Capítulo 04.pdf - PUC Rio
Capítulo 04.pdf - PUC Rio
Capítulo 04.pdf - PUC Rio
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
226<br />
Nietzsche, para quem o pensamento romântico interessou a ponto de torná-lo<br />
uma voz deslocada no tempo, pareceu comentar sessenta anos depois, numa espécie de<br />
adendo ou nota, as palavras de Schelling, quando lecionava um curso sobre a tragédia<br />
de Sófocles na Universidade da Basiléia, em 1869. Para o autor de Assim falou<br />
Zaratustra:<br />
o ponto culminante do drama antigo começa onde, para nós, a cortina cai, e as partes<br />
mais interessantes dos nossos dramas, os quatro primeiros atos, não existiam no drama<br />
grego. Em Shakespeare pode-se até mesmo perceber que o entusiasmo do poeta por seus<br />
heróis diminui na última parte. Os processos psíquicos que precedem a ação o<br />
estimulam, enquanto a conseqüência deles estimula o poeta grego. Onde um recolhe, de<br />
preferência, as premissas, o outro tira as conclusões. No drama shakespeareano, são<br />
feitas as mais elevadas exigências por uma fantasia ativamente criadora, pressupondo<br />
um incrível salto no tempo e no espaço, no qual toda mudança de cena é imprescindível.<br />
(...) Tudo podia ser tudo, graças a uma permanente fantasia (...) Essa progressiva tensão<br />
da fantasia não era conhecida pelos gregos nas suas tragédias. Nestas, todas as imagens<br />
são perceptíveis. Agora, para se aprofundar é preciso interiorizar.<br />
Tanto Schelling quanto Niezschte notaram qua o drama moderno, em<br />
comparação ao antigo, transbordava os limites da síntese trágica para abrir<br />
espacialidades diacrônicas, corrompendo a apresentação bruta de um acontecimento, de<br />
uma ação, para divergir a seqüência em inúmeros quadros casados à incontinência<br />
fantástica. Música, drama e, como não poderiam faltar, as ficções em prosa, passaram a<br />
organizar os respectivos segmentos formais (movimento, ato, capítulo) atendendo aos<br />
princípios de harmonização das muitas dimensões mobilizadas pelo discurso, abrindo<br />
mão da verossimilhança clássica e admitindo no seio da narrativa os princípios de<br />
criação do fantasma, projetando do caráter meditabundo as cenas ilustrativas da fantasia<br />
– sonhos, delírios, reminiscências.<br />
Claro que, sob muitos aspectos, os tratados estéticos realizados pelos românticos<br />
condenavam expressamente o psicologismo fácil do romance inglês 101 – os modelos de<br />
literatura moderna eram Shakespeare, Cervantes e Goethe, basicamente –, exigindo das<br />
artes uma organicidade imediata intuída pela idéia, ao invés de fragmentos colocados a<br />
esmo no correr da percepção de tempo e nos limites do espaço. Schopenhauer em<br />
Metafísica do belo, por exemplo, levando adiante o pensamento de Schelling, reagiu<br />
101 “A partir desses poucos traços fica claro o que, tomado em seu sentido supremo, romance não pode<br />
ser: um mostruário de virtudes e vícios, um preparado psicológico de uma mente humana isolada, que<br />
seria conservada como num gabinete. Não devemos ser recebidos à porta de entrada por uma paixão<br />
destruidora, que nos carrega por todas as suas estações e, por fim, abandona o leitor atordoado ao termo<br />
de um caminho que ele por nada nesse mundo gostaria de percorrer outra vez”. SCHELLING, Filosofia<br />
da arte, op.cit., p. 304.