10.05.2013 Views

A CULTURA E SEU CONTRÁRIO TC def.pmd

A CULTURA E SEU CONTRÁRIO TC def.pmd

A CULTURA E SEU CONTRÁRIO TC def.pmd

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

A <strong>CULTURA</strong><br />

COMO<br />

LÂMINA<br />

DESAQUISIÇÃO<br />

<strong>CULTURA</strong>L<br />

que derivam da palavra e do conceito de agricultura e, portanto, que<br />

cultura é tudo que deriva da ação humana sobre alguma outra coisa<br />

(sobre a natureza mas, hoje, não apenas sobre a natureza). A palavra<br />

cultura, em uso corrente desde o século 17 em seu sentido atual, pode<br />

etimologicamente derivar daí — mas não é adequado ou produtivo<br />

supor que o sentido etimológico possa servir (sempre) como base e<br />

guia para o conhecimento e, menos ainda, para a ação com base no<br />

conhecimento. Se a questão for recorrer aos sentidos epistemológicos,<br />

melhor talvez fazer como uma certa tendência anglo-saxã 3 e escolher<br />

uma outra raiz para cultura: a palavra coulter, nesse universo<br />

considerada uma cognata de cultura e que significa a lâmina do arado.<br />

Esta, sim, uma ideia estimulante para os estudos de cultura e política<br />

cultural, ideia com a força de uma imagem poética: a cultura que<br />

interessa é aquela que se apresenta como a lâmina do arado. (Mas,<br />

pode ser que seja melhor reservar essa imagem do arado para algo<br />

que tem a ver com a cultura embora não seja igual à cultura por ser<br />

maior que ela: a arte. Disso se falará no último capítulo.) Não que a<br />

origem agricultural da cultura seja de todo negativa para estes novos<br />

estudos: Francis Bacon escreveu a respeito “da cultura e do adubamento<br />

dos espíritos”, numa aproximação sugestiva entre esterco e elevação<br />

espiritual... Para que a cultura seja estrume, no entanto, ela tem de ser<br />

o resíduo de algo que foi ingerido, digerido e eliminado sob forma<br />

pouco desejável, teria de ser o resultado de algo que não serve mais a<br />

sua função ou programa inicial, algo que já morreu e passa a servir<br />

para alimentar e fazer viver alguma outra coisa (folhas de árvores caídas<br />

no chão e que ali iniciam seu processo de decomposição e fertilização<br />

de outras vidas, mesma função de animais mortos, vermes variados).<br />

Não é imagem de todo inadequada à noção de cultura. O que de fato<br />

diferencia o uso cultural do consumo cultural é que no uso a coisa de cultura<br />

é interiorizada e transformada em substância vitalizadora em virtude<br />

de algum metabolismo de seu receptor (o que pressupõe a existência<br />

de um resto eventual a jogar fora), enquanto o consumo marca-se por<br />

um contato epidérmico entre receptor e coisa cultural, contato<br />

mediante o qual a coisa de cultura desliza pela superfície do receptor<br />

sem afetá-lo interiormente seja como for e é em seguida eliminada,<br />

posta fora, sem que tenha havido qualquer trabalho (alteração de<br />

estado) na coisa cultural por parte do receptor e no receptor em virtude<br />

de sua exposição à coisa cultural. De outro lado, a noção da cultura<br />

como esterco tampouco é de todo inconveniente porque a cultura de<br />

fato sempre se transforma em algo, de início não previsto, para servir a<br />

3 Registrada por Terry Eagleton em The Idea of culture, Osford: Blackwell, 2000.<br />

18 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!