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Capítulo 04.pdf - PUC Rio

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preconceito com relação à ficção do que com o princípio valorativo das verdades<br />

contidas em seus mecanismos de enunciação, movimentado no sentido de dar aos<br />

leitores momentos de prazeroso entretenimento. Hume, em seu Tratado da natureza<br />

humana, observou algo muito revelador de uma ética própria do setecentos com relação<br />

ao estatuto das ficções:<br />

Se uma pessoa senta-se para ler um livro como se fosse um romance, e outra como se<br />

ele fosse uma história verdadeira, é claro que elas recebem as mesmas idéias, na mesma<br />

ordem; e a credulidade de uma e a incredulidade da outra não as impedem de atribuir<br />

exatamente o mesmo sentido a seu autor. As palavras deste produzem as mesmas idéias<br />

em ambas, mas seu testemunho não tem sobre elas a mesma influência. A segunda tem<br />

uma concepção mais viva de todos os incidentes; entra mais profundamente nos<br />

problemas dos personagens; representa para si mesma suas ações, caráter, amizades e<br />

inimizades; chega até a formar uma noção de seus traços, aparências e modos. Ao passo<br />

que a primeira, como não dá crédito ao testemunho do autor, concebe todos esses<br />

detalhes de maneira mais franca e lânguida, e, não fosse pelo estilo e habilidade da<br />

composição, não conseguiria extrair da obra quase nenhum prazer. 110<br />

Hume não entrou no mérito de qual das narrativas seria a mais necessária ao<br />

desenvolvimento moral do homem, não emitiu qualquer juízo de valor com relação a<br />

quaisquer das duas leituras, somente atestou que ao se ler um livro “como um romance”<br />

as idéias configuravam-se de uma maneira bem mais desbotada do que “como uma<br />

história verdadeira”. Deu os argumentos retóricos para que os escritores mentissem e<br />

salvassem o real em seu estado representativo. Pelas qualidades técnicas e apuro na<br />

observação do mundo, Defoe poderia dispensar os preâmbulos e simplesmente narrar os<br />

fatos sustentadores da diáfana aparição de um fantasma feminino, porém não resta<br />

dúvida que sem o recurso inicial o conto perderia parte de seu poder de persuasão.<br />

O fantasma da Senhora Veal apareceu após um providencial toque de doze<br />

badaladas do relógio, no dia 8 de setembro de 1708, na humilde residência da senhora<br />

Bargrave. Hora, dia e lugar bem marcados. Antes que o espectro batesse na porta e<br />

adentrasse o cômodo, o autor informou sobre a antiga amizade das duas mulheres,<br />

iniciada em uma época de penúria econômica para ambas, entre falta de víveres,<br />

vestimentas rotas e leituras pias como a do teólogo protestante Charles Drelincourt. Não<br />

se podia acusar Defoe de simplesmente jogar o volume de Drelincourt nas mãos das<br />

protagonistas para fazer propaganda explícita, pois as sugestões contidas em suas<br />

páginas serviram para criar o imaginário de resignação e mortificação cristãs propício às<br />

110 HUME, op. cit., p.127.

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