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Capítulo 04.pdf - PUC Rio

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308<br />

incontornável subjetividade, insidiosa por perfurar o estamento alegórico para a livre<br />

circulação dos fantasmas perceptivos.<br />

Noite na taverna já desnorteava pela própria forma escolhida por Álvares de<br />

Azevedo para contar as cinco histórias macabras, com forte teor fantasmagórico, aos<br />

seus futuros leitores. Apesar de ser considerado por alguns estudiosos como um livro de<br />

contos, a presença de uma mesa de bar proporcionou um espaço seguro para unificar<br />

todas as peças num organismo aberto a interseções, impedindo que as histórias se<br />

fechassem sobre si mesmas e se bastassem em minúsculas e ininterruptas narrativas.<br />

Construída como uma conversa entre amigos, sua estrutura visou a disposição<br />

verossímil de uma mesa ruidosa, dentro da qual qualquer discurso estava sujeito a ser<br />

atravessado por comentários alheios ou pela entrada de personagens passageiros, como<br />

os freqüentadores das biroscas de beira de estrada. Certo que em grande parte do livro<br />

cada uma das protagonistas teve tempo suficiente para concluir as suas aventuras,<br />

descrevendo com bastante riqueza de detalhes vidas dissolutas e incestuosas, mas em<br />

dois momentos específicos houve brechas para cortes bruscos do ambiente. Um deles<br />

ocorreu no final da história de Bertram – um adultério à espanhola –, no qual um velho<br />

de longas e fundas rugas entrava no recinto, cortava a trama de amor destrutivo passada<br />

na Andaluzia, e depositava na mesa um crânio de um poeta-louco:<br />

-Não bradaste – miséria e loucura! – vós, almas onde talvez borbulhava o sopro de<br />

Deus, cérebros que a luz divina do gênio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a<br />

saciedade de escárneos? Enchei as taças até a borda! Enchei-as e bebei; bebei à<br />

lembrança do cérebro que ardeu nesse crânio, da alma que aí habitou, do poeta-louco –<br />

Werner! E eu bradarei ainda uma vez – miséria e loucura! 282<br />

O velho parecia ter saído da história ainda inacabada de Bertram, um judeuerrante<br />

que se duplicava como personagem em abismo, solto da ficção, da imaginação<br />

desenfreada, um caco de uma trama inconcluída que depositava um crânio anônimo<br />

diante do círculo de amigos antes de voltar ao limbo das criaturas obstusas e deixar que<br />

as angústias de amor e morte fossem concluídas. As espacialidades abertas para o livre<br />

diálogo das criaturas com seus criadores, do sonhado com seus sonhadores, deu aos<br />

contos uma arquitetura fluida, espiralada, impedindo um fechamento ou criando a ilusão<br />

de espaços frontais, mas emparedado por fundos muitas vezes falsos. Conforme a<br />

conversa adentrava a madrugada, o cansaço, o torpor e a embriagues faziam com que as<br />

282 AZEVEDO, op. cit., p. 114.

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