Capítulo 04.pdf - PUC Rio
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Com o distanciamento de alguns séculos, as ambições iluministas em fundir<br />
num substrato translúcido as faces do significante e do significado, em exaurir em<br />
alguns volumes as relações das palavras com as coisas, mostraram-se mais um sonho<br />
engendrado pela razão do que algo possível de ser atingido em qualquer época. Ao<br />
deixar para trás os ícones fixados pela sensação no entendimento e tentar estabelecer os<br />
princípios básicos a partir dos quais eles se juntavam para criar novos sentidos, o<br />
classicismo entrou num território dentro do qual as imagens, libertas de uma referência<br />
externa imediata, ricochetavam ao sabor da fantasia. Ao se dobrarem sobre as reais<br />
implicações de um pensamento livre, individual, acabaram afrouxando os modelos de<br />
uma harmonia estrutural de natureza e pensamento, descortinando um mundo<br />
fragmentado pela instabilidade com que a própria faculdade respondia às contenções<br />
artificiosas. Justamente no esgarçamento da inteireza alegórica, na quebra do<br />
encadeamento de uma expressividade retilínea, que as ficções em prosa inseriram os<br />
fragmentos dignificantes do “realismo filosófico” e inauguraram o modo misto de<br />
narrativa.<br />
Estes experimentos formais com a coordenação rítmica dos segmentos fora algo<br />
profundamente sentido pelos teóricos da arte românticos, que se especializavam em<br />
denominar os índices de diferenciação entre a arte antiga e a moderna. Schelling deu<br />
atenção especial à música em suas aulas sobre filosofia da arte, justamente por ser ela<br />
capaz de ilustrar, em seu composto fluido e imaterial, os ensinamentos quanto ao ajuste<br />
da forma sobre o discorrer do tempo. 99 O pensador alemão, entretanto, ao elucubrar<br />
sobre a cadência vigorosa da musicalidade grega e as harmonizações complexas da<br />
moderna, não se furtou em compará-las formalmente às peculiaridades dos dramaturgos<br />
produzidos em cada uma das Eras. Escolheu Sófocles e Shakespeare para expressar aos<br />
leigos na linguagem das partituras os modos de cada época em organizar temporal e<br />
espacialmente os desdobramentos dos dramas universais:<br />
Uma obra de Sófocles tem puro ritmo, ali só a necessidade é exposta, ela não tem<br />
nenhuma extensão superficial; Shakespeare, ao contrário, é o maior harmonista, o<br />
mestre do contraponto dramático; o que com isso se nos apresenta não é somente o<br />
ritmo simples de um acontecimento, é ao mesmo tempo todo o seu acompanhamento e o<br />
seu reflexo, que se projeta de diferentes lados. Compare-se, por exemplo, Édipo e Rei<br />
Lear. Lá, nada mais que a pura melodia do acontecimento, ao passo que aqui, ao destino<br />
do rei Lear repelido pelas filhas, se opõe a história de um filho repelido pelo pai, e<br />
assim, a cada momento singular do todo, novamente se opõe um outro momento, que o<br />
acompanha e reflete. 100<br />
99 SCHELLING, F.W.J. Filosofia da arte. São Paulo: Edusp, 2001.<br />
100 SCHELLING, op. cit., pp. 157-158.