasmas, p.12.<br />
115 Idem, p. 15.