Capítulo 04.pdf - PUC Rio
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Bocage como Werner era levado por um organismo excitado às impressões vivas. Sua<br />
alma leprada de materialismo, matizada ainda de frescuras de poesia – na luta do corpo<br />
e da alma, da eiva da materialidade, e da seiva de vida do espírito – precisava de um<br />
pousio às agitações que a enfebreciam. A Byron eram dores do passado que pendiam o<br />
vinho real do Reno e o gim, como o doente pede ópio. A Bocage era porventura a<br />
turvação daquele espírito, o atropelado daquelas visões que lhe passavam pesadas no<br />
crânio, era – sobretudo – a sensualidade que tendia a adormecer a alma. 256<br />
Bocage, na ótica de Álvares de Azevedo, bem que poderia ser um dos<br />
personagens ébrios e dissolutos descritos em Noite na taverna – e a comparação não<br />
tem nada de fortuita, pois o ensaio e o livro de contos foram escritos no mesmo período.<br />
Um fator, entretanto, colaborava no sentido de retirar do poeta português qualquer sinal<br />
de um misticismo cristalino, pactuante com as formas etéreas e diáfanas: o sensualismo<br />
luso, seu apego à carnadura, ao mundo real. Segundo o autor brasileiro:<br />
Dessem a esse português a cópia de instrução que mana na Alemanha, embalassem-no<br />
aos lieders da superstição teutônica, dessem um ar em que voasse a águia da imaginação<br />
fervorosa de Bocage; apontassem-lhe o quadro sublime para que o Correggio<br />
exclamasse : anch’io son pittore – e... Bocage fora Werner. 257<br />
Talvez com a forma ficcional mais livre escrita em meio aos questionamentos de<br />
natureza histórica, Álvares de Azevedo pudesse corrigir a herança de Bocage no sentido<br />
de embalá-la na cadência teotônica, nas dissolvências da espiritualidade idealista, para<br />
entregar aos leitores de seu tempo uma obra madura para os temas até então<br />
superficialmente traduzidos pela civilização portuguesa. Observado por este aspecto, o<br />
livro Noite na taverna seria este produto utópico do que um português culto escreveria<br />
caso fora Werner, intelectual embalado, ao invés de nas derramadas modinhas<br />
brasileiras, nos requintadamente espirituais lieders alemães:<br />
Von deinem Bilde nur umschwebet,<br />
Schaf’ ich getrost und glücklich ein,<br />
Ich seh’ die Nacht wie grüne Wälder<br />
Und dein Gesicht wie Rosenschein.<br />
Doch schliesst, von meinem Bild umschwebet,<br />
Sich wohl getrost das Auge dein?<br />
Ja, lass mein leises Angedenken<br />
256 AZEVEDO, op. cit., p.379.<br />
257 Idem., p. 386.