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A CULTURA E SEU CONTRÁRIO TC def.pmd

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jogo, aí está um: o jogo (esse jogo) é anticultural: os governos que<br />

admitem o jogo e, mais, que procuram no jogo fontes de rendimento<br />

têm o mesmo comportamento dos banqueiros ilegais do jogo: buscam<br />

o enriquecimento do Estado às custas da instabilidade e da<br />

desestabilização do jogador. De seu lado, a arte, essa sim, é risco, arte é<br />

inseguridade: para quem a faz, para quem a recebe: a arte é<br />

desestabilizante, incômoda: no código contemporâneo, se a obra de<br />

arte não for desestabilizante, não reúne as condições mínimas para<br />

dizer-se arte. Não há margem para ilusões: Don Quixote desestabilizou,<br />

Shakespeare propõe a insegurança, tanto quanto Joyce e Guimarães<br />

Rosa. Comparada à obra de cultura que cuida do outro, e nesse sentido,<br />

a obra de arte é indiferente: o que pode acontecer com o outro e no<br />

outro que se expõe a ela não é de seu interesse e, acima de tudo, de sua<br />

preocupação. A cultura é feita, nas palavras de Nietzsche, de virtudes<br />

gregárias (as pessoas se agregam diante de algo maior, ameaçador,<br />

incompreensível); o que marca a arte é a virtus, o oposto das virtudes<br />

gregárias: o valor, a fortaleza, a coragem em si e para si, a força adquirida<br />

por si mesmo e que vale para si mesmo.<br />

Derivação: o programa para a arte é aberto, incerto, informal, plural,<br />

divergente: para o cultural, o programa é convergente, tudo deve<br />

convergir para um mesmo ponto, uma mesma ideia. Na série Jazz,<br />

dirigida por Ken Burns para a TV em 2002, um crítico diz da obra de<br />

Duke Ellington: “quando ouvimos sua música, sabemos de onde ele<br />

tira isso, de onde vem cada pedaço embora ao modo dele: sua música<br />

é negroide sem ser exclusiva: sua música recebe”. E diz ainda: “Civilização<br />

é algo que pode ser reduzida a uma palavra: seja bem-vindo!”<br />

Eventualmente. Mas não se pode esperar da arte que diga a quem dela<br />

se aproxime: seja bem-vindo. Não sempre, não necessariamente. Talvez<br />

nunca. Já da cultura se pode, sim, esperar que ela receba bem as pessoas<br />

que dela se aproximam — pelo menos as que pertencem à mesma<br />

cultura. Vistas de modo geral, há culturas que recebem mais e outras<br />

que recebem menos. Há culturas que não dizem bem-vindo ao outro a<br />

menos que esse outro se anule como tal e passe a identificar-se com a<br />

cultura na qual espera ser bem-vindo: a jornalista e escritora italiana<br />

Oriana Falacci teve de cobrir a cabeça com um chador para entrevistar o<br />

aiatolá Khomeini depois do golpe ou revolução que derrubou o xá<br />

Pahlevi: não importou se Oriana Falacci vinha de outra cultura que não<br />

obriga a mulher a cobrir a cabeça diante do homem: aos olhos do<br />

homem iraniano, aquela mulher italiana tinha de mostrar respeito pelo<br />

homem iraniano e pela cultura do homem iraniano mas esse homem<br />

não se sentia obrigado a mostrar respeito pela mulher e pela cultura<br />

134 A <strong>CULTURA</strong> E <strong>SEU</strong> <strong>CONTRÁRIO</strong>

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