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a densidade identitária que lhes é atribuída), nem são sempre sequer<br />
verdadeiras. Nem se fossem antigas e verdadeiras deveriam ser<br />
tomadas inelutavelmente como vetores privilegiados uma vez que,<br />
lembra Malinowski, frequentemente não se tem acesso ao que<br />
“objetivamente” foram. (O saiote escocês, ao contrário do que se pensa,<br />
não é milenar, portanto não carrega nenhum valor trans-histórico; de<br />
modo análogo, a calça bombacha dos gaúchos não se vincula a<br />
nenhuma prática histórica intrínseca e específica dessa cultura mas a<br />
um acidente da história: uma encomenda não honrada por um outro<br />
país levou àquela parte dos pampas um lote de calças desse tipo, num<br />
caso de “tradição” surgida apenas do preço conveniente que tinham as<br />
tais calças; a proibição de comer carne de porco em alguma religião se<br />
deve a uma circunstância histórica — pequena ou nenhuma capacidade<br />
de bem conservar os alimentos por parte da comunidade envolvida —,<br />
não a um valor moral durável; as casas brancas de Ibiza, na Espanha,<br />
têm essa cor porque num certo momento histórico tiveram de ser<br />
caiadas como forma de combater uma epidemia mortal, não se<br />
constituindo em nenhum padrão estético ou cultural intrínseco da<br />
comunidade e próprio dela). De resto, nem mesmo os costumes<br />
“autênticos” podem se dar ao luxo, na expressão de Hobsbawn, de<br />
permanecerem invariáveis — porque a vida não permanece invariável,<br />
sequer nas sociedades tradicionais. Nessa perspectiva, a insistência em<br />
valores históricos “próprios”, a serem valorizados porque exata e<br />
unicamente “históricos”, revela um assombroso desconhecimento da<br />
dinâmica cultural ou, em outro caso, a intenção consciente de manipular<br />
a cena de uma cultura, de uma comunidade. Esses são outros tantos<br />
motivos para centrar o foco dos estudos culturais no presente, com a<br />
intelecção ou correção histórica pertinente.<br />
A questão, como se percebe, não é tanto o fato de um componente<br />
cultural ser inventado ou “real”, objetivamente determinável ou não,<br />
recente ou antigo. Uma cultura se faz também sobre uma construção<br />
convencional, sobre uma invenção — de fato, quase sempre se faz<br />
predominantemente sobre uma invenção ou tanto com as invenções<br />
quanto com qualquer outra operação. E essa invenção pode ser recente<br />
ou menos recente, e pode resultar de uma visão objetiva ou não; a<br />
questão não é essa. A questão está na tentativa de atribuir-se ao<br />
passado um valor único, especial, privilegiado como fato ou dado<br />
cultural (o valor da verdade) — e um valor especial quando o fato ou<br />
objeto que comporta é comparado a outro, presente, que já surgiria,<br />
por essa condição, diminuído. A “cultura popular”, entidade cada vez<br />
menos precisa em sua conformação, costumava e ainda hoje costuma<br />
NEM TUDO É <strong>CULTURA</strong> 25