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primeira obrigação de cada um de nós para consigo próprio é a<br />
ampliação da esfera de presença de seu ser , o que se consegue<br />
mudando de lugar (viajando), mudando as fontes de nossas sensações<br />
(ver uma catedral que não conhecemos, uma pintura que ainda não<br />
visitamos, um autor que ainda não lemos), mudando nossos gestos (a<br />
disposição corporal de que fala Bourdieu e que é um habitus), mudando<br />
nossas roupas (habitus também quer dizer roupa em latim; de resto,<br />
Hegel (1770-1831) deixava que seu alfaiate decidisse o que deveria vestir,<br />
e um alfaiate, como todos os alfaiates, hoje como à época de Hegel,<br />
segue a moda, quer dizer, muda sempre de estilo... e o propõe a seus<br />
clientes, mesmo se o cliente for Hegel... que aceitará a sugestão...).<br />
Ampliar a esfera de presença do ser, propõe Montesquieu, e não<br />
perseverar no ser, operação permitida pelo habitus no dizer de Bourdieu.<br />
Desconheço em que medida Bourdieu leu Montesquieu e até que ponto,<br />
se o leu, estava pensando na fórmula do autor de O espírito das leis<br />
quando escreveu que o habitus é modo de perseverar no ser; pode têlo<br />
lido, pode ter chegado a essa expressão por um caminho autônomo<br />
do pensamento; seja como for, sua equação dialoga diretamente com<br />
a de Montesquieu e desse diálogo surge distintamente como algo mais<br />
aprimorado, mais pertinente e mais estimulante a proposição do<br />
pensador iluminista: ampliar a esfera de presença do ser é melhor do<br />
que perseverar no ser. Aí está um valor cultural que não pode ser<br />
diminuído por nenhuma proposição relativista. O que persevera no<br />
ser, no mesmo ser, no ser sempre idêntico, é acima de tudo, em termos<br />
de estruturas estruturantes, a religião (e quanto mais fundamentalista,<br />
mais o fará), o partido político (e quanto mais fundamentalista, mais<br />
totalitário, mais insistirá nessa via) e a educação (e quanto mais técnica,<br />
e mais “social”, mais o fará), motivo pelo qual suas formas se revelam<br />
tão incompatíveis com a contemporaneidade (com esta pósmodernidade).<br />
Nesse cenário, a única e talvez última instituição que<br />
pode assegurar a ampliação da esfera de presença do ser, ao estimular<br />
um pensamento que procura pensar sempre sob outro ângulo (ainda<br />
que para experimentar hipóteses), é a universidade, quer dizer, a<br />
universidade de pesquisa, a única que merece o nome. A universidade<br />
de pesquisa, porém, nos países subdesenvolvidos, que dela mais<br />
precisam, é espécie em extinção, uma situação provocada por governos<br />
de todas as colorações políticas (dos neoliberais que não querem gastos<br />
sociais aos progressistas ou reformadores ou revolucionários que na<br />
universidade não vêem uma prioridade ou a temem), desprezando<br />
olimpicamente o interesse maior da coletividade em cujo nome dizem<br />
atuar. Como a universidade se extingue nesses países (e em outra e<br />
NEM TUDO É <strong>CULTURA</strong> 31<br />
AMPLIAR A<br />
ESFERA<br />
DO SER