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NEM TUDO É <strong>CULTURA</strong><br />
Cultura não é o todo. Nem tudo é cultura. Cultura é uma parte do<br />
todo, e nem mesmo a maior parte do todo — hoje. A ideia antropológica<br />
segundo a qual cultura é tudo não serve para os estudos de cultura,<br />
menos ainda para os estudos e a prática da política cultural em cuja<br />
perspectiva, por razões que se tornarão evidentes, este livro é escrito.<br />
A visão da cultura como sendo tudo e o todo é uma proposta do<br />
Iluminismo do século 18 anterior à Revolução Francesa, para o qual<br />
cultura era a soma dos saberes cumulados e transmitidos. Nessa linha<br />
de argumentação, o antropólogo britânico Edward Burnett Tylor (1832-<br />
1917) propôs em 1871, em seu livro Primitive Culture, a primeira <strong>def</strong>inição<br />
do conceito etnológico de cultura, ao dizer que cultura, ou civilização,<br />
no sentido etnológico mais amplo do termo, é esse todo complexo<br />
que compreende o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito,<br />
os costumes e outras capacidades ou atitudes adquiridas pelo homem<br />
enquanto membro da sociedade. Em outras palavras, tudo. Tudo que é<br />
humano. Inclusive a natureza naquilo que a natureza, naquele<br />
momento como agora, tem de cultural 2 . Mas, como se disse, essa não<br />
é umaideia operacional quando se deriva de uma disciplina que busca<br />
apenas entender o mundo (se é que esse entendimento antropológico<br />
da cultura permite de fato entendê-lo) para outra que quer atuar sobre<br />
o mundo de modo a transformá-lo. Aquela é uma ideia imobilizadora e<br />
engessadora, além de cômoda, porque abrangente, e, hoje sob mais<br />
de um aspecto, simplista; o que se procura aqui, no campo dos que<br />
querem transformar o mundo ou, melhor: viabilizar as condições para<br />
que o mundo se transforme (para melhor), é uma ideia de cultura de<br />
fato instrumental, efetivamente motriz. Tampouco adianta de muita<br />
coisa uma outra ideia tradicional a respeito de cultura, uma ideia<br />
igualmente abrangente, totalizante e totalizadora e da qual essa ideia<br />
antropológica foi extraída: a ideia de que cultura é palavra e conceito<br />
2 Para os autores dos séculos 17 e 18, a palavra “natureza” era praticamente um sinônimo<br />
para “vida”. Como observa Isaiah Berlin (The Roots of Romanticism, Princeton Univ. Press,<br />
1999), naquele momento a palavra “natureza” era tão comum e tão imprecisa quanto<br />
hoje é, uma coisa e outra, a palavra “criatividade”.<br />
17<br />
O CONCEITO<br />
ETNOLÓGICO