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Capítulo 04.pdf - PUC Rio

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surgimento da aparição. Debruçada de maneira resignada sobre a costura, os toques na<br />

porta tiraram-na de sua vivência interior e a colocaram, assim que atendeu o chamado,<br />

diante da amiga ausente, vestida com roupa de montaria. 114<br />

O que mais fascina nesta pequena peça escrita por Daniel Defoe é a estranha<br />

banalidade em que o evento sobrenatural esteve envolvido: na quietude serena de um<br />

sobrado simples, duas mulheres conversavam. Desde o início os leitores sabiam da<br />

realidade – ou irrealidade – da sra Veal, algo que a sra Bargrave desconhecia<br />

completamente. O contato dos vivos com os mortos se desenvolveu, por isso mesmo, de<br />

modo natural. Alguns elementos do vestuário do fantasma – utilizava na ocasião uma<br />

roupa de montaria – e a insistência com que por vezes os conselhos de Drelincourt a<br />

respeito da boa morte cortou o silêncio da sala pequeno burguesa alimentaram uma<br />

tênue neblina sem tirar da ação sua plausibilidade. Outras leituras edificantes<br />

compartilhadas também saturaram a atmosfera de contenção espiritual, como o livro do<br />

doutor Hoerneck sobre o ascetismo cristão e o A amizade na perfeição, de Norris.<br />

Falaram basicamente de livros. Ao fim, o espectro solicitou que a amiga distribuísse seu<br />

espólio (anéis e uma bolsa de ouro) a alguns familiares. 115<br />

Somente pela invenção pictórica dos caracteres das personagens e da atmosfera<br />

em que a trama se desenvolveu já se poderia enquadrar o conto A aparição da Sra Veal<br />

dentro de um contexto de afirmação da fantasmagoria, mas algo mais sutil e, por isto<br />

mesmo, mais efetivo para a consumação da forma subsistiu na manipulação explícita do<br />

autor na fruição espácio-temporal clássica. Defoe associou as cenas de sua composição<br />

através de uma dinâmica escapista, divergente das estruturas sintagmáticas amarradas<br />

por um trânsito retilíneo, juntando as partículas do discurso pautado por uma intuição<br />

intelectual cuja resultante nascia dos desvios, dos fragmentos, mais do que da soma<br />

indiscernível das partes. Pois a conduta de discurso linear validou-se na movimentação<br />

reclusa na sala de estar, com as duas amigas dialogando sobre a trivialidade da vida e a<br />

irreversibilidade da morte num contínuo andamento até a Sra Veal sair, dobrar a esquina<br />

da casa da sra Bargrave e sumir para sempre. Justamente aí, depois de o espectro<br />

colocar-se fora do campo de visão tanto da protagonista como dos leitores, que o autor<br />

da história cortou abruptamente a linha até então perseguida:<br />

114 DEFOE, Contos de fantasmas, p.12.<br />

115 Idem, p. 15.

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