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Capítulo 04.pdf - PUC Rio

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visões de toda ordem. Também era comum na época responsabilizar o conteúdo dos<br />

livros pelas intemperanças da moral e os desarranjos cerebrais dos leitores mais<br />

fervorosos. Dom Quixote já se tornara um protótipo da cultura livresca, por este motivo<br />

adiantado desde as primeiras linhas do romance.<br />

Y así, del poco dormir y del mucho leer se le secó el cerebro, de manera que vino a<br />

perder el juicio. Llenósele la fantasía de todo aquello que leía em los libros y asentósele<br />

de tal modo em la imaginación que era verdad toda aquella máquina de aquellas sonadas<br />

somadas invenciones que leía, que para él no había outra história más cierta em el<br />

mundo. 111<br />

Mais adiante a atividade levada ao exagero compôs o conjunto de patologias do<br />

século XVIII. Em De la santé des gens de lettres, Samuel-Auguste Tissot descreveu a<br />

loucura que acometia os intelectuais por um conjunto de ações fisiológicas, tais quais<br />

violentos espasmos de moelas nervosas, realizadas cada vez que a exigência de estudos<br />

muito acurados forçavam o trabalho do cérebro :<br />

Não há absolutamente nenhum homem de letras que não tenha saído diversas vezes de<br />

seu gabinete com uma violenta dor de cabeça e com bastante calor nessa parte, o que é<br />

fruto do estado de fadiga e de aquecimento no qual a moela do cérebro se encontra. 112<br />

Por uma compleição nervosa frágil e hábitos de repressão extrema dos<br />

sentimentos, as protagonistas satisfaziam os critérios mais rigorosos para se tornarem<br />

vítimas de toda a sorte de espectros. Sra Veal, o futuro fantasma, possuía um estranho<br />

tique nervoso que a fazia repentinamente parar de falar com “uma extravagância<br />

abrupta”. 113 O fino rancor da senhora Bargrave com relação à ausência da amiga,<br />

sumida desde que o Sr Veal conseguira um emprego na Alfândega, também povoava a<br />

solidão da sala com estranhas evocações no momento imediatamente anterior ao<br />

111<br />

Para entender melhor o diálogo da obra de Miguel de Cervantes com as teorias médicas e os tratados<br />

sobre a memória produzidos no século XVII, a leitura do ensaio de Gustavo Illades, Retábulos de<br />

fantasmas cervantinos, é uma fonte original e esclarecedora. Segundo o professor da Universidad<br />

Autônoma Metropolitana do México: “se admitirmos que Dom Quixote comete loucuras porque se<br />

exercita em aplicar no mundo exterior o arquivo de sua memória, isto é, a ‘máquina de sonadas soñadas<br />

invenciones que leía’, e isso devido ao fato de que colocou em sua imaginação que tais invenções eram<br />

verdadeiras, se admitimos isso, devemos dar maior importância à memória e à complexa relação que os<br />

tratadistas observaram entre tal faculdade da alma e a imaginação, o que nos leva a incluir outras<br />

personagens cervantinas, quando não seus leitores e ouvintes contemporâneos, dentro de uma realidade<br />

oscilante, por ser fantasmagórica”. Dom Quixote, apud, ILLADES, Gustavo. “Retábulo de fantasmas<br />

cervantinos”. Revista USP, São Paulo, n.67, p. 262-269, setembro/novembro de 2005.<br />

112<br />

ABREU, Márcia. “Libertinagens – da ficção à medicina”. www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br.<br />

Acessado em 11 de setembro de 2008.<br />

113<br />

DEFOE, op. cit., p. 11.

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