Capítulo 04.pdf - PUC Rio
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dos capítulos do livro, contrapôs as idéias reais (baseadas em efeitos constantes e<br />
semelhanças exatas) com as fantásticas (fora dos padrões conhecidos) produzidas no<br />
interior dos modos mistos, capazes de unir em um só corpo as informações mais<br />
díspares e as analogias mais bizarras – caso se fugisse aos compostos urdidos pela<br />
reflexão. Nada era mais inadmissível e desconcertante para o filósofo inglês do que a<br />
liberdade com que, por vezes, a mente entregava-se às extravagantes imagens tiradas de<br />
sua inquietante atividade.<br />
Se esta (idéia) estivesse completamente separada de todas as nossas sensações externas<br />
e de todos os nossos pensamentos internos, não teríamos nenhum motivo para preferir<br />
um pensamento a outro, uma ação a outra; para preferir, por exemplo, a negligência à<br />
atenção, ou o movimento ao repouso. De tal modo que nem moveríamos os nossos<br />
corpos, nem ocuparíamos a mente, mas deixaríamos que os nossos pensamentos<br />
(permita-se-me a expressão) corressem à deriva, sem nenhuma direção nem propósito, e<br />
permitiríamos que as idéias da nossa mente, quais sombras inadvertidas, nela se<br />
apresentassem consoante fossem ocorrendo, sem que lhes prestássemos nenhuma<br />
atenção. Num tal estado, o homem, embora dotado das faculdades do entendimento e da<br />
vontade, seria uma criatura muito ociosa inativa e passaria o tempo mergulhado num<br />
preguiçoso e letárgico sonho. 63<br />
Aliás, assim como muitos pensadores empíricos de sua época, Locke<br />
tergiversava no momento de adentrar o mundo dos sonhos e não conseguia atinar a<br />
respeito de uma atividade para a qual nem a sensação, nem a reflexão, estivessem<br />
presentes para produzir e organizar as imagens. 64 Este aspecto de sua pesquisa decorria<br />
dos próprios limites impostos por uma aplicação muito ortodoxa do empirismo sobre os<br />
recursos da mente, criando substratos cuja rigidez por vezes obrigava a figura reflexiva<br />
a manter o porte de um hieróglifo.<br />
Mesmo evitando ao máximo utilizar o fluxo mucoso de espíritos animais para<br />
dar conta da dinâmica imaginativa – como fizera Descartes em As paixões da alma –, o<br />
jamais existiu, como alguns concebem o entendimento de Deus antes de ter criado as coisas (percepção<br />
que seguramente não pôde provir de nenhum objeto) e que dessa percepção o entendimento deduziu<br />
legitimamente outras, todos esses pensamentos seriam verdadeiros e não seriam determinados por<br />
nenhum objeto exterior, mas dependeriam unicamente do poder e da natureza do entendimento. É por isso<br />
que aquilo que constitui a forma do pensamento verdadeiro deve ser procurado nesse próprio pensamento<br />
e ser deduzido da natureza do entendimento”. SPINOZA, Baruch. Tratado da reforma do entendimento.<br />
São Paulo: Editora Escala, 2007, p. 67.<br />
63<br />
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano – Vol. 1. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,<br />
1999, p. 148.<br />
64<br />
“A meu ver, os sonhos de um homem adormecido compõem-se com as idéias do homem acordado,<br />
embora na sua maior parte unidos de estranho modo. E, se a alma tem idéias próprias que não tirou da<br />
sensação nem da reflexão (supondo que ela pense antes de receber qualquer impressão do corpo), é<br />
estranho que, no seu pensar privado (tão privado que nem o próprio homem dele se apercebe), nunca<br />
retenha qualquer dessas idéias no momento exato em que delas desperta e, desse modo, proporcione ao<br />
homem o prazer de novas descobertas”. LOCKE, op. cit., p. 12.